A utopia da união dos 'povos minoritários' no 'pai' russo - Vatican News via Acervo Católico

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A utopia da união dos 'povos minoritários' no 'pai' russo - Vatican News via Acervo Católico
Fonte: VATICANO

A união universal é a nova religião de Moscou em um mundo dividido e assolado por conflitos. Desestabilização, propaganda e financiamento de elites e oligarcas "amigos" leais a Moscou, juntamente com as Igrejas como instrumentos de poder. Depois da Ucrânia, o Cazaquistão é o país mais vulnerável, com a maior fronteira terrestre e a maior diáspora. Os EUA, a UE e os parceiros internacionais devem fortalecer as relações econômicas e diplomáticas com os territórios visados ​​por Moscou.

Pe. Stefano Caprio* A principal festa nacional da Rússia de 4 de novembro, Den Narodnogo Edinstva ("Dia da Unidade Nacional"), foi também neste ano a mais solene ocasião para celebrar a ideologia de Estado que proclama a superioridade da Rússia sobre todos os outros povos de sua Federação e, por extensão simbólica, sobre os do resto do mundo. Nela é recordado o evento tão almejado ainda hoje pela Rússia de Vladimir Putin: a vitória sobre os poloneses invasores e sobre todo o Ocidente em 1612, após o ventênio do Tempo das Perturbações que haviam apagado completamente o sonho da "Terceira Roma" do primeiro czar, Ivan, o Terrível. As semelhanças residem não apenas na exaltação do patriotismo bélico, consagrado nas estátuas de bronze de Kuzma Minin e Dmitry Pozharsky em frente aos Portões Vermelhos (Krasnye Vorota), a entrada principal do Kremlin, com os dois líderes da resistência aos poloneses que apontam para o Ocidente, para onde os inimigos da Rússia devem retornar humilhados e derrotados. As Perturbações foram também o fracasso das políticas do sucessor do czar Ivan, seu fiel assistente Boris Godunov, que havia tentado reformar o país, passando da autocracia imperial para a oligarquia feudal, chegando a inventar até mesmo a instituição do Patriarcado de Moscou para dar à Igreja Ortodoxa um papel institucional. A crise econômica, as revoltas populares e uma série de calamidades naturais levaram o czar Boris a uma morte prematura, abrindo caminho para conflitos entre as grandes famílias dos Boiardas e os traidores que conduziram os poloneses até Moscou. A restaurar a ordem à Rússia, após a vitória sobre os invasores, foi a dinastia dos Romanov, inaugurada em 1613 pela dupla reinante de pai e filho, o patriarca Filaret e o czar Mikhail, uma expressão da sinfonia do trono e do altar da tradição bizantina com um toque russo. Tudo isso inspira ainda hoje a Rússia do czar Putin e do patriarca Kirill hoje, na guerra contra o Ocidente e na subjugação da diversidade interna do império. Como recordou o deputado da Duma de Moscou, Pavel Krašeninnikov, o Dia da Unidade Popular recorda "o renascimento espiritual da Rússia após a tragédia do Tempo das Perturbações" e a superação da destruição e da fragmentação que foi possível graças à "fidelidade das gerações subsequentes aos valores tradicionais da família, a única forma de regulação da vida em comum capaz de unir em uma única Pátria, na história e na cultura". Precisamente a relação entre o patriarca-pai e o czar-filho, que persistiu de diversas formas ao longo de todo século XVII, demonstra este sentido de "família como fundadora do Estado" como definição das relações de poder nos vários níveis da sociedade, como de fato ocorria em todos os reinos e principados europeus em diferentes graus. Família, nessa concepção, significa "sucessão e submissão", como na ditadura soviética do sucessor de Lenin e "Pai dos Povos", Josef Stalin, de certa forma a verdadeira reencarnação de Ivan, o Terrível. Em 4 de novembro, Putin retomou, por sua vez, o papel "paterno" stalinista, assinando o decreto que estabelece duas novas festividades: o Dia dos Estados menores nativos da  Federação Russa e o Dia das Línguas dos Povos da Rússia. Esses feriados serão celebrados em 30 de abril e 8 de setembro, para "preservar as tradições, os modos de vida e os valores culturais dos povos minoritários" e seu patrimônio linguístico, no aniversário do poeta daguestani Rasul Gamzatov, unindo as diversas línguas ao russo. O significado desses novos feriados, que visam responder de alguma forma aos vários nacionalismos locais que estão ressurgindo, é precisamente a reafirmação do papel do "povo-pai" russo que impõe a "língua-mãe" a todos os "filhos menores" na grande família da União universal. Precisamente a partir desta concepção se desencadeou o conflito com a Ucrânia, que é considerada pelos russos o primeiro dos "povos menores", o principal irmão de sangue junto com a Belarus, relegando todos os outros povos ex-soviéticos e federais a meio-irmãos ou filhos adotivos. Assim como com a Ucrânia, Putin reiterou repetidamente que o Cazaquistão, o mais vasto território dos "povos menores", que "nunca teve sua própria soberania", e ainda mais profundas são as tensões com a Armênia, uma terra de soberania antiguíssima e sempre controversa, posteriormente fundida à grande família russa após o genocídio perpetrado pela Turquia moderna no início do século XX. A Rússia busca manter os armênios subjugados graças ao apoio da Igreja Apostólica, a principal força pró-Rússia no país, em conflito com o primeiro-ministro Nikol Pashinyan, que pretende construir uma "nova Armênia" independente e pró-ocidental. Por essas razões, a Rússia também inclui os países do Cáucaso e da Ásia Central como alvos de sua guerra global, bem como outras partes da Europa Oriental, dos países bálticos à Moldávia e ao Mar Negro. A guerra está em andamento em todas as direções, inclusive militarmente, se necessário, como ocorreu na Geórgia em 2008-2009. Isso levou à completa submissão de Tbilisi a Moscou, sufocando qualquer protesto graças à ditadura oligárquica do Sonho Georgiano, o partido fundado pelo bilionário de Putin, Bidzina Ivanishvili. A guerra híbrida está se desenvolvendo cada vez mais graças à dezinformatsija (desinformação), provocações e sabotagens, e a ações destinadas a aumentar a tensão e o conflito dentro das sociedades, não apenas em países vizinhos, mas em todo o mundo. Desestabilização, propaganda, financiamento de elites "amigas" e oligarcas leais a Moscou e, por último, mas não menos importante, o uso da religião e das igrejas como instrumentos de poder, como é evidente na Ucrânia, Armênia, Moldávia e Romênia, mas agora também na África e em vários países asiáticos, todos territórios confiados à única e verdadeira Igreja Ortodoxa de Moscou. O Cazaquistão é o país mais vulnerável, com a fronteira terrestre mais longa com a Rússia e a maior diáspora russa depois da Ucrânia. Além disso, o exército cazaque não é nem remotamente comparável ao ucraniano em termos de preparo militar, e milhares de quilômetros de fronteira estão efetivamente indefesos. Enquanto Moscou estiver envolvida na Ucrânia, não está disposta a abrir uma nova frente, mas a pressão por influência informacional e econômica é muito ativa em relação a Astana, que tenta conduzir sua política de equilíbrio entre Norte, Leste, Oeste e Sul. Os Estados Unidos podem desempenhar um papel importante na região da Ásia Central, como ficou evidente no recente encontro com os líderes dos países centro-asiáticos no formato "5+1" em Washington, onde terras raras, particularmente cobiçadas nos dias de hoje, estão sendo discutidas como uma alternativa às chinesas. No entanto, a influência russa na região permanece difícil de conter. Mesmo na Armênia, após o acordo americano com o Azerbaijão em agosto, Moscou continua tentando restabelecer seu papel histórico, o que resulta em grandes tensões Mesmo em relação a Baku, que por sua vez busca consolidar um papel independente nos equilíbrios regionais. A Rússia está perdendo o controle sobre todo o espaço pós-soviético, mas a janela de oportunidade para que esses países façam a transição para sistemas verdadeiramente democráticos não permanecerá aberta por muito tempo, porque os russos ainda são capazes de minar sua estabilidade mesmo sem invasões militares, como também será o caso para o futuro da própria Ucrânia. Os EUA, a UE e outros parceiros internacionais precisarão fortalecer as relações econômicas e diplomáticas nesses territórios para impedir que a bandeira do império moscovita seja hasteada novamente, como aconteceu nos últimos dias na devastada prefeitura de Pokrovsk, a mais recente conquista russa na fronteira ucraniana. Trinta e cinco anos se passaram desde o fim da Guerra Fria e, após quase quatro anos de intensos conflitos na Ucrânia, um novo equilíbrio global de poder parece estar emergindo, um de guerra híbrida, com exercícios nucleares realizados pelos Estados Unidos e pela Rússia, que lembra a era Brejnev-Nixon, quando o mundo estava em equilíbrio entre impérios sempre prontos para uma guerra total. Como afirma o especialista em cultura russa Yevgeny Dobrenko, "com o fim do comunismo, teve início também o fim do Ocidente", que se desgasta no bipopulismo de radicais soberanistas e antissoberanistas, bem representados por Donald Trump e pelo novo prefeito de Nova York, Zohran Mamdani. Por um lado, no Oriente, temos uma Rússia moribunda que sonha com seu retorno ao centro da política mundial com operações militares suicidas, mas que, na realidade, está se rendendo cada vez mais à subjugação feudal do império econômico chinês. Por outro lado, o Ocidente é incapaz de encontrar uma forma compartilhada de resposta eficaz, além de sanções intermináveis ​​que são cada vez mais contraditórias e fáceis de contornar. A Rússia é incapaz de derrotar o Ocidente, mas busca derrubá-lo por dentro, renovando suas utopias, que do comunismo se transformam no "cristianismo universal" da ortodoxia russa, que em celebrações recentes foi definida por Putin como "ideologias intimamente relacionadas, proclamando liberdade e fraternidade, igualdade e justiça". O Patriarca Kirill proclamou que "somos o único povo russo capaz de unir outras culturas sem conflito, como nenhum outro país é capaz de fazer, porque na alma do homem russo predomina um senso de humildade, fundamento da verdadeira unidade com os outros". É a nova religião da Rússia, a utopia da união universal dos povos, em um mundo cada vez mais dividido e conflituoso, em busca de novas revelações para um futuro ainda por descobrir. *Pe. Stefano Caprio é docente de Ciências Eclesiásticas no Pontifício Instituto Oriental, com especialização em Estudos Russos. Entre outros, é autor do livro "Lo Czar di vetro. La Russia di Putin". (Artigo publicado pela Agência AsiaNews)

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