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Para mí, vivir es Cristo

Formação integral e afetividade

Julio Diéguez

Sem dúvida, Jesus Cristo é o amor de nossa vida: não o maior entre outros, mas aquele que dá sentido a todos os outros amores e aos interesses, vontades, ambições, trabalhos, iniciativas que preenchem nossos dias e o nosso coração. Por isso é fundamental manter “a centralidade da pessoa de Cristo”1na nossa vida espiritual: Ele é o caminho para entrar em comunhão com o Pai no Espírito Santo. Nele se revela o mistério de quem é o homem2, para o que está chamado. Caminhar com Cristo implica crescer em conhecimento próprio e aprofundar no próprio mistério pessoal. Deixar que Cristo seja o centro de nossas vidas nos faz “redescobrir com luzes novas o valor antropológico e cristão dos diferentes meios ascéticos. É chegar à pessoa na sua integridade: inteligência, vontade, coração, relações com os outros”3.

Essa pessoa a quem temos que “chegar” somos nós mesmos e também todos aqueles que fazem parte da nossa vida de alguma maneira, pela nossa amizade, pelo nosso apostolado. A formação que recebemos e damos deve abranger a inteligência, a vontade e os afetos, sem deixar de lado nenhum desses elementos, nem simplesmente submeter algum deles aos outros. Aqui o foco será a formação da afetividade, sabendo que é essencial que se apoie numa boa formação intelectual. Considerar a importância da formação integral vai nos permitir redescobrir a grande verdade da identificação que são Josemaria estabelecia entre fidelidade e felicidade4.

Formar-se para entrar em sintonia com Jesus

Algumas pessoas, quando pensam na formação, tendem a considerá-la como um saber. Sendo assim, quem recebeu bons conteúdos doutrinais, ascéticos e profissionais ao longo da vida teria uma boa formação. Mas um conceito deste estilo não é suficiente: para abranger a integridade da pessoa é preciso pensar na formação como um ser. Um bom profissional sabe a ciência e a técnica que a sua profissão requer, mas tem algo mais: adquiriu hábitos – modo de ser – que o ajudam a aplicar bem essa ciência e essa técnica que possui (hábitos de atenção aos outros, de concentração no trabalho, de pontualidade, de lidar com sucessos e fracassos, de perseverança, etc.).

Da mesma maneira, ser um bom cristão não é simplesmente saber – no nível adequado à sua própria situação na igreja e na sociedade – a doutrina sobre os sacramentos, ou sobre a oração, ou sobre as leis morais gerais e profissionais. Estamos falando de um objetivo muito mais alto: mergulhar no mistério de Cristo para conhecer a sua dimensão, a sua profundidade (cfr. Ef 3,18), deixar que a sua Vida entre na nossa, e poder repetir com São Paulo que “eu vivo, mas não eu: é Cristo que vive em mim” (Gal 2,20). Isto é: ser “alter Christus, ipse Christus”5, deixar que a graça nos transforme progressivamente para nos configurar com Ele. Esse permitir que a graça atue não consiste só em evitar obstáculos passivamente: o Espírito Santo não nos transforma em Cristo sem a nossa cooperação livre. E isso não é suficiente: entregar-nos ao Senhor, dar a nossa vida, não é só entregar as nossas decisões, os nossos atos; é também dar o nosso coração, os nossos afetos, inclusive a nossa espontaneidade. Para isso é imprescindível uma boa formação intelectual e doutrinal que configure a cabeça, que incida em nossas decisões, mas também é necessário que a doutrina penetre no coração da pessoa. Isso exige luta... e requer tempo. Em outras palavras, é necessário adquirir virtudes e a formação consiste exatamente nisso.

Muita gente pensa que insistir nas virtudes pode levar ao voluntarismo. Não há nada mais irreal do que esse pensamento. Talvez na raiz dessa confusão esteja uma visão errada da virtude, que a considera um simples suplemento de força na vontade, que faz a pessoa ser capaz de cumprir a norma moral mesmo quando não tem a menor vontade. Essa é uma ideia muito difundida e, efetivamente, de origem voluntarista. A virtude consistiria praticamente na capacidade de ir contra as próprias inclinações quando a norma moral exige isso. Claro que há algo de verdade nisso, mas essa visão é incompleta e transforma as virtudes em qualidades frias, que levariam à negação prática das próprias inclinações, interesses e afetos e, sem querer, acabariam convertendo a indiferença em um ideal: como se a vida interior e a entrega consistissem em conseguir não se sentir atraído por nada que pudesse ser um obstáculo para as decisões futuras.

Enxergar a formação deste modo impediria “atingir” a pessoa na sua integridade: inteligência, vontade e afetos não estariam crescendo juntos, de mãos dadas, ajudando-se mutuamente: pelo contrário, uma dessas faculdades estaria aniquilando alguma das outras duas. O desenvolvimento da vida interior exige essa integração e jamais nos levaria a perder interesses e afetos; não tem como objetivo que as coisas não nos afetem, que não nos importemos com o que é importante, ou que o que é doloroso não doa. É o oposto: enche o nosso coração de um amor tão forte, que nos capacita para enxergar os sentimentos num contexto mais amplo, dando-nos recursos para enfrentar os mais difíceis e captar o sentido positivo e transcendente dos mais agradáveis.

O Evangelho nos mostra o interesse sincero do Senhor pelo descanso dos seus: “vinde, a sós, para um lugar deserto, e descansai um pouco” (Mc 6,31), ou também a reação de seu coração diante do sofrimento de seus amigos, como Marta e Maria (cfr. Jo 11,1-44). Não dá para imaginar que Jesus estivesse fingindo nesse momento, como se no fundo, por sua união com o Pai, o que acontecia no seu entorno fosse indiferente. São Josemaria falava sobre amar o mundo e amá-lo apaixonadamente6, i incentivava a colocar o coração em Deus e, por Ele, nos outros, no nosso trabalho profissional e apostólico, porque “o Senhor não nos quer secos, rígidos, como uma matéria inerte”7. A disponibilidade, por exemplo, não é a disposição daquele que vê com indiferença tanto uma coisa quanto a outra, porque já conseguiu perder qualquer interesse, talvez para não sofrer quando lhe peçam algo que não goste; a disponibilidade é a disposição nobre de quem sabe prescindir de algo bom para concentrar-se em outra coisa que Deus lhe pede no momento, porque o que a pessoa deseja profundamente é viver para Deus.É alguém que tem o coração grande, com interesses, com ambições boas, mas que sabe superá-los quando convém, não porque os negue ou tente não ser afetado por eles, mas porque seu interesse em amar e servir a Deus é muito maior. E não só é maior, como é – foi se convertendo em – o que dá sentido e contém em si todos os outros interesses.

Comprazer-se com a prática das virtudes

A formação das virtudes exige luta, vencer a própria inclinação quando esta se opõe aos atos bons. Esta é a parte de verdade contida no conceito reducionista – voluntarista – de virtude, que falamos anteriormente. Mas a virtude não consiste nesta capacidade de se opor à inclinação. É muito mais do que isso: consiste na formação da inclinação. O objetivo não é sermos capazes de deixar a afetividade de lado para guiar-nos por uma regra externa, e sim formar a afetividade de tal maneira que sejamos capazes de regozijar-nos com o bem realizado. A virtude consiste precisamente nesse “saborear” o bem, na formação – por assim dizer – do bom gosto: “feliz quem na lei do Senhor encontra sua alegria e nela medita dia e noite” (Sal 1,2). Resumindo: a virtude é a formação da afetividade e não o hábito de se opor sistematicamente a ela.

Enquanto a virtude não está formada, a afetividade pode insinuar uma resistência ao ato bom e nesse momento é preciso vencê-la. Mas o objetivo não é simplesmente conseguir vencer: é desenvolver o gosto por esse comportamento. Quando se possui a virtude, o ato bom pode continuar custando esforço, mas se faz com alegria. Por exemplo: levantar-nos da cama pontualmente de manhã – o minuto heroico8 provavelmente vai nos custar sempre: pode ser que nunca chegue o dia em que ao tocar o despertador não tenhamos a menor vontade de continuar um tempinho a mais na cama. Mas se sempre nos esforçarmos para vencer essa preguiça por amor a Deus, chega o momento em que fazer isso nos alegra e ceder à comodidade nos incomoda, deixa um sabor amargo. Paralelamente, para uma pessoa justa, levar um produto do supermercado sem pagar, não seria apenas proibido pela lei, seria discordante com as disposições do seu coração. Essa configuração da afetividade que produz essa alegria diante do bem e o sabor amargo diante do mal não é um efeito colateral da virtude, é um componente essencial dela. Por isso a virtude nos faz capaz de desfrutar do bem.

Esta não é uma ideia meramente teórica. Pelo contrário: tem uma grande incidência prática saber que quando lutamos não estamos nos acostumando a sofrer com resignação, e sim aprendendo a deleitar-nos com o bem, ainda que nesse momento aquilo nos contrarie.

A formação das virtudes faz com que as faculdade e os afetos se centrem no que pode satisfazer verdadeiramente as aspirações mais profundas e deixem em segundo plano aquelas que não são tão importantes. Formar-se nas virtudes é aprender a ser feliz, a desfrutar do e com o que é grandioso, é, em resumo, preparar-se para o Céu.

A formação das virtudes faz com que as faculdade e os afetos se centrem no que pode satisfazer verdadeiramente as aspirações mais profundas e deixem em segundo plano aquelas que não são tão importantes. Formar-se nas virtudes é aprender a ser feliz, a desfrutar do e com o que é grandioso, é, em resumo, preparar-se para o Céu.

Se formar-se é crescer em virtudes e as virtudes consistem na ordem dos afetos, pode-se concluir que toda formação é formação da afetividade. Pode ser que ao ler isto, alguém conteste, já que no esforço para adquirir virtudes, sua luta era mais operativa do que afetiva e, inclusive, acrescentar que chamamos de virtudes os hábitos operativos. É verdade. Mas se as virtudes nos ajudam a fazer o bem é porque nos ajudam a sentir corretamente. O ser humano sempre se move em direção ao bem. O problema moral é que o que não é bom se apresenta aos nossos olhos como se fosse bom em uma situação concreta. E isso acontece por causa da desordem das nossas tendências: às vezes exageramos o valor de algum bem achando que é mais desejável do que outro bem que possui um valor objetivo maior, porque responde ao bem global da pessoa. Por exemplo: alguma vez podemos estar numa situação em que poderíamos dizer a verdade ou não. A tendência natural que temos à verdade vai nos apresentá-la como um bem. Mas também temos uma tendência natural à aprovação das pessoas que, nesse caso concreto, vai nos apresentar a mentira como bem, já que ficaríamos mal diante daquela pessoa se disséssemos a verdade. Essas duas tendências entram em conflito. Qual delas prevalecerá? Vai depender de qual do dois bens é mais importante para nós e nesta avaliação a afetividade tem um papel decisivo. Se está bem ordenada, ajudará a razão a perceber que a verdade é muito valiosa e que não é desejável a aprovação dos outros se exige renunciar à verdade. Esse amor à verdade acima de outros bens que também nos atraem é precisamente o que chamamos de sinceridade. Mas se a vontade de ficar bem é mais forte do que a atração à verdade, é mais fácil que a razão se engane, e mesmo sabendo que isso não é bom, julgue conveniente mentir. Ainda que saibamos perfeitamente que não se deve mentir, consideramos que neste caso é bom fazê-lo.

A afetividade ordenada ajuda a fazer o bem porque ajuda, antes, a percebê-lo. Por isso interessa muito saber formá-la. Mas como conseguir isso? Vamos expor algumas ideias no próximo editorial. Agora nos limitaremos a ressaltar algo que é bom saber antes de enfrentar esse tema.

A vontade e os sentimentos

Acabamos de afirmar que uma afetividade ordenada ajuda a atuar bem. Pode-se dizer o mesmo no sentido contrário: atuar bem nos ajuda a ordenar a afetividade.

Sabemos por experiência – e é bom não esquecer se não quisermos sofrer frustrações e desânimos – que não podemos controlar diretamente os nossos sentimentos: se de repente ficamos desanimados não adianta apenas decidirmos ficar alegres. E acontece o mesmo se queremos ser mais audazes em algum momento determinado, ou menos tímidos, ou não ter medo, vergonha, ou não sentir atração por algo que julgamos desordenado. Outras vezes, quem sabe, desejaríamos estar mais à vontade com uma pessoa por quem temos uma certa rejeição involuntária por razões ínfimas, mas que não conseguimos superar e percebemos que simplesmente querer lidar com ela com simplicidade não resolve a dificuldade. Em suma, não basta uma decisão voluntária para que os sentimentos se ajustem aos nossos desejos. Mas, por outro lado, não é porque a vontade não controla diretamente os sentimentos que ela não exerce nenhuma influência sobre eles.

Na ética, o controle que a vontade pode exercer sobre os sentimentos se qualifica como político, porque é semelhante ao que um governante tem sobre as decisões dos seus subordinados: não pode controlá-las diretamente, uma vez que eles são livres; mas pode tomar certas medidas – por exemplo, diminuir os impostos – esperando que produzam certos resultados (o aumento do consumo ou dos investimentos) por meio da vontade livre dos cidadãos. Nós também podemos realizar certos atos esperando que suscitem sentimentos concretos: considerar o bem que um trabalho apostólico pode fazer e assim sentir-nos mais audazes para pedir donativos para o seu início. Podemos considerar a nossa filiação divina esperando que um contratempo profissional nos afete menos no campo sensível. Sabemos que tomar uma dose alta de álcool pode provocar um estado transitório de euforia; e que se voluntariamente ficamos dando voltas em pensamentos, quando alguém nos tratou de uma forma que não gostamos, pode nos provocar reações de ira. Estes são apenas alguns exemplos da influência, sempre indireta, que a vontade pode exercer a curto prazo sobre os sentimentos.

Mas é muito mais importante a influência que a vontade exerce sobre a afetividade a longo prazo, porque é precisamente esse tipo de influência que permite lhe dar forma, formá-la. Se trata de uma influência – a longo prazo – que se produz inclusive sem que o sujeito se proponha a isso, e que é mais importante para a nossa reflexão. Isto acontece porque os atos voluntários não causam algo só exteriormente, eles produzem um efeito interior: contribuem para que criemos uma “conaturalidade” afetiva com o bem em direção ao qual a vontade se move. A proposta destas páginas não é explicar como isso acontece, mas interessa ressaltar dois pontos.

Querer o bem

O primeiro desses pontos é que o bem em direção ao qual a vontade se move – e com o qual se cria a “conaturalidade” – pode ser muito diferente do que se percebe olhando de fora. Duas pessoas que realizam uma mesma tarefa podem estar fazendo duas coisas bem diferentes: uma pode estar simplesmente tentando não “fazer feio” diante de quem lhe encarregou a tarefa, enquanto a outra tem a intenção de servir. A segunda está formando uma virtude e a primeira não, porque o bem que persegue e com o qual se configura é o de evitar ficar mal diante da autoridade. É verdade que essa situação é melhor do que, por exemplo, negar-se a fazer aquilo, mas enquanto não se chega à atitude ideal, essa pessoa não estará formando a virtude, sejam quantas forem as repetições daquele ato. Por isso é tão importante retificar, purificar constantemente a intenção para ir acertando progressivamente os motivos pelos quais realmente vale a pena fazer algo e, assim, configurar-nos afetivamente com eles.

Todos temos experiências, próprias ou alheias, de como limitar-se a respeitar as regras facilmente se converte em um peso. O exemplo do filho mais velho da parábola nos alerta para esse perigo (cfr. Lc 15,29-30). Por outro lado, buscar sinceramente o bem que essas regras promovem nos alegra e nos liberta. Poderíamos dizer, enfim, que não é o fazer que nos forma: é o querer. Não importa apenas o que faço, mas o que quero quando faço9. Portanto, a liberdade é decisiva: não basta fazer algo, é preciso querer fazê-lo, “porque simplesmente temos vontade, que é a razão mais sobrenatural”10, porque só assim formamos a virtude, isto é, aprendemos a desfrutar do bem. Um mero cumprimento que se traduza em “cumpro e minto”11, não promove a liberdade, nem o amor, nem a alegria. O que os promove é entender por que essa atuação é nobre e vale a pena, e deixar-se guiar por essas razões ao atuar.

Uma formação demorada

O segundo ponto que nos convém considerar é que o processo de “conaturalização” afetiva com o bem normalmente é lento. Se a virtude fosse só a capacidade de superar a resistência afetiva para fazer o bem, poderíamos alcançá-la muito mais rápido. Mas já sabemos que a virtude não está totalmente formada enquanto o bem não tiver um reflexo positivo na afetividade12. Logo, é preciso ter paciência na luta, porque alcançar alguns dos objetivos que vale a pena propor-se pode demandar um tempo longo, talvez até anos. E a resistência ao ato bom que continuaremos experimentando durante esse tempo não deve ser interpretada como um fracasso ou como sinal de que nossa luta não é sincera, ou então de que é uma luta pouco decidida. Trata-se de um caminho progressivo, no qual cada passo costuma ser pequeno e por isso é difícil medir o avanço que supõe. Só depois de algum tempo, olhando para trás, veremos que progredimos mais do que pensávamos.

Se, por exemplo, temos reações de ira que gostaríamos de superar, começaremos nos esforçando para reprimir as suas manifestações externas; talvez no começo nos pareça que não estamos conseguindo nada, mas se formos constantes, as ocasiões em que vencemos – inicialmente escassas – vão sendo mais e mais frequentes e, depois de um tempo – talvez longo – chegaremos a consegui-lo habitualmente; mas não basta, porque nossa meta não era reprimir manifestações externas, e sim moldar uma reação interna, ser mais mansos e pacíficos, de maneira que essa reação mais serena seja a própria do nosso modo de ser. A luta, portanto, é muito mais longa, mas... Não é muito mais bonita, libertadora e fascinante? É uma luta que busca alcançar paz interior e pôr em prática a vontade de Deus, e não a mera submissão violenta dos sentimentos.

O Papa Francisco, ao explicar o seu princípio de que o tempo é superior ao espaço13, diz que “dar prioridade ao tempo é se ocupar de iniciar processos mais do que possuir espaços”14. Na vida interior vale a pena colocar em prática processos realistas e generosos. E para que produzam seus frutos, é preciso saber esperar. “Este princípio permite trabalhar em longo prazo, sem a obsessão pelos resultados imediatos. Ajuda a suportar, com paciência, situações difíceis e hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe. É um convite a assumir a tensão entre plenitude e limite”15. Efetivamente, é muito importante que a consciência da nossa limitação não paralise nossa aspiração à plenitude que Deus nos oferece. Assim como também é importante que essa nobre ambição não ignore ingenuamente que somos limitados.

Jogar alto na formação, propor-se não só a realizar atos bons, mas ser bons, ter um bom coração, vai nos permitir distinguir o ato virtuoso daquele que poderíamos denominar como “ato conforme a uma virtude”. Este último seria o ato que corresponde a uma virtude e contribui passo a passo para formá-la, mas que, por ainda não proceder de um hábito maduro, precisa se sobrepor frequentemente a uma afetividade que empurra para a direção contrária. O ato virtuoso, pelo contrário, seria o de quem desfruta durante a realização desse bem, inclusive quando supõe esforço. Este é o objetivo.

Uma formação integral, que consegue moldar a afetividade, é lenta. Quem quer se formar assim não cai na ingenuidade de pretender submeter os sentimentos à própria vontade, pisando os que desagradam ou provocando aqueles que desejaria ter. Entende que sua luta deve estar mais centrada nas decisões livres com as quais, ao tentar fazer a vontade de Deus, dá respostas a esses sentimentos, acolhendo ou rejeitando as sugestões de comportamento que cada um deles suscita. São essas decisões que – indiretamente e a longo prazo – acabam moldando a interioridade da qual procedem esses afetos.

Um mundo dentro de você

À medida em que a virtude vai se formando, não só se realiza o ato bom com mais naturalidade e alegria, como também se possui mais facilidade para identificar qual é esse ato. “‘Para poder conhecer a vontade de Deus, o que é bom, o que Lhe é agradável e o que é perfeito’” (Rom 12, 2), é necessário o conhecimento da lei de Deus em geral, mas não é suficiente: é indispensável uma espécie de “conaturalidade” entre o homem e o verdadeiro bem. Esta “conaturalidade” fundamenta-se e desenvolve-se nos comportamentos virtuosos do próprio homem”16.

Isto se deve, em grande parte, ao fato de que a afetividade é a primeira voz que ouvimos na hora de avaliar se um comportamento é oportuno ou não: antes que a razão examine se é ou não conveniente realizar algo prazeroso, já sentimos uma atração. A virtude, ao tornar o bem atrativo afetivamente, consegue que a voz da afetividade já inclua uma avaliação moral – em relação ao bem global da pessoa – do ato em questão. Faz com que, por exemplo, mesmo que a possibilidade de fazer uma “boa figura” nos atraia, a mentira nos parece desagradável.

Num ponto de Caminho, encontramos isso de maneira implícita, mas clara: “Para que hás de olhar, se ‘o teu mundo’, o levas dentro de ti?”17. São Josemaria está falando de um olhar para algo exterior, colocando-o em relação com o mundo interior. Um olhar inadequado nem precisa de repreensão, porque já se apresenta como desnecessário, já que o mundo interior – meu mundo – o rejeita. São Josemaria está nos dizendo que se há uma interioridade rica, não só se evita as coisas que nos causam dano, estas nem apresentam grandes perigos, já que a própria interioridade sente repugnância por elas: não apenas são detectadas como más, mas como desagradáveis, destoantes, descolocadas...; claro que podem nos atrair de alguma forma, mas é fácil rejeitar essa atração, porque quebram a harmonia e a beleza do clima interior. Por outro lado, se você não tem dentro um mundo interior, evitar esse olhar vai supor um esforço visível.

Realismo

O que estamos dizendo até agora mostra como o crescimento nas virtudes vai nos tornando mais realistas. Algumas pessoas têm a ideia – normalmente não formulada – de que viver de acordo com as virtudes supõe fechar os olhos para a realidade, por um motivo muito alto, porque ao fechar-nos, em parte, para este mundo, esperamos um prêmio no outro. Pelo contrário: viver como Cristo, imitar suas virtudes, abre-nos à realidade e não permite que nossa afetividade nos engane na hora de avaliar e decidir como responder a ela.

A pobreza, por exemplo, não supõe renunciar a considerar o valor dos bens materiais em vista da vida eterna; pelo contrário, só a pessoa que vive desprendida valoriza os bens em sua justa medida: nem pensa que são maus, nem lhes dá uma importância que não têm. Quem, por sua vez, não se esforça para viver assim, acabará lhes dando um valor mais alto do que o que realmente têm e isso incidirá em suas decisões: será pouco realista, mesmo que pareça um autêntico homem do mundo, que sabe se mover em qualquer ambiente. A pessoa sóbria sabe desfrutar de uma boa comida; a que não é dá uma importância a esse prazer que ele não tem. Poderíamos dizer algo parecido de qualquer outra virtude. Como Jesus disse a Nicodemos: “quem pratica a verdade se aproxima da luz” (Jo 3,21).

Un círculo virtuoso

Por fim, orientar nossa afetividade desenvolvendo as virtudes significa clarificar nosso olhar, é como limpar os óculos das manchas que o pecado original e os pecados pessoais deixaram neles e que nos dificultam ver o mundo como realmente é. “Poderíamos mesmo dizer que a não redenção do mundo consiste, precisamente, na não decifração da criação, no não reconhecimento da verdade, uma situação que depois conduz, inevitavelmente, ao domínio do pragmatismo, e desse modo faz com que o poder dos fortes se torne o deus deste mundo”18.

Uma afetividade ordenada ajuda a razão a ler a criação, a reconhecer a verdade, a identificar o que verdadeiramente nos convém. Esse correto juízo da razão facilita a decisão voluntária. O ato bom que vem depois dessa decisão contribui com a nossa “conaturalização” com o bem perseguido e, portanto, com a ordenação da afetividade. É um autêntico círculo virtuoso que nos conduz a sentirmo-nos progressivamente livres, senhores de nossos próprios atos e, consequentemente, capacita-nos para entregarmo-nos realmente ao Senhor, porque só quem se possui pode se entregar.

A formação somente é integral quando alcança todos esses níveis. Em outras palavras, só existe verdadeira formação quando as diversas faculdades que intervêm no atuar humano – razão, vontade e afetividade – estão integradas: não brigam entre si, colaboram umas com as outras. Se não se conseguisse moldar os afetos, ou seja, se as virtudes fossem entendidas como uma força adicional na vontade que a faz capaz de ignorar o nível afetivo, as normas morais e a luta para vivê-las seriam repreensivas e não se conseguiria uma autêntica unidade de vida, porque sempre sentiríamos dentro de nós mesmos forças que atraem poderosamente em sentidos contrários e que geram instabilidade. Uma instabilidade que conhecemos bem, porque é o nosso ponto de partida, mas que vamos superando passo a passo, à medida que conduzimos essas forças progressivamente à harmonia, de modo que chegue o momento em que essa razão mais sobrenatural que é porque eu quero mesmo, signifique porque eu gosto, porque me atrai, porque se encaixa no meu modo de ser, com o mundo interior que eu formei; Enfim, porque fui aprendendo a tornar meus os sentimentos de Jesus Cristo.

Caminhamos assim rumo à meta altíssima e atrativa ao mesmo tempo, que São Paulo nos propõe: “Haja entre vós o mesmo sentir e pensar que no Cristo Jesus” (Fil 2,5), e percebemos que assim nos revestimos do Senhor Jesus Cristo (cfr. Rom 13,14). “A vida de Cristo é a nossa vida (...). O cristão deve, pois, viver segundo a vida de Cristo, tornando próprios os sentimentos de Cristo, de tal maneira que possa exclamar com São Paulo: Non vivo ego, vivit vero in me Christus, não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim”19. E já que a fidelidade consiste precisamente nisto, em viver, em querer, em sentir como Cristo, não porque nos fantasiamos de Cristo, mas porque seja esse o nosso modo de ser, então, ao fazer a vontade de Deus, ao sermos fiéis, somos profundamente livres, porque fazemos o que queremos, o que gostamos, o que temos vontade. Profundamente livres e profundamente fiéis. Profundamente fiéis e profundamente felizes.


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Notas

1 F. Ocáriz, Carta Pastoral, 14-02-2017, n.8

2 Cfr. Concílio Vaticano II, Constituição pastoral Gaudium et spes (7-02-1965), n.22

3 F. Ocáriz, Carta Pastoral, 14-02-2017, n.8

4 São Josemaria, Sulco, n.84: “A tua felicidade na terra identifica-se com a tua fidelidade à fé, à pureza e ao caminho que o Senhor te traçou.” Cfr. também, por exemplo, São Josemaria, Instrução, maio-1935/14-IX-1950, 60; Instrução, 8-XII-1941, 61; São Josemaria, Amigos de Deus, n.189

5  São Josemaria, É Cristo que Passa, n.96

6 Basta mencionar, como exemplo, o título da homília “Amar o mundo apaixonadamente”, em Entrevista com Mons. Josemaria Escrivá, nn. 113-123.

São Josemaria, Amigos de Deus, n.183

8 São Josemaria, Caminho, n.206

9 Na realidade, do ponto de vista moral, o que faço é precisamente o que quero quando o faço. No entanto, para o nosso objetivo, não é necessário explicar porque isso é assim.

10 São Josemaria, É Cristo que Passa, n.17.

11Cfr. Dom Álvaro, Carta IX-1975, em Cartas de família I, n.8.

12 No artigo anterior está claro que isto não significa que o bem não custe nenhum esforço ou, o que é a mesma coisa, que o mal não atraia de nenhuma forma.

13 Cfr. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, nn. 222-225.

14 Ibidem, n. 223. O que está em itálico é original.

15 Ibidem.

16São João Paulo II, Encíclica Veritatis Splendor, 6-VIII-1993, n.64.

17 São Josemaria, Caminho, n.184.

18 Joseph Ratzinger – Bento XVI, Jesus de Nazaré, Parte II, cap. 7, n.3.

19São Josemaria, É Cristo que Passa, n.103.

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