
Quando o cardeal americano Robert Francis Prevost se apresentou ao mundo, na sacada da Basílica São Pedro, no Vaticano, ao ser eleito papa em 8 de maio de 2025, deixou clara sua intenção de honrar e seguir o legado deixado pelo papa Francisco. Seja pelas palavras que usou, seja por seus gestos, como o da escolha de seu nome pontifício: Leão XIV.
Ser sucessor de Leão XIII, aquele que publicou a encíclica Rerum Novarum, em 1891, pautando parâmetros para a leitura do mundo sobre a desigualdade social e para a construção de uma sociedade que preserve e tutele a dignidade humana, denunciando a escravidão vigente naquele período, denota, sim, uma comunhão com o papado e legado de Francisco, que foi sem dúvidas, um dos grandes líderes de seu tempo.
Não reinventou a roda do papado, mas assumiu o Evangelho de modo — para alguns — radical, dando preferência aos mais pobres e marginalizados.
“E esta não é uma opção política; nem sequer uma opção ideológica, uma opção de partidos. A opção preferencial pelos pobres está no centro do Evangelho. E quem a fez primeiro foi Jesus; ouvimos isto no trecho da Carta aos Coríntios, lido no início. Ele, sendo rico, fez-se pobre para nos enriquecer. Fez-se um de nós e por isso, no centro do Evangelho, no centro do anúncio de Jesus, há esta opção”, disse o papa Francisco em audiência de 19 de agosto de 2020, citando a exortação apostólica Evangelii gaudium [EG], 195): “a opção pelos últimos, por aqueles que a sociedade descarta e lança fora.”
Esta foi a primeira encíclica publicada pelo papa Francisco, em 2013. Nela enfatiza, ainda, a importância da missão evangelizadora da Igreja e seu carinho e devoção pela Mãe de Jesus, nossa Mãe. “Porque sempre que olhamos para Maria, voltamos a acreditar na força revolucionária da ternura e do afeto”, ensinou Francisco no texto.
Papa Leão XIV repete, a seu modo, a lição, logo em seu discurso inicial.
“Nossa mãe, Maria, quer sempre caminhar conosco, estar próxima, ajudar-nos com a sua interseção e seu amor. Agora gostaria de rezar junto convosco. Rezemos juntos por essa nova missão, por toda a Igreja, pela paz no mundo. Peçamos essa graça especial à Maria, nossa mãe”, disse, nitidamente emocionado.
Ainda na esteira do legado de Francisco, observamos os ensinamentos da encíclica Laudato Si, publicada em 2015.
Nela, ele deixa reflexões sobre os impactos ambientais à humanidade e todas as questões sociais interligadas, que fragilizam ainda mais aqueles que vivem nas periferias geográficas do mundo.
“[...] hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres”, escreveu na Laudato Si, sobre a desigualdade planetária.
Em todo seu papado, Francisco destacou a interconexão entre a dignidade humana e o cuidado com a criação, e mais, como os pobres são frequentemente os mais afetados pelas crises ecológicas, econômicas e políticas. Sem falar nas guerras, que vitimam mulheres e crianças, como na Faixa de Gaza.
E embora suas encíclicas, exortações e cartas apostólicas sejam documentos vivos, orientações e leituras humanas, conectadas com a realidade e sugerindo a atuação ética e responsável que cada batizado e batizada deve ter em sociedade, os gestos e ações, hoje flagrados pelas câmeras no mundo, “falam” mais alto e eternizam o exemplo de Francisco na história.
Entre tais exemplos, de encorajamento para a prática do bem e do cuidado com toda obra divina, está o Barco-Hospital Papa Francisco, uma iniciativa idealizada a partir de um diálogo entre o papa e a Associação Fraternidade São Francisco de Assis na Providência de Deus, durante a Jornada Mundial da Juventude em 2013, no Rio de Janeiro.
Na ocasião, o então papa perguntou se a Associação estava presente na Amazônia, e quando soube que não, respondeu: “Então devem ir!”. E foram. Inspirados por Francisco, criaram dois hospitais na região, em Óbidos e em Juruti. Como a população vivia nas margens do rio Amazonas, criaram o Barco-Hospital, levando saúde e assistência à população ribeirinha.
Último gesto concreto — que até aqui se sabe — foi destinar um de seus carros à Cáritas de Jerusalém.
Segundo o Vatican News, o pontífice pediu que seu papamóvel fosse transformado em uma clínica para as crianças da Faixa de Gaza, respondendo à devastadora guerra que provocou uma crise humanitária na região, deixando infraestruturas em colapso, e um sistema de saúde debilitado.
A posição do papa contra conflitos e guerras, como mediador da paz, como um líder mundial, sempre foi respeitada e, ainda hoje, se faz necessária. Se colocou como ponte de diálogo em diversas e complexas situações diplomáticas, tentando construir a paz em guerras entre Israel e Hamas, no Conflito Azerbaijão x Armênia, em Nagorno-Karabakh, na Guerra Rússia x Ucrânia, na Guerra da Síria, na Guerra civil no Iêmen e no Tigre. “Exorto, mais uma vez, todos os parceiros que continuem a dar ajuda humanitária às pessoas afetadas pela guerra no Tigré (Tigray), de modo a responder conjuntamente à imensa necessidade do povo tigrínios”, disse Francisco, em julho de 2022.
A voz do papa, ao denunciar tais conflitos, traz luz à realidade alarmante de que, dos 1,1 bilhão de pessoas que vivem na pobreza, 455 milhões residem em países afetados por guerras ou em situações de paz frágil. Os dados são do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em parceria com a Universidade de Oxford, publicados em outubro de 2024.
Perguntado por Michael, de 9 anos, da Nigéria, sobre como ele poderia solucionar os conflitos pelo mundo, papa Francisco respondeu:
“Temos de ajudar as pessoas de boa vontade a falar da guerra como algo ruim. As pessoas querem fazer guerra para ter mais poder e mais dinheiro. A guerra é somente fruto do egoísmo e da avareza. Não posso resolver os conflitos do mundo, mas você e eu podemos fazer desta terra um mundo melhor [...] Não é fácil, eu sei. Mas estou tentando. Peço-lhe que tente também”.
Além da pobreza extrema causada pela guerra, a população mundial enfrenta deslocamentos em massa, insegurança alimentar crônica e uma constante ameaça de violência. Não por acaso, papa Francisco realizou, ao longo dos seus 12 anos de papado, 47 viagens apostólicas, percorrendo 65 países, sendo ponte de acolhida, afeto e lucidez humanitária, em cenários de muros físicos e hostis.
“Francisco nunca deixou de lembrar-nos sobre nossos irmãos e irmãs em deslocamento forçado. Como uma teia delicada e resistente, suas incansáveis recomendações foram tecendo um manto de proteção — defendendo a acolhida incondicional, a abertura das fronteiras nacionais, a criação de leis mais humanas para regularização migratória, o direito fundamental de migrar e, ao mesmo tempo, o direito a não ser forçado a deixar sua terra. Seu apelo às paróquias e instituições religiosas, para que abrissem suas portas às famílias migrantes e refugiadas, não foi apenas palavra — foi testemunho vivido quando ele próprio levou para a Itália, sob a proteção do Vaticano, famílias sírias refugiadas”, lembrou em homenagem ao papa, irmã Rosita Milesi, missionária scalabriana, referência do tema de migração e refugiados no país.
O Papa Leão XIV, assim como Francisco, dá pistas de ser como ponte a derrubar muros e construir diálogos. Contrariando a política atual de seu país de origem, os EUA, e motivado por sua experiência de bispo do povo de Deus na América Latina, em especial no Peru, o então cardeal Prevost criticou o presidente Donald Trump.
Em abril, ele compartilhou uma publicação em suas redes sociais que falava sobre a questão dos imigrantes ilegais. “Você não vê o sofrimento? Sua consciência não está perturbada? Como você pode ficar quieto?”, dizia o post. Em outro momento, o Papa Leão XIV criticou o vice-presidente dos EUA, JD Vance, sobre religião: “Jesus não nos pede para classificar nosso amor pelos outros”.
Documentos, reformas, práticas e pontes foram deixadas por Francisco e passam agora às mãos de Leão XIV, o novo sucessor de Pedro, que se apresenta e nos convida:
“Sou um filho de Santo Agostinho, agostiniano, que disse: 'Convosco sou cristão, e para vós, bispo'. Nesse sentido, podemos todos caminhar juntos rumo a essa pátria, à qual Deus nos preparou”.
Amarremos as sandálias. É tempo!
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