Marwan Gill é Imam (teólogo islâmico) e Presidente da Comunidade Muçulmana Ahmadia na Argentina. Nascido na Alemanha, numa família de ascendência indiana, participa frequentemente em encontros inter-religiosos e foi convidado diversas vezes para eventos no Vaticano e encontros pessoais com o Papa Francisco durante o seu pontificado.
Marwan Gill – Argentina O Papa Leão XIV escolheu a Turquia e o Líbano como destino da sua primeira viagem apostólica. Tratam-se de dois países que partilham várias características e, ao mesmo tempo, apresentam desafios muito diferentes. O primeiro é maioritariamente muçulmano; nele, a Igreja Católica representa uma minoria dentro de uma já pequena minoria cristã. No entanto, a cidade de Niceia, considerada um dos berços do cristianismo e símbolo do desenvolvimento da sua Igreja, situa-se em território turco. Hoje em dia, num mundo em que os locais sagrados estão sob ameaça crescente, a visita do Pontífice a Niceia evidencia a importância de preservar os lugares históricos, pois isso está intrinsecamente ligado à proteção dos seus fiéis, especialmente no caso dos grupos minoritários. É importante sublinhar, relativamente às sociedades muçulmanas onde os cristãos são hoje discriminados ou perseguidos, que o próprio Sagrado Alcorão defende a liberdade religiosa ao ponto de declarar que é dever dos crentes proteger a honra de cada sinagoga, cada igreja e cada templo religioso. Ou seja, segundo o Islão, todas as crenças gozam do direito absoluto e equitativo de professar livremente a sua fé, sem qualquer exceção. Ao mesmo tempo, permitam-me responder às pessoas que acusam o Islão de ser incompatível com os seus valores “ocidentais”. Por exemplo, o termo “Sharia”, frequentemente mal-interpretado, não consiste essencialmente em substituir as constituições seculares por leis islâmicas, nem em impor os preceitos da nossa fé aos não-muçulmanos. Pelo contrário, Sharia significa literalmente, em árabe, “caminho”, e o caminho do Islão trilha-se apenas por escolha e decisão próprias. Do mesmo modo, “Jihad” não se refere à guerra contra os “infiéis”, mas ao esforço nobre contra a própria maldade, na busca do amor divino. Em resumo, o encontro em Niceia chama a nossa atenção para a responsabilidade partilhada de defender e garantir a liberdade religiosa para todos, sem exceção. Por outro lado, alegra-me, como muçulmano, observar que o novo Papa tenha escolhido continuar o legado do seu antecessor. O Papa Francisco propôs na sua encíclica Fratelli Tutti (Todos Irmãos) o diálogo com o outro e, em especial, o encontro inter-religioso como meta para construir um mundo mais humano e fraterno. Num momento em que há cada vez mais vozes a defender um regresso a uma era de “cruzadas medievais” ou a uma divisão entre “Ocidente vs. Oriente”, a essência de Todos Irmãos lembra-nos que a solução não é erguer mais muros, mas construir mais pontes. A imagem do Papa Leão XIV na Mesquita Azul, em Istambul, foi uma demonstração clara de que as diferenças teológicas, ideológicas ou políticas não podem servir de desculpa para nos afastarmos uns dos outros. É importante esclarecer que dialogar com “o outro” não significa renunciar à própria identidade ou negar os próprios princípios, mas sim escutar e procurar as semelhanças com “o outro”. De facto, o Sagrado Alcorão, no capítulo 3, versículo 65, sublinha que é imprescindível que as religiões convivam em harmonia e enfatiza que, como muçulmanos, é nossa responsabilidade construir pontes com o objetivo de encontrar os valores comuns que nos unem a todos — judeus, cristãos, muçulmanos ou seguidores de qualquer outra religião. Com esta premissa corânica em mente, agradeço ao líder máximo da Igreja Católica por continuar a promover a ação de ouvir “o outro” em vez de ignorar, de dialogar em vez de discutir, de conhecer em vez de prejulgar. O Líbano, ao contrário da Turquia e de muitos Estados árabes, é um país muito diverso, onde o cristianismo possui maior relevância e representatividade do que noutros lugares. Não obstante, há décadas que os libaneses enfrentam uma crise política, social e económica e, sobretudo, vivem sob a sombra dos conflitos bélicos na região e no seu próprio território. Embora tenha sido formalmente estabelecido um cessar-fogo com Israel, os mísseis e os rockets continuam a destruir não só vidas humanas e infraestruturas, mas também a esperança de paz. Não devemos esquecer que a raiz de muitas tensões regionais e da confrontação entre árabes e israelitas assenta na ocupação israelita de territórios palestinianos. Estou certo de que as declarações do Papa não foram casuais quando sintetizou a situação do Médio Oriente, na véspera da sua chegada a Beirute, capital do Líbano, com as seguintes palavras: “Todos sabemos que, por enquanto, Israel ainda não aceita esta solução (a criação de um Estado palestiniano), mas consideramo-la a única possível.” Em suma, interpela-me o facto de que o pontífice, ao contrário de muitos outros líderes — tanto políticos como religiosos —, em vez de ignorar e optar pelo silêncio e pela indiferença perante o sofrimento das vítimas da guerra, tenha favorecido a paz e a sacralidade da vida humana, sem qualquer discriminação por etnia, credo ou nacionalidade. Por tudo isto, é agora imprescindível tirar conclusões concretas e práticas desta viagem papal à Turquia e ao Líbano. Insisto que a paz, que é a essência de todas as religiões, não implica apenas a ausência de guerra. Não a alcançamos com meros gestos verbais ou sentimentais. Uma paz duradoura exige uma construção ativa e coletiva, enraizada em princípios de justiça e equidade. Em nome da Comunidade Muçulmana Ahmadia, que represento na Argentina, quero manifestar o nosso apoio e estender a nossa colaboração a todos aqueles que se identifiquem com esta mensagem e esta causa.