As origens da religião da Rússia - Vatican News via Acervo Católico

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As origens da religião da Rússia - Vatican News via Acervo Católico
Fonte: VATICANO

Existe uma conexão essencial e primordial entre a fé ortodoxa e o poder, como demonstrado já no século XI no "Discurso sobre a lei e a graça", do Metropolita Hilarion, o "manifesto" da fé russa. Além de Filipe II de Moscou, que no final do século XVI se rebelou contra os massacres do primeiro czar, Ivan IV, o Terrível, e foi por isso sufocado em sua cela monástica, não se conhecem de outros oponentes eclesiásticos às guerras santas dos monarcas.

Pe. Stefano Caprio* Uma das questões mais dramáticas e controversas da Rússia da estação bélica da Rússia putiniana diz respeito ao seu fundamento religioso, a proclamação da "guerra santa" pelo Patriarca de Moscou, Kirill, e pela grande parte do clero ortodoxo russo, com exceção de uma pequena minoria de sacerdotes pacifistas imediatamente marginalizados, demitidos do estado clerical e exilados no exterior. A impressão é de que se trata de um retorno às interpretações medievais da guerra religiosa entre cristãos e muçulmanos, com uma retórica digna das Cruzadas de mil anos atrás. Certamente há alguma verdade nessa perspectiva, mas não como uma imitação russa de um passado latino e ocidental, mas sim como um retorno às suas próprias origens do batismo milenar. Enquanto o Papa Urbano II pregava sua homilia para encorajar a conquista de Jerusalém e da Terra Santa no Concílio de Clermont, em 1095, a Rus' de Kiev passava o primeiro século de sua história nas lutas fratricidas de vários príncipes, e logo em seguida seria submersa e invadida por populações asiáticas e hordas mongóis, desaparecendo da história por dois séculos. A reinterpretação da história antiga, imposta pelos líderes de hoje como imprescindível para justificar a guerra atual, concentra-se precisamente nos eventos e testemunhos daquele primeiro período, desde o Batismo de Kiev em 988 até a invasão dos tártaros em 1240, porque todos os períodos sucessivos da história de Moscou e São Petersburgo na Rússia, e da Ucrânia de Kiev e Odessa, bem como da Belarus de Minsk e Polotsk, envolvendo poloneses, moldavos, romenos, caucasianos e centro-asiáticos dos impérios czarista e soviético, dependem da interpretação do primeiro lendário "século russo". O antropólogo siberiano Roman  Šamolin, reitor da Universidade Aberta de Novosibirsk, propõe rever o "manifesto da fé russa", um dos textos mais eclatantes da Rus' de Kiev, isto é, o "Discurso sobre a lei e a graça", do Metropolita Hilarion, o primeiro sumo hierarca eclesiástico de etnia russa, nomeado pelo príncipe Yaroslav, o Sábio, na primeira metade do século XI, sem a bênção canônica do Patriarca de Constantinopla. Trata-se de um panegírico do príncipe Vladimir, o batizador, e do "povo novo" e abençoado da Rus', em comparação com todos os outros povos e com aqueles de "outras crenças", a começar pelos "judeus pérfidos", segundo a contraposição paulina entre o "povo da Lei" e o povo da Graça que vem de Deus. Hilarion afirma solenemente que "a Lei passou, mas a graça e a verdade encheram toda a terra, e a fé se espalhou entre todas as nações, até entre a nossa nação russa". A polêmica antijudaica, clássicas nos tempos medievais, estende-se neste texto a todos os povos que não reconheceram Cristo, ou que de alguma forma o traíram, caindo em heresia e regredindo à fé idólatra. Assim, "Deus estabeleceu a lei para preparar os homens para receberem a verdade e a graça; para que a natureza humana, governada pela lei, evitando o politeísmo idólatra, aprendesse a crer no Deus único; para que a humanidade, como um vaso contaminado, depois de lavada pela lei e pela circuncisão como pela água, recebesse o leite da graça e o batismo". E o batismo em questão é sobretudo o de Kiev, o novo começo da história cristã, porque "não escrevemos para os incultos, mas para aqueles que se deleitam profundamente com os livros; não escrevemos para os inimigos de Deus, os heterodoxos, mas para os seus filhos; não para os estrangeiros, mas para os herdeiros do reino dos céus". A Graça Divina se reflete na única e verdadeira Ortodoxia, que eleva os "herdeiros" russos acima da lei e do pecado, e "a salvação cristã é benéfica e generosa, pois se estende a todos os confins da terra" e, portanto, "embora os judeus tenham existido antes dos cristãos, os cristãos se tornaram maiores que os judeus pela graça de Cristo". O Discurso de Hilarion concentra-se então no louvor aos poderosos e ao grande batizador Vladimir de Kiev, o príncipe "igual aos apóstolos", estendendo o louvor a seu filho Yaroslav, o Sábio, que, ao derrotar seu meio-irmão Sviatopolk, restaurou a paz entre os principados da Rus'. Entre a fé ortodoxa e o poder existe portanto uma ligação essencial e original, a chamada "sinfonia" de tradição bizantina, mas revisada na versão "apostólica" russa. "E assim foi: a fé portadora da graça espalhou-se por toda a terra e chegou até o nosso povo russo. Os pântanos da Lei secaram, mas a fonte do Evangelho transbordou de água e cobriu a terra, chegando até nós", confiando-se na sabedoria dos príncipes, que serão de alguma forma comparados ou contrastados com o papel de metropolitas e patriarcas apenas em breves momentos da história russa. Em tempos recentes, o Patriarca Kirill mostrou o caminho ao czar Putin apenas nos primeiros anos, e então se submeteu à sua vontade e ardor no conflito com os povos inimigos, do Ocidente em vez da Ásia antiga, mas sem grandes diferenças de conteúdo. Como observa o mais renomado historiador e teólogo da Igreja Russa, o diácono Andrei Kuraev, agora exilado e transferido para a jurisdição de Constantinopla: "Em todo o tempo da Rus' de Kiev, não houve um ano sem guerras internas nos principados e externas com outros povos, e são raríssimos os casos em que os metropolitas tentaram agir como pacificadores, pedindo aos poderosos para reduzir suas ambições e depor suas armas". A tendência foi, antes pelo contrário, aquela oposta, e qualquer conflito, mesmo nos séculos seguintes aos czares, foi justificado e "abençoado" como defesa da verdadeira fé contra os inimigos, como escreve o historiador do século XIX Nikolai Kostomarov, recordando quando o príncipe Ivan I Kalita, que em meados do século XIV queria impor Moscou como o principado dominante, "levantou todo o território russo até Novgorod para se voltar com armas contra Pskov, e o metropolita Teognost lançou uma maldição e excomunhão contra os inimigos, abençoando os exércitos de Ivan". À exceção do Metropolita Filipe II de Moscou, que se rebelou contra os massacres do primeiro czar, Ivan IV, o Terrível, e foi sufocado por isso no final do século XVI na cela monástica onde havia sido trancado, não há casos conhecidos de outros oponentes eclesiásticos das guerras santas dos monarcas da Rússia. Como afirmava o Metropolita Hilarion, "em nós se cumpriu o que foi dito aos povos: O Senhor desnudou o seu santo braço diante de todos os povos; todos os confins da terra verão a salvação do nosso Deus". A grandeza da Rus' era exaltada como aquela do povo chamado a salvar a Terra de todo o mal, já que "Roma eleva louvores a Pedro e Paulo, por meio dos quais adquiriu a fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus; a Ásia, Éfeso e Patmos louvam São João, o Teólogo; a Índia louva São Tomás; o Egito São Marcos; cada terra, cidade e povo honra e glorifica seus mestres que ensinaram a fé ortodoxa. Também nós, portanto, com o que somos capazes, elevaremos um louvor, mesmo que pequeno, ao nosso mestre e preceptor, que realizou grandes e magníficos feitos, o grande príncipe de nossa terra, Vladimir, neto de Igor, o Velho, filho do valoroso Sviatoslav. Ambos, reinando em seu tempo, foram renomados por sua coragem e bravura em muitas terras, e ainda hoje são lembrados e glorificados por suas vitórias e força. Pois eles não dominaram uma nação miserável e desconhecida, mas a nação russa, que é conhecida e celebrada em todos os confins da terra. Nessa memória universal dos antigos reinos cristãos, Hilarion omite apenas o império de Constantinopla e o louvor ao apóstolo André, que evidentemente haviam sido deixados de lado pelos russos, que assumiram seus papéis na comunhão dos defensores da fé. Segundo Šamolin, “na religiosidade russa há uma clara predominância da forma sobre o conteúdo, da imagem sobre o pensamento, do objeto sobre o sujeito, do rito sobre o sentimento e da submissão ao poder em lugar de qualquer reflexão sobre o significado da fé”. Em última análise, “uma dominação do imanente sobre o transcendente” desde as origens do cristianismo de Kiev, ainda mais exacerbada na variante moscovita e persistindo nas subsequentes, desde o império “ocidental” de Pedro, o Grande, até o “ateu” de Joseph Stalin, que restaurou as estruturas eclesiásticas para apoiar a guerra contra o nazismo. Qualquer que seja o regime no poder, mesmo o da democracia “iliberal” de Vladimir Putin, a garantia de sua conformidade com a história do “mundo russo” é sempre a observância da religião, revisada de acordo com os cânones da missão da Rússia para o mundo inteiro. Como Hilarion de Kiev lembrou: “Se alguém não se batizava por amor, o fazia por medo daquele que o ordenara, porque nele a verdadeira fé se unia à autoridade; então a escuridão idólatra começou a se dissipar, e a aurora da verdadeira fé apareceu, então a escuridão da escravidão aos demônios desapareceu, e o sol do Evangelho iluminou a terra.” *Pe. Stefano Caprio é docente de Ciências Eclesiásticas no Pontifício Instituto Oriental, com especialização em Estudos Russos. Entre outros, é autor do livro "Lo Czar di vetro. La Russia di Putin". (Artigo publicado pela Agência AsiaNews)

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