No país do sudeste asiático, lembrado pelo Papa durante o Angelus, a guerra civil continua matando. O chefe da junta militar admite que não conseguirá realizar as próximas eleições, previstas para dezembro, em todas as regiões. Enquanto isso, milícias de oposição tentam compartilhar informações de inteligência. O analista Giuseppe Gabusi afirma: “É preciso pressão internacional para que o Mianmar saia do caos. A verdadeira vítima é a população civil".
Cecilia Seppia – Vatican News A violência que consome Mianmar não dá sinais de trégua. O caos político atual torna muito difícil interromper a guerra entre o exército nacional e as milícias étnicas que se opõem à ditadura militar, em um país já devastado por uma crise humanitária permanente. A situação dramática se agravou com enchentes recentes e os efeitos do terremoto devastador ocorrido em 28 de março. O sismo de magnitude 7,7 deixou ao menos 3.700 mortos e 4.800 feridos, elevando o número de deslocados internos para mais de 3,5 milhões, segundo o ACNUR. No domingo (19/10), durante o Angelus, o Papa Leão XIV fez um apelo pela paz no país. “As notícias que chegam de Mianmar são, infelizmente, dolorosas. Falam de combates constantes e bombardeios aéreos, inclusive contra civis e infraestrutura civil. Estou próximo de todos os que sofrem com a violência, a insegurança e tantas tragédias. Reitero meu apelo urgente por um cessar-fogo imediato e efetivo. Que os instrumentos da guerra deem lugar aos da paz, por meio de um diálogo inclusivo e construtivo!”, disse o Papa. Eleições gerais de dezembro em risco Em meio à insegurança permanente e à crise política, torna-se quase impossível contabilizar o número de vítimas das diversas tragédias no país, devido ao bloqueio da internet e à censura à imprensa. Nos últimos dias, o chefe da junta militar que comanda Mianmar admitiu que não conseguirá realizar as eleições gerais em todo o país, previstas para dezembro, por causa da guerra civil. “Não podemos realizar eleições em 100% do território”, declarou o general Min Aung Hlaing, comandante das Forças Armadas desde o golpe de 2021, frustrando a esperança da população de eleger um novo governo democrático. “É uma situação extremamente grave e, sem a participação da comunidade internacional, será impossível encontrar uma solução real”, disse aos meios de comunicação do Vaticano Giuseppe Gabusi, diretor do programa Indo-Pacífico do World Affairs Institute de Turim. “A comissão eleitoral já havia declarado, em meados de setembro, que cerca de 15% dos distritos estavam sob controle de forças fora do comando central. Agora, por meio de um comunicado à nação, o próprio general reconheceu que a situação é provavelmente ainda pior: as forças armadas controlam apenas 20% do território; dos 80% restantes, metade está em disputa entre o exército e os rebeldes, e a outra metade está nas mãos de grupos diversos — chefes locais, senhores da guerra, traficantes de drogas ou milícias étnicas. Assim, o governo autoritário e até um tanto distópico de Mianmar é obrigado a encarar a realidade.” Compartilhamento de inteligência fortalece a oposição Atualmente, as forças governamentais controlam principalmente as cidades localizadas no centro do país, ao longo do rio Irrawaddy. No entanto, desde a independência, as regiões fronteiriças e montanhosas de Mianmar nunca estiveram sob controle do governo central e permanecem dominadas por diversas milícias étnicas — como no Estado de Kayin, no Estado de Kachin ao leste e no Estado de Rakhine ao oeste. Nestes dias, o Governo de Unidade Nacional (NUG), que representa a administração no exílio, está tentando integrar os serviços de inteligência de todas as milícias ativas para fortalecer a oposição. “Esse processo é possível se houver vontade política de alcançar resultados”, explica Gabusi. “Sempre houve dificuldades de coordenação entre o NUG e a ampla gama de atores políticos e militares que controlam outras partes do país. Não podemos esquecer que esse governo está no exílio. Ele pode ser popular e contar com o apoio da população, mas precisa se apoiar nas forças que atuam dentro do território para dar credibilidade à oposição. Coordenar tantos atores — alguns sinceramente democráticos, outros autoritários; alguns pacíficos, outros fortemente militarizados; alguns jovens idealistas, como nas Forças de Defesa do Povo, formadas por jovens que abandonaram as cidades para receber treinamento com as milícias étnicas — não é nada fácil. O compartilhamento de inteligência é um primeiro passo importante, mas será necessário um plano de longo prazo para construir um Estado federal que una as diferentes identidades de Mianmar.” É necessário um esforço internacional coordenado Para impulsionar o processo de democratização, organismos internacionais e potências regionais podem ter um papel positivo, continua o analista. “A ASEAN, por exemplo — a Associação das Nações do Sudeste Asiático —, gostaria de chegar a um acordo entre as partes e estabelecer um cessar-fogo. No entanto, o bloco está dividido internamente. Alguns países membros, como Malásia, Indonésia e Cingapura, estão mais alinhados com as posições do Ocidente e exigem o fim das hostilidades antes de realizar eleições legítimas. Outros, como a Tailândia, ao lado de grandes potências como China, Índia e Rússia, acreditam que as eleições podem acontecer mesmo sem um cessar-fogo, o que cria uma divisão profunda. A atual presidência da ASEAN, exercida pela Malásia, adota uma postura mais pragmática. Houve recentemente uma visita oficial a Mianmar com o objetivo de obter da junta militar a promessa de que as eleições possam ser um primeiro passo rumo a um futuro compartilhado. Temo, porém, que isso seja uma ilusão: sem uma iniciativa internacional séria que enfrente de forma direta todos os problemas do país, até mesmo essas eleições não terão utilidade. Afinal, a verdadeira vítima de tudo isso é a população civil.”