Ao comemorar o centenário de seu nascimento, a Igreja no Brasil eleva a Deus um hino de ação de graças pela vida e pelo testemunho do Cardeal Lucas Moreira Neves.
Cardeal Orani João Tempesta, O. Cist. - Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ Ao comemorarmos no dia 10 de outubro, o centenário de nascimento do Eminentíssimo Cardeal Lucas Moreira Neves, OP, recordamos a trajetória de um homem cuja vida se confunde com a história da Igreja no Brasil e do mundo na segunda metade do século XX. Refletimos sobre a vida de um pastor zeloso, um intelectual de fina argúcia e um homem de fé inabalável. Sua voz ressoou dos púlpitos da Bahia aos corredores da Cúria Romana, sempre em defesa da verdade do Evangelho e da dignidade do ser humano. Nascido em São João del-Rei, Minas Gerais, no seio de uma família onde a cultura e a fé se entrelaçavam, o jovem Luís Moreira Neves sentiu cedo o chamado à vida religiosa. Seu pai era bibliotecário e músico e sua mãe, professora primária. A vocação o conduziu à Ordem dos Pregadores, os Dominicanos, onde, agora como Frei Lucas, forjou sua identidade espiritual e intelectual. Encontrou a harmonia entre a contemplação e a pregação, ideal de São Domingos de Gusmão. Essa formação, aprofundada na França, berço da Ordem, marcou indelevelmente seu ministério e lhe conferiu uma sólida base teológica e uma abertura ao diálogo com o pensamento contemporâneo. Seu retorno ao Brasil foi o início de uma intensa atividade pastoral e intelectual. Como sacerdote, dedicou-se com especial carinho à juventude, atuando como assistente da Juventude Estudantil Católica (JEC) e da Juventude Universitária Católica (JUC). Ele compreendia os anseios, as dúvidas e o potencial dos jovens, buscando apresentar-lhes um Cristo vivo e relevante. Dedicou-se também à Pastoral Familiar através do Movimento Familiar Cristão (MFC), consciente de que a família é o santuário da vida e a primeira escola da fé. Seu trabalho como diretor da revista “Mensageiro do Santo Rosário” por oito anos revela seu empenho em utilizar os meios de comunicação como ferramentas de evangelização. Chamado ao episcopado por São Paulo VI foi sagrado Bispo Auxiliar de São Paulo em 1967, num período de grandes transformações sociais e eclesiais, Dom Lucas colocou-se a serviço da vasta arquidiocese paulistana. Ali, foi vigário episcopal para a Pastoral da Família e para os Meios de Comunicação Social, áreas que sempre lhe foram caras. Sua sensibilidade pastoral e sua capacidade de diálogo foram dons preciosos em um tempo de tensões e desafios. Sua competência e fidelidade à Igreja o levaram a Roma, onde serviu aos Papas São Paulo VI e São João Paulo II. No Vaticano, foi nomeado Vice-Presidente do Pontifício Conselho para os Leigos, um campo pastoral que conhecia profundamente. Posteriormente, como Secretário da Congregação para os Bispos, teve a delicada missão de colaborar com o Santo Padre na escolha dos pastores para as dioceses do mundo inteiro. Este período em Roma ampliou sua visão da Igreja universal e aprofundou seu amor e serviço ao Sucessor de Pedro. Em 1987, São João Paulo II o nomeou Arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil. Na Sede Primacial, Dom Lucas exerceu seu ministério episcopal com a autoridade de um pai e a sabedoria de um mestre. Sua chegada a Salvador foi um marco, e sua atuação pastoral se mostrou intensa e multifacetada. Ele compreendia a riqueza da cultura e da religiosidade do povo baiano, buscando inculturar o Evangelho com discernimento e zelo pela sã doutrina. Como pastor, estava atento às necessidades espirituais e materiais de seu rebanho, especialmente dos mais pobres e dos "meninos de rua", uma preocupação que manifestou em diversas ocasiões. Criado Cardeal em 1988, sua voz ganhou ainda mais ressonância. Presidiu a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) de 1995 a 1998, período em que trabalhou incansavelmente pela comunhão do episcopado brasileiro e pelo fortalecimento da missão evangelizadora da Igreja no país. Sua gestão foi marcada por um profundo senso de eclesialidade e fidelidade ao magistério. Buscou sempre a unidade na diversidade e a superação de polarizações. Sua participação nas Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano, como em Medellín e Puebla, demonstra seu compromisso com os rumos da Igreja no continente da esperança. A vida de Dom Lucas foi um contínuo serviço à Palavra de Deus. Intelectual de renome e membro da Academia Brasileira de Letras, soube como poucos aliar a profundidade do pensamento à clareza da comunicação. Seus inúmeros artigos, publicados nos principais jornais do país, e seus livros são um testamento de sua capacidade de traduzir as verdades da fé para a linguagem do homem contemporâneo. Não temia abordar temas complexos da atualidade e oferecia sempre a luz do Evangelho como critério de discernimento. Em seus escritos, encontramos a reflexão de um teólogo, a preocupação de um pastor e a alma de um poeta. Seu lema episcopal, “Veritatem in Caritate” (A Verdade na Caridade), resume a essência de seu ministério. Para Dom Lucas, a verdade do Evangelho não podia ser anunciada sem o bálsamo da caridade. A caridade, para ser autêntica, devia estar alicerçada na verdade revelada por Cristo. Foi um defensor intrépido da verdade, mas sua firmeza era sempre acompanhada pela mansidão e pela compaixão de um pastor que busca a ovelha perdida. A amizade e a profunda sintonia espiritual com São João Paulo II marcaram os últimos anos de sua vida. Chamado novamente a Roma em 1998 para assumir o cargo de Prefeito da Congregação para os Bispos, colocou sua vasta experiência a serviço da Igreja universal. Sua renúncia em 2000, por motivos de saúde, foi aceita com pesar pelo Santo Padre, que em carta destacou seu “devotamento ao Papa, à Igreja e às almas”. Ao comemorar o centenário de seu nascimento, a Igreja no Brasil eleva a Deus um hino de ação de graças pela vida e pelo testemunho do Cardeal Lucas Moreira Neves. Ele foi um homem de Deus, um pastor que amou a Igreja com paixão e a serviu com total dedicação. Seu legado espiritual, pastoral e intelectual continua a inspirar as novas gerações. Que seu exemplo de fidelidade a Cristo e de amor à Igreja nos impulsione a sermos também nós, no nosso tempo, testemunhas da “Verdade na Caridade”.