O congresso sobre misticismo chegou ao segundo dia de trabalho no Auditório Magno da Pontifícia Universidade Urbaniana. Segundo o cardeal prefeito do Dicastério para as Causas dos Santos, em 50 anos, foram feitas apenas três ou quatro declarações de origem sobrenatural, sendo difícil reconhecê-las. Para o professor Vauchez, as mulheres estão abertas a uma “compreensão mais profunda” das visões. Já o padre Bolis expõe a necessidade de redescobrir a contemplação
Edoardo Giribaldi – Cidade do Vaticano “A ação plenamente livre do Espírito, por vezes, como afirmava Santo Agostinho, "contra a natureza", isto é, soprando onde quer, manifesta-se em um misticismo aberto a todos”. Experiências que permitem “aproveitar” plenamente o relacionamento com Deus e que encontram expressões, ainda nos tempos atuais, como “via terapêutica”, em um mundo em que a “sensibilidade para com Deus” parece cada vez mais enfraquecida. Esses foram alguns dos temas abordados hoje, 11 de outubro, no segundo dia dos trabalhos do congresso “A mística, os fenômenos místicos e a santidade”, organizado pelo Dicastério das Causas dos Santos no auditório magno da Pontifícia Universidade Urbaniana. As palestras iniciaram nessa segunda-feira, 10 de novembro, e foram abertas com a saudação do cardeal prefeito do Dicastério, Marcello Semeraro, e prosseguirão até essa quarta-feira, 12 de novembro. Na quinta-feira, 13 de novembro, haverá a audiência com o Papa Leão XIV. Fernández: o espírito se manifesta na história Entre os palestrantes estava o cardeal prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, Víctor Manuel Fernández, que ilustrou as normas adotadas pelo Dicastério para o discernimento dos presumidos fenômenos sobrenaturais. Tais normas se baseiam em alguns princípios-chave. “O Espírito Santo opera na Igreja com plena liberdade”. No pensamento católico, existe, portanto, uma firme convicção na “liberdade do Espírito”, que pode se manifestar na história em diversos modos, até mesmo por meio de eventos sobrenaturais como aparições ou visões. Na prática ordinária, o estudo de tais casos se conclui com um “sem objeção” (nulla osta), que autoriza o culto público sem se pronunciar sobre a origem sobrenatural do fenômeno. Nos últimos 50 anos, observou o porpurado, foram registrados cerca de 3.500 casos de beatificação e canonização. No mesmo período, todavia, foram publicadas apenas 3 ou 4 declarações de sobrenaturalidade, evidenciando a dificuldade de chegar a um reconhecimento oficial desse tipo. Entre as principais preocupações está o risco de que, uma vez declarada a origem divina de um fenômeno, as mensagens recebidas possam ser consideradas “Palavra revelada”. Uma declaração de sobrenaturalidade, ressaltou o cardeal, não garante a certeza absoluta sobre a autenticidade do evento. Mesmo nos casos reconhecidos pela Igreja, tratam-se de revelações “privadas”, nas quais os fiéis podem, livremente, acreditar ou não. A declaração eclesial tem, portanto, um caráter “prudencial”, e muitas vezes não é, sequer, necessária: muitas manifestações geraram santuários e frutos espirituais sem algum reconhecimento oficial. O discernimento é fundamental, sobretudo para dintinguir tais fenômenos de quem os desfruta para lucrar ou exercitar o domínio sobre as pessoas, casos “muito, muito preocupantes”, que podem levar a graves “abusos”. As normas do Dicastério propõem possíveis “conclusão prudenciais” para adotar antes que o fenômeno alcance dimensões tais, que cada intervenção, fique ainda mais complexa. Alguns episódios podem ser resolvidos no local, enquanto outros requerem intervenção direta do Dicastério, quando emergem elementos de confusão ou potenciais riscos que necessitam de um discernimento cuidadoso. Vauchez: as mulheres místicas na Idade Média Na sequência, tomou a palavra o professor André Vauchez, docente de História Medieval da Universidade de Pariz X-Naterre, com uma palestra em língua francesa com o título “Misticismo e santidade no Ocidente nos últimos séculos da Idade Média”. A partir do final do século XII, explicou o professor, o misticismo sofreu um duplo processo de “feminização e laicização”, tornando-se uma experiência individual que, por vezes, podia parecer suspeita pela Igreja, “na medida em que o ministério sacerdotal parecia inútil para quem dele se beneficiava”. Alguns historiadores interpretaram a experiência mística como um “refúgio” para as mulheres que, na maior parte dos casos, não conheciam o Latim e tiveram que ditar as próprias experiências aos clérigos. A partir do século XIV, alguns religiosos, em particular franciscanos e dominicanos, sustentaram que as mulheres eram predispostas, na realidade, a uma compreensão mais profunda dos mistérios da fé, pois não estavam sobrecarregadas por “preocupações temporais ou raciocínio escolástico”. A partir da metade do século XIV, a situação mudou ainda mais: muitos cristãos, a começar pelos papas Urbano V e Gregório XI, reconheceram que o “discurso visionário e profético” das figuras mais eminentes – Santa Brígida da Suécia, Santa Catarina de Siena e a beata Doroteia de Montau – podiam oferecer apoio à Igreja “em tempos de provações e crises”. Bolis: o misticismo como “dom” divino Em seguida, padre Luca Ezio Bolis, docente de História da Espiritualidade e Teologia Espiritual da Faculdade Teológica do Norte da Itália, palestrou tocando no tema do Misticismo e Teoologia: uma relação complexa e frutífera. Para esclarecer essa complexa relação, padre Bolis propôs uma metáfoca eficaz: a diferença entre “comer”, que representa o saber teológico, e “degustar” uma comida, que se refere a experiência mística. Tais distinções se inserem na mais ampla tensão entre fé e razão, onde a primeira muitas vezes foi relegada a uma “região marginal” em relação à segunda. Essa separação acabou por empobrecer ambos os polos: a teologia, tornada por vezes abstrata e árida na perceção da revelação cristã, e a experiência espiritual, exposta ao risco de uma “deriva subjetivista”. Hoje, após séculos de “suspeita”, a mística é novamente valorizada, também como uma possível “via terapêutica”, em um tempo em que a “sensibilidade para com Deus” parece enfraquecida. Bolis esclareceu depois que a mística não coincide com irracionalismo, clarividência, superstição, ocultismo ou magia: ela é, antes, um “dom” divino, fruto da graça e não adquirível através de técnicas.