Não há outro caminho que não passe pela política. É por meio dela que são solucionados os problemas humanos e dos países. “Reconhecer todo o ser humano como um irmão ou uma irmã e procurar uma amizade social que integre a todos não são meras utopias” .
Melillo Dinis do Nascimento - Advogado, Relações Internacionais e Analista Político em Brasília-DF, Brasil Para começo de conversa Escrevo sob dois mantos, neste período do ano em que celebramos o Advento, o Natal e o começo do ano de 2026. O primeiro deles é o manto da esperança, do verbo “esperançar” – na autonomia, na emancipação, na vida e na dignidade de todas as pessoas. A espera vive a esperar “esperançando”. Sua relação com a transcendência baseia-se na capacidade de superação, de poder ir além dos limites humanos, cuja origem é divina e religiosa. Há um rosto que reflete a luz divina! E este rosto é do Menino que chegou para nossa esperança. Ele é a ligação entre a humanidade e Deus ativa, sublime e concreta. É a espera da esperança transformada em humano. O segundo manto é a inspiradora mensagem do Papa Leão XIV para o 59° Dia Mundial da Paz – a ser celebrado em 1° de janeiro, logo ali – com o tema “A paz esteja com todos vós. Rumo a uma paz desarmada e desarmante”. Como disse muitas vezes, estou fixado na expressão “A paz esteja com todos vós!” – que foi a primeira frase do Papa quando apareceu na Sacada Central da Basílica de São Pedro. Nada mais apropriado para o tempo que atravessamos. Descortinados os mantos, há uma questão de fundo. Confesso que a nossa realidade não é simples! Estamos diante de uma etapa da história com muitas complexidades e incertezas que estão conectadas em uma grande rede de incertezas. Assim, qualquer movimento em um dos campos interfere em todos os outros. Neste contexto, são oferecidos vários pontos de vista sobre os fatos. E, ao mesmo tempo, há a necessidade de se evitar os pontos cegos, que são tão característicos das leituras apressadas. É por isso que, ao analisar a vida de nossos povos e de suas relações, é importante tentar um olhar que compreenda os processos “macro”, suas relações com cada ponto, as razões subjacentes e as mudanças profundas que estão juntas e misturadas. Como o meu olhar vem do lugar no mundo que ocupo, e com as muitas mudanças que enfrentamos na América Latina, penso que, ao lado da política, a de natureza cultural é talvez a mais intensa. Ela nasce e se expande principalmente no mundo das consciências e dos valores, nos estilos de vida, nas relações entre as pessoas, e, principalmente, nas famílias. Precisamos, portanto, fazer um esforço de compreensão com todas as consequências dessas mudanças e com os pés na realidade. O realismo, portanto, não é o resultado de um autor, de uma escola de pensamento ou de uma autoridade. É o mundo no mundo e a partir dele! Agir como Igreja. Como disse o Papa Bento XVI, é nesta realidade que vamos testemunhar “segundo o Evangelho, com palavras e obras, aqui e agora a soberania do amor de Deus. Como indivíduos e como comunidade da Igreja, ... a simplicidade dum grande amor que, no mundo, é simultaneamente a coisa mais fácil e a mais difícil, porque requer nada mais nada menos que o doar-se a si mesmo”. Da mesma forma, nada é mais oportuno para o testemunho ante ao pensamento social e político contemporâneo do que a insistência implacável do Papa Francisco em enfatizar a importância de que “a realidade deve ter primazia sobre a ideia”. O que o Papa Bento XVI pretendia e o que o Papa Francisco apontava era a recuperação do realismo através da expansão do horizonte da razão de forma tão ampla, tão irrestrita, que não censuramos a priori nenhum elemento ou nenhum fator. Somente quando a razão e o coração estão abertos à totalidade dos fatores da realidade, a pessoa pode ser surpreendida novamente, ou seja, pode recuperar a capacidade de admiração e criatividade necessária para inovar e, assim, evitar a recaída em velhas soluções que mostraram sua falta de resposta no passado. O Papa Francisco, quando fez esta frase forte (“a realidade deve ter primazia sobre a ideia”), não desprezava conceitos e teorias. Seu chamado para despertar não é um convite sutil para cair nas armadilhas do irracionalismo. O que ele faz é indicar que todo conceito deve ser nutrido pela realidade e deve servi-la. Assim, os conceitos não são absolutos a serem adorados, mas meios humildes de tentar entender o que acontece no mundo real. Por isso, nossas grandes ideias políticas não são chamadas a ser um objeto de adoração. Toda vez que uma ideologia, um partido ou um governante eleva suas teorias acima da realidade, o desastre começa. O racionalismo utilitarista ou irracionalismo tem seu correlato político em governos autoritários: uma ideia autorreferencial facilmente se transforma em uma vontade de poder autolegitimada. Se as ideias são de “direita” ou de “esquerda” pouco importa. O problema de fundo ainda é o mesmo: a violenta supressão da realidade, especialmente dos mais pobres, frágeis e indefesos. O Papa Leão XIV, na mesma tradição que seus antecessores, oferece-nos um desafio, desde o tempo em que o Verbo se fez carne, pois “agora a carne fala, brada o desejo divino de nos encontrar. O Verbo ergueu no meio de nós a sua frágil tenda”. Para oferecer alguns elementos diante desta atual quadra histórica, ofereço alguns aspectos da conjuntura internacional a partir da América Latina e do Brasil, meu canto no mundo. Estamos no tempo de incertezas, mudanças, turbulências e tensões das relações internacionais, que somente aumentaram neste ano de 2025 e que, muito provavelmente, terá um ano de 2026 tomado por crises. Não há outro caminho que não passe pela política. É por meio dela que são solucionados os problemas humanos e dos países. “Reconhecer todo o ser humano como um irmão ou uma irmã e procurar uma amizade social que integre a todos não são meras utopias”. Este ato de reconhecimento é uma das formas essenciais de caridade. Exige a “decisão e a capacidade de encontrar os percursos eficazes, que assegurem a sua real possibilidade. Todo e qualquer esforço nesta linha torna-se um exercício alto da caridade”. Somente dessa forma é que vamos ampliar os esforços de debater a complexa realidade em que estamos inseridas. O objetivo é tentar compreender um pouco mais onde serão indicados os caminhos da esperança, ainda mais nos tempos jubilares, em que somos “Peregrinos de Esperança”. Qual conjuntura internacional? Atravessamos uma “policrise”, com aquecimento global, pobreza e desigualdades globais sem fim, com uma “guerra mundial em capítulos”, com desafios que estão ligadas entre si e à crise econômica insolúvel e crescente deste século XXI. O Papa Francisco, em 03 de março de 2025, ressaltou esta conjuntura, ao dirigir uma mensagem aos participantes da Assembleia Geral da Pontifícia Academia para a Vida, que tem como tema: "Fim do mundo? Crises, responsabilidades e esperanças". No texto, ele destacou a necessidade de uma profunda reflexão sobre a atual “policrise”, que envolve desafios como guerras, mudanças climáticas, crises energéticas, pandemias, fluxos migratórios e inovações tecnológicas, e ressaltou que essa convergência de crises demanda uma revisão das concepções humanas sobre o mundo e uma escuta atenta do conhecimento científico. Destaco a disputa do poder global, como primeiro tópico de um debate que envolve o momento que atravessamos, com forte ênfase no papel dos Estados Unidos das América (EUA), país central nas relações internacionais. A incerteza se faz constante com Donald Trump. Vou destacar pontos da “nova” ordem internacional e de nossos “velhos” problemas. É a mistura de continuidades e rupturas que vão se relacionando em um momento histórico que mulheres e homens fazem a história, mas mulheres e homens ainda não sabem bem a história que fazem. Diante do quadro, cuido de avaliar alguns aspectos da relação do Brasil com a conjuntura internacional. O Brasil vem tentando agir, frente às relações internacionais, com diversas ações mundiais e regionais, como a rearticulação de fóruns regionais e disputadíssimas agendas bilaterais e multilaterais. O país, com sua condição de potência média retomou as articulações para uma maior presença internacional brasileira, e tem ocupado um espaço maior a partir de suas potencialidades. Um próximo ano de riscos Parte de uma cultura em crise é a indefinição de como descrevê-la. Há um cheiro crescente de riscos. O risco é um conceito muito “moderno”. Pressupõe decisões que tentam fazer das consequências imprevisíveis das decisões civilizacionais decisões previsíveis e controláveis. O risco repousa no fato de que nossas decisões civilizacionais envolvem consequências e perigos globais, e isso contradiz radicalmente a linguagem institucionalizada do controle – e mesmo a promessa de controle – que é irradiada ao público global na eventualidade de catástrofes. É nesse momento que há lugar para a esperança. Ao contrário de temermos a cultura da incerteza, é justamente dela que precisamos, pois ela se dá na prontidão para uma conversa aberta que aborde o risco; a disposição de negociar entre diferentes racionalidades maior que para engajar-se em denuncismo mútuo; a voluntariedade de discutir a partir de bases racionais; e, por fim, mas não menos importante, um reconhecimento da importância central de demonstrar a vontade coletiva de agir de forma responsável, pois o ponto chave de uma comunidade democrática é que assumimos a responsabilidade juntos pelo bem comum. Os riscos estão diante de nós. Em 2025, Donald Trump se consolidou como personagem da política internacional. O seu regresso, frente a maior potência mundial, é sintoma e impulso de mudanças nos EUA, com redução da força do multilateralismo. Prejudicou o comércio internacional com os “tarifaços” e modificou a política para o mundo, em especial a América Latina (a “Nova Estratégia de Segurança Nacional”). Em 2025 os conflitos e as tensões se agravaram. No Oriente Próximo, a ONU declarou a fome na Faixa de Gaza e Israel e Irã se atacaram mutuamente. Na África, o Sudão teve um período ainda mais sangrento do conflito entre militares e paramilitares, Ruanda apoiou os rebeldes do M23 no Congo, e os grupos jihadistas assediam o Sahel. A eles se somaram as disputas fronteiriças entre Índia e Paquistão e entre Camboja e Tailandia, além da tensão permanente entre China e Taiwan. Nem tudo foi retrocesso. A transição na Síria avança depois da caída do regime de Bashar al-Assad, algo impensável há alguns anos. Assim mesmo, milhares de jovens da geração Z saíram para manifestar o seu descontentamento no Nepal, Madagascar, Marrocos e Peru, contra seus dirigentes ou a falta de oportunidades, conseguindo algumas mudanças de Governos ou maior visibilidade. A COP 30, no Brasil, foi uma tentativa de criar oportunidades e saídas da diplomacia socioambiental em relação ao futuro do Planeta. Nesse tipo de construção das soluções internacionais, por meio de acordos e de pactos, as palavras, a sua interpretação e os seus desdobramentos, exigem um único ponto de partida – evitar o colapso do clima. E há poucas chances para as soluções se elas estiverem integralmente dependentes do (exclusivo) interesse de cada um. O interesse deve ser comum. O bem comum. A Guerra Fria 2.0 tende a esquentar no futuro. A Europa vem aumentando as despesas orçamentárias com o universo militar. O exemplo mais claro disso é o pacote para reforçar a segurança e defesa coletiva, avaliado em 800 bilhões de euros (cerca de R$ 5,2 trilhões), que foi chamado de “Rearmar a Europa” (ou “Prontidão 2030”). O documento prevê o aumento da produção de armas, mais despesas com sistemas de artilharia, mísseis, defesa aérea, munições e drones. Segundo a previsão da OTAN, 31 de seus 32 países membros devem atingir a meta de gastar 2% do PIB em defesa ainda neste ano. E a América Latina? A região enfrenta a “desordem geopolítica” iniciada pelo Presidente Trump 2, não só representada pela ação tarifária generalizada contra aliados e competidores, mas também pelas ameaças contra o vizinho Canadá (“sugestão” de se tornar o 51º estado dos EUA), contra o Panamá (retomada do canal, “devolvido” em 1999), contra a Dinamarca (ao pretender incorporar compulsoriamente o “território autônomo” da Groenlândia à soberania dos EUA) e outras demonstrações de unilateralismo extremo, sobretudo e principalmente contra a Ucrânia, uma vez que Trump e seus assessores subservientes adotam consistentemente os desejos imperiais de um outro candidato a imperador do mundo, Putin, do qual o presidente americano parece servir como assistente solícito. Trump praticamente desmantelou aquilo que os EUA tinham construído desde Bretton Woods (1944) e San Francisco (1945), ou seja, o sistema multilateral de comércio e o multilateralismo político, e se empenha em construir um novo sistema imperial tripartite – China no controle da Ásia-Pacífico, Rússia na Eurásia e os próprios EUA no hemisfério americano, como aliás demonstrado pela sua Nova Estratégia de Segurança dos EUA. A guerra tarifária contra o Brasil, ao início moderada (apenas 10% de sobretaxa adicional), converteu-se no meio do ano, por razões políticas (“solidariedade” à família Bolsonaro), em extorsão direta, à altura de 50% ad valorem contra alguns produtos essenciais da dieta americana: café, carne, suco de laranja, frutas, além de sapatos, móveis, maquinário e todo o mais. Como nos demais casos, o efeito inflacionário das tarifas fez com que o desequilibrado dirigente as reduzisse posteriormente. O lado mais impactante da “estratégia trumpista” para o reordenamento mundial (se o termo se aplica) é um retorno à política das grandes potências do século XIX, assim como sua meta de “reindustrialização dos EUA” nada mais representa do que uma volta aos padrões produtivos da segunda revolução industrial. A ameaça mais visível no plano regional, entretanto, se dá diante do ataque trumpista à Venezuela de Maduro. Nos últimos meses, o aumento da presença militar americana no mar do Caribe alimentou rumores sobre uma intervenção para derrubar o governo de Nicolás Maduro. Agora, a apreensão de navios petroleiros na costa venezuelana aumentou ainda mais as tensões entre Washington e Caracas. Diante da possibilidade de um ataque iminente dos Estados Unidos, estes são os diferentes cenários que se apresentam para a Venezuela. Em primeiro lugar, os Estados Unidos podem optar por uma saída negociada do chavismo na Venezuela. Essa opção poderia se limitar à saída de Maduro ou incluir toda a cúpula do regime chavista. O telefonema entre Donald Trump e Maduro em novembro sugere que o presidente americano já explorou essa possibilidade. Trump teria oferecido ao presidente venezuelano abandonar o poder em troca de garantir sua segurança durante sua transferência para a Turquia, Rússia ou Cuba. De acordo com as agências, como a Reuters, Maduro teria pedido anistia para ele e sua família, o fim das sanções internacionais e a retirada das investigações do Tribunal Penal Internacional sobre possíveis crimes contra a humanidade. O fracasso de uma saída negociada empurra os Estados Unidos para o segundo cenário, no qual Maduro se agarra ao poder. As alternativas para Washington aqui são variadas. Uma seria uma intervenção militar na Venezuela. Trump poderia optar por uma campanha de ataques precisos por mar e ar contra alvos militares específicos. Essa operação poderia ser acompanhada por incursões das forças especiais destinadas a garantir o espaço aéreo e lançar um ataque contra Maduro. O objetivo de Washington seria eliminar o líder venezuelano, pressioná-lo para forçá-lo a sair ou capturá-lo para processá-lo por tráfico de drogas nos Estados Unidos, assim como fez com o ditador panamenho Manuel Antonio Noriega em 1989. A opção militar. Uma operação rápida contra objetivos específicos, por exemplo. Ele utilizou este tipo de solução no Oriente Próximo durante seu primeiro mandato para lutar contra o Estado Islâmico (Dáesh) no Iraque e na Síria. E, em 2025, também autorizou bombardeios contra os hutis (al-Ḥūthiyyūn) no Iêmen e nas instalações nucleares do Irã. Muito mais difícil seria uma incursão terrestre, com um desembarque de tropas. A Venezuela é um país muito grande e diverso geograficamente, tem um exército numeroso e preparado, e em seu território operam diversas milícias, grupos irregulares armados y atores não estatais vinculados ao regime. Ademais, Washington carece de presença militar na região e seu aliado tradicional na região, a Colômbia, com Gustavo Petro, não vai apoiar, muito menos o Brasil. É muito pouco provável. De toda forma, neste período ainda, assistiremos uma escalada no conflito, ao trazer para a América Latina mais um episódio de conflito e de violência. Não seria a primeira vez. Mas teria proporções nunca antes vista por conta da geopolítica atual. A “Nova Estratégia de Segurança Nacional” de Estados Unidos prioriza o domínio do hemisfério. Neste sentido, a queda do chavismo cobra um papel central na visão da Administração Trump sobre a América Latina. Qualquer hesitação de Washington na Venezuela seria percebida como uma mostra de debilidade. Mas a disputa dos EUA, sob Trump, se dá, no caso da América Latina, em torno de 3 centros: o controle político (mais governos alinhados com os EUA, como no episódio recente de Honduras), a pressão por petróleo (de novo Venezuela) e minerais (especialmente terras raras, com o Brasil e o Chile), e o controle migratório (com todo o continente). Em todos os campos, de todas as formas e em todos os cantos da América, estamos em busca da paz. E das garantias do Direito Internacional. Não vai ser fácil. Mas é fundamental para a dignidade dos povos da Ameríndia. Nesse contexto, a paz não pode ficar apenas no entendimento dos Santos Padres, nas poesias e nos muros de protesto. “Quando os problemas se tornam absurdos, os desafios se tornam apaixonantes”, afirmava Dom Helder Camara. “É preciso falar de esperança todos os dias só para que ninguém esqueça de que ela existe”, como o faz Mia Couto. A maior esperança é esperançar-nos todos os dias e em todas as circunstâncias. Sem medo, pois a esperança é a nossa coragem! Advogado, Relações Internacionais e Analista Político em Brasília-DF, Brasil. Participa, como um dos peritos, do Grupo de Análise de Conjuntura da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A intensidade do verbo “esperançar”, na cultura brasileira, decorre do pensamento do pedagogo Paulo Freire. Por exemplo: “É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo… “(FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2003); “Movo-me na esperança enquanto luto e se luto com esperança, espero” (FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2004). É raro na maioria das línguas o sentido da expressão usada por Freire. Por exemplo, em italiano, o verbo “speranzare” é considerado obsoleto ou de uso muito raro, encontrado em textos antigos ou dialetos regionais. Uso a expressão de Walter Benjamin que, ao traduzir para o francês a expressão da Tese VI, “den Funken der Hoffnung”, geralmente traduzida por “a centelha da esperança (esperance)”, utiliza a palavra “espera” (“espoir”) em sua versão francesa das “Teses”: “... somente um historiador como este será capaz de atrair a centelha de uma espera (espoir) no âmago dos próprios acontecimentos passados”. “Uma espera” (“un espoir”), escreveu Walter Benjamin; “da esperança” (“de l’espérance”). A expressão “espera da esperança” é como se Benjamin procurasse a luz de uma solução concreta e modesta. Ver a tradução francesa das “Teses”, no aparato crítico das “Gesammelte Schriften”, I-3, tese VI, p. 1. 262. A tradução francesa de Maurice de Gandillac, revista por Pierre Rusch, é esta: BENJAMIN, Walter, OEuvres, Paris: Ed. Gallimard, Folio Essais, 2000, Vol. III, p. 431. Foi a versão que utilizei. Disponível em: <https://www.vatican.va/content/leo-xiv/pt/messages/peace/documents/20251208-messaggio-pace.html>. Acesso em 19 dez. 2025. O trecho que me impressiona está logo no início: “Esta antiga saudação, presente ainda hoje em muitas culturas, ganhou novo vigor nos lábios de Jesus ressuscitado na noite de Páscoa. ‘A paz esteja convosco!’ (Jo 20, 19.21) é a sua Palavra que não só deseja, mas realiza uma mudança definitiva naqueles que a acolhem e, consequentemente, em toda a realidade. Por isso, os sucessores dos Apóstolos exprimem todos os dias e em todo o mundo a revolução mais silenciosa: ‘A paz esteja convosco!’”. A mudança que estamos vivendo na América Latina é “a mutação de um povo barroco, mestiço e pluriforme que recebeu a colonização moderna ilustrada de forma artificial, mas incompleta, e que, depois de séculos e muitas dores, tenta sair do atoleiro para o qual as ideologias os transportaram”, ou seja, da dominação dos conceitos sobre a realidade. Cf. GUERRA, Rodrigo, “Continuar una presencia y una historia. Identidad y cambio cultural en América Latina”. Imaginar un continente para todos. Departamento de Justicia y Solidaridad-CELAM. Bogotá, CELAM: 2008, p. 195-212. BENTO XVI, Papa. Discurso no Encontro com os católicos comprometidos na Igreja e na sociedade, Viagem apostólica a Alemanha, Friburgo (25 de setembro de 2011). Disponível em: <https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2011/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20110925_catholics-freiburg.html>. Acesso em 15 dez. 2025. FRANCISCO, Papa. Evangelii gaudium, n. 231-233. Disponível em: <https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html>. Acesso em 9 dez. 2025. Ver RATZINGER, Joseph. Liberar a liberdade: fé e política no terceiro milênio. São Paulo: Paulus, 2019. Temas suscitados a partir das reflexões do “Encuentro de católicos con responsabilidades políticas al servicio de los pueblos latinoamericanos del cono sur”, realizado pela Comissão Pontifícia para a América Latina e pelo Conselho Episcopal Latino Americano, em Asunción, Paraguay, de 10, 11 y 12 de abril de 2019. Ver GUERRA, Rodrigo. “REPENSAR LA DEMOCRACIA: una mirada sobre la realidad de la democracia en América Latina con especial referencia a los países del cono sur”. Texto de discussão. LEÃO XIV, Papa. Homilia do Papa Leão XIV, Basílica de São Pedro, Quinta-feira, 25 de dezembro de 2025. Disponível em: https://www.vatican.va/content/leo-xiv/pt/homilies/2025/documents/20251225-messa-natale.html. Acesso em 26 dez. 2025. FRANCISCO, Papa. Fratelli Tutti, n. 180. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html. Acesso em 20 dez. 2025. FRANCISCO, Papa. Fratelli Tutti, n. 180. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html. Acesso em 20 dez. 2025. Edgar Morin define a “policrise” como uma situação em que “crises interligadas e sobrepostas” assumem a forma de um “complexo interdependente de problemas, antagonismos, crises e processos incontroláveis” que formam “a crise geral do planeta”. Esta visão é muito diferente daquilo que se conhece em economia como “crise sistêmica”, ou seja, uma crise que desestabiliza todo um sistema, mas cujo ponto de partida é um choque único e identificável. Neste último caso, a espiral da crise pode ser interrompida se o contágio puder ser contido. Esta é a lógica que rege a gestão de crises desde 2008, à qual falta sucesso. Por outro lado, numa crise múltipla, este tipo de contenção não é possível, porque a crise faz parte de uma cadeia de acontecimentos tão complexa que é impossível pará-la. Ainda mais, porque as soluções propostas dão origem a novos problemas que espalham para outras áreas por meio de contágio. O mundo sujeito à policrise não é estático, está vivo: a sua crise modifica o ambiente, e o ambiente modifica os termos da crise. Ver MORIN, Edgar. Terre-patrie. Paris: Seuil, 1993. VATICAN NEWS. 03 MAR. 2025. Papa: a "policrise" mundial exige escuta, responsabilidade e esperança. Disponível em: <https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2025-03/papa-francisco-mensagem-pontificia-academia-para-a-vida-03-03-25.html>. Acesso em 19 dez. 2025. Por exemplo: https://www.worldfinance.com/special-reports/brazil-is-back. Acesso em 19 dez. 2025. Potência média entendida aqui como “um Estado cujos líderes consideram que eles não podem agir sozinhos de forma efetiva, mas que talvez consigam provocar um impacto sistêmico por meio de um pequeno grupo ou instituição internacional”, cf. KEOHANE, Robert. O. Lilliputians' Dilemmas: Small States in International Politics. International Organization, 1969, vol. 23, issue 2, 291-310. Ver BECK U.; GRANDE E., Das kosmopolitische Europa. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2004. Há 123 anos — em 23 de dezembro de 1902 — o bloqueio naval europeu contra a Venezuela entrou em uma fase decisiva. Após o início formal do bloqueio algumas semanas antes, Grã-Bretanha, Alemanha e Itália intensificaram suas operações no Caribe, ampliando o cerco a portos estratégicos venezuelanos como La Guaira e Puerto Cabello. Na prática, o país passou a ser estrangulado economicamente: o bloqueio atingia diretamente as alfândegas, principal fonte de receita do Estado. O objetivo oficial das potências europeias era forçar o governo venezuelano a pagar dívidas soberanas e indenizações exigidas por credores e cidadãos estrangeiros. O bloqueio contra a Venezuela expôs os limites da soberania dos países latino-americanos no início do século XX e revelou as ambiguidades da Doutrina Monroe: os Estados Unidos se opunham à ocupação territorial europeia no hemisfério, mas legitimaram diplomaticamente o uso temporário da força naval para a cobrança de dívidas. A intensificação do bloqueio em dezembro de 1902 provocou alarme em toda a América Latina. Governos da região passaram a temer que dificuldades fiscais pudessem servir, dali em diante, como pretexto permanente para intervenções militares externas. Foi nesse contexto que surgiu, poucos dias depois, a Doutrina Drago, formulada pela Argentina, defendendo que nenhuma dívida pública justificaria o uso da força contra um Estado soberano — uma das contribuições mais importantes da América Latina ao direito internacional. A crise venezuelana contribuiu para moldar a lógica que, em 1904, levaria ao Corolário Roosevelt: a ideia de que Washington deveria intervir preventivamente na região para evitar a presença militar europeia no Caribe. Na prática, porém, a doutrina serviu de base para ocupações e intervenções militares frequentes, muitas delas com nenhuma relação real com ameaças europeias. Em nome da estabilidade, da ordem fiscal ou da segurança regional, Washington passou a interferir diretamente na política interna de diversos países do Caribe e da América Central, transformando uma resposta apresentada como pontual em um mecanismo duradouro de dominação regional. A história não é recente! Citado em https://www.cnbbne1.org.br/arquidiocese-de-olinda-e-recife-convida-para-conclusao-da-fase-local-do-processo-de-beatificacao-de-dom-helder/. Acesso em 12 abr. 2023. COUTO, Mia, no ensaio/conferência ‘Dar tempo ao futuro ‘. In: E se Obama fosse africano? e outras interinvenções – Ensaios. Lisboa: Editorial Caminho, 2009.