A difícil arte de traduzir o invisível e a responsabilidade de comunicar a fé
Vitória Ferreira*
Fomos a Roma, pela Minha Biblioteca Católica, para acompanhar as celebrações da Semana Santa e a tão esperada canonização de Carlo Acutis. Nosso propósito era fazer com que os fiéis experimentassem o pulsar de uma Igreja viva, respirando sua fé no coração da cristandade. Era uma missão grandiosa e desafiadora: aproximar as pessoas da riqueza do catolicismo, da sua beleza, da sua verdade. Não apenas mostrar imagens de Roma, mas traduzir o significado de viver o Tríduo junto ao Santo Padre. E ainda que estivéssemos tecnicamente preparados, nada poderia antecipar a intensidade do que nos esperava. Aquela não seria uma simples viagem de trabalho — mas um mergulho profundo no mistério divino.
Durante os dias em Roma, viver a Semana Santa foi como estar no centro pulsante da história. As ruas de pedra, o burburinho das línguas estrangeiras, o som dos sinos ecoando pelas praças — tudo parecia carregado de significado. Cada missa, cada gravação, cada caminhada até o Vaticano trazia consigo um peso simbólico, como se estivéssemos participando de algo muito maior do que nós mesmos. Em meio à correria da produção, ao cansaço e às agendas apertadas, havia também uma emoção difícil de explicar. Era como se o tempo ganhasse outra densidade, como se a rotina se entrelaçasse ao sagrado. A fé das pessoas era visível: nos olhares atentos, nos joelhos dobrados sobre o mármore frio, nos pequenos gestos de reverência. Ver fiéis de todas as partes do mundo, com idiomas e rostos diferentes, mas com o olhar fixo na mesma cruz e no mesmo altar, foi uma das experiências mais belas da minha vida.
E, como profissional, entendi logo que não estávamos ali apenas para registrar: precisávamos captar a alma daquilo tudo. Ser ponte. Ser canal. Transmitir com verdade. E essa consciência tornava tudo mais intenso e exigente. Porque, no fundo, nós sabíamos que aquilo que estávamos vivendo ali precisava chegar ao público não apenas como informação, mas como experiência de fé.
E, então, veio o inesperado. No domingo de Páscoa, tivemos a graça de ver o Papa Francisco de perto. Ali, diante de nós, estava o sucessor de Pedro, mesmo visivelmente debilitado, reunindo suas últimas forças para abençoar o povo. Menos de 24 horas depois, recebemos a notícia de sua morte. Um choque. Um silêncio profundo tomou conta de nós. Mas também uma gratidão imensa: pudemos vê-lo, ouvi-lo, receber sua bênção e, de certa forma, nos despedir. A emoção de viver aqueles dias tão intensos, no centro da cristandade, no coração da Igreja, é algo que talvez jamais consiga ser traduzido plenamente em palavras. Em muitos momentos, minha maior angústia era justamente essa: será que estou conseguindo comunicar tudo isso com a dignidade e a profundidade que este momento exige?
Estar ali em missão, representando a Minha Biblioteca Católica, era um chamado que carregava grande responsabilidade — e junto dela, a insegurança natural de quem sabe o peso da tarefa que lhe foi confiada. Muitas vezes, era mais fácil relatar os fatos externos do que abrir espaço para o que acontecia dentro de mim. Como narrar o inexprimível? Como colocar em palavras aquilo que se vive diante da eternidade? O maior desafio era esse: fazer com que as pessoas sentissem, mesmo à distância, o que significava estar ali. Era um trabalho de escuta, de sensibilidade e de tradução da fé — com a responsabilidade de sermos um canal confiável, íntegro e a serviço da Igreja.
Diante da dor da perda, nossa missão se renovava – consolar, esclarecer e recordar que a esperança jamais nos abandona. Em meio às muitas vozes que se agitavam ao redor, reconhecemos com humildade a importância de sermos uma presença genuinamente católica, comprometida com a Verdade e guiada pela luz do Evangelho.
Na densidade dos acontecimentos, compreendi que comunicar, ali, exigia mais do que presença e atenção: exigia também recolhimento. Era necessário silenciar, dar espaço à interioridade, permitir que a mente e o coração absorvessem tudo aquilo antes que qualquer palavra fosse pronunciada. Porque diante do que se desdobrava, a urgência não era apenas relatar, mas discernir. Intuir o que, de fato, era significativo para aqueles que nos acompanhavam: o que desejavam ver, saber, sentir. Como traduzir em palavras, imagens e sons, a profundidade do que é estar no coração da Igreja em um tempo tão marcante? Como fazer do nosso ofício um verdadeiro serviço à Igreja? A resposta não está apenas em estratégias ou roteiros, mas na disposição de ser instrumento. Porque comunicar a fé não é apenas transmitir fatos: é criar pontes, abrir caminhos, permitir que o sagrado alcance os corações.
O exercício era constante: transformar em linguagem aquilo que, por natureza, escapa às palavras. Traduzir o invisível com fidelidade exigia mais do que técnica — exigia sobriedade, discernimento e um profundo senso de responsabilidade. Porque o que se vivia ali não cabia em impressões pessoais ou em relatos emocionais demais. O desafio era encontrar o equilíbrio entre a experiência e a missão de comunicar, com um olhar atento ao que realmente importa — àquilo que pode, de fato, tocar, instruir e mover o outro.
E talvez esta seja a grande provocação que fica: estamos permitindo que a beleza e a grandeza da Igreja transformem a forma como vivemos e trabalhamos? Temos agido com a consciência de que tudo – absolutamente tudo – deve ser feito para a maior glória de Deus? Porque essa é a única medida que realmente importa. O resto passa. Mas aquilo que é feito por Ele e para Ele permanece. A missão vivida em Roma me ensinou que o mundo não precisa somente de notícias – precisa de sentido. E comunicar a fé é também vivê-la — é deixar que ela fale através de nós, com humildade, com verdade e com os olhos voltados para o céu.