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FatimaAsLicoesDeMaria-6

A preparação

 

 

Um simples começo

 

Os acontecimentos sobrenaturais de Fátima tiveram início um pouco antes do que estamos acostumados a pensar. As visitas de Nossa Senhora à Cova da Iria foram preparadas por aparições dos Santos Anjos, cuja tarefa era abrir o coração das crianças ao Céu e à vontade de Deus para suas vidas.

Segundo nos conta a irmã Lúcia, entre 1914 e 1915, quando contemplou sete anos, sua mãe confiou-lhe a tarefa de cuidar das ovelhas da família. Apesar de já ser um exercício de responsabilidade para a menina, essa atividade também possibilitava uma vida saudável nos campos e a companhia de outras crianças para muitas brincadeiras.

Lúcia logo se tornou mais próxima de outras três meninas da aldeia que, juntamente com ela, preferiam um lugar mais sossegado para os rebanhos, na encosta do monte do Cabeço. Depois das brincadeiras e da merenda, ela convidava as companheiras para a reza do terço, como sua mãe havia recomendado que fizesse todos os dias.

Um dia, as meninas viram sobre o arvoredo uma figura branca como neve, que o sol tornava resplandecente. Sem saber do que se tratava, continuaram a rezar o terço, até que a figura se desvaneceu. O resto do dia transcorreu na normalidade, de tal modo que Lúcia nem sequer contou em casa o que havia acontecido.

Alguns dias depois, surpreendida por uma pergunta da mãe, que ficara sabendo da história pelas vizinhas, já que as outras meninas haviam contado sobre o ocorrido ao chegarem a casa, Lúcia não teve outra resposta senão uma comparação infantil: “Parecia uma pessoa embrulhada num lençol… Não se lhe viam olhos nem mãos.”

A aparição se repetiu outras duas vezes, em outros lugares, na companhia das mesmas meninas, que voltaram a contar tudo em casa. Lúcia, habitualmente mais reservada, nada referia à mãe, que ficava sabendo dos fatos pelas vizinhas. Como a própria menina não era capaz de dar informações mais claras sobre o que vira, repetindo a comparação que fizera da primeira vez, suas irmãs começaram a caçoar dela. Quando eventualmente Lúcia se recolhia em oração e as irmãs notavam, logo lhe perguntavam se estava a ver alguém embrulhado num lençol. Essas foram as primeiras de muitas incompreensões que deveriam ser suportadas pelos pastorinhos no futuro…

Apesar de não haver recebido nenhuma revelação especial a respeito da identidade da aparição, a irmã Lúcia guardou em seu coração, até a morte, uma convicção íntima de que o celeste visitante seria o seu Anjo da Guarda: “Talvez dessa forma, sem falar, ele tenha querido fazer sentir a sua presença e preparar assim as almas para a realização dos desígnios de Deus.”

 

Por que os Santos Anjos?

 

As aparições de Nossa Senhora foram precedidas, por dois anos, pelas aparições dos Santos Anjos. Qual o significado desse modo de agir de Deus? Para a irmã Lúcia, as aparições de Fátima outra coisa não são que um convite especial aos nossos tempos para que voltemos a mergulhar na realidade do Evangelho. Ora, toda a Sagrada Escritura afirma não só a existência dos anjos, como a verdade da sua intervenção constante em nosso favor. De fato, Deus os criou precisamente para o fim a que também nós fomos criados: “servi-Lo, louvá-Lo, adorá-Lo e amá-Lo.” Na medida em que se debruçam sobre nós sob as ordens de Deus, os Santos Anjos nos ajudam a realizar nossa vocação de servos e adoradores do Deus vivo. A presença dos anjos em Fátima nos recorda de que somos feitos para as realidades eternas, que não se veem, num tempo e num mundo que se detêm apenas sobre as aparências e sobre as coisas passageiras. Assim diz a Palavra de Deus: “A nossa presente tribulação, momentânea e ligeira, nos proporciona um peso eterno de glória incomensurável. Porque não miramos as coisas que se veem, mas sim as que não se veem. Pois as coisas que se veem são temporais, e as que não se veem são eternas” (2Cor 4,18).

Mas quem são os anjos? Algumas pessoas, levadas por doutrinas estranhas às Sagradas Escrituras, pensam que os anjos são seres humanos falecidos, mais ou menos fortes ou necessitados do nosso fortalecimento. Nada mais contrário à doutrina católica! Segundo o Catecismo da Igreja Católica, que interpreta fielmente a verdade das Escrituras, os anjos “são criaturas puramente espirituais, dotadas de inteligência e de vontade: são criaturas pessoais e imortais. Superam em perfeição todas as criaturas visíveis. Disto dá testemunho o fulgor de sua glória” (CIC, 330).

Portanto, os anjos são puros espíritos; toda a sua natureza é imortal. Eles não estão sujeitos a nenhum tipo de crescimento ou perecimento. Além disso, são chamados também de “servidores e mensageiros de Deus”, “poderosos executores da sua Palavra”. Assim como toda a criação foi desejada pelo Pai em vista da glória de seu Filho, assim também “Cristo é o centro do mundo angélico” (CIC, 331): “Pois foi nele que foram criadas todas as coisas, nos Céus e na Terra, as visíveis e as invisíveis: Tronos, Dominações, Principados, Potestades; tudo foi criado por Ele e para Ele” (Cl 1,16).

De fato, “desde a Encarnação até à Ascensão, a vida do Verbo Encarnado é cercada da adoração e do serviço dos anjos”. Quando Deus “introduziu o Primogênito no mundo, diz: ‘Adorem-No todos os anjos’” (Hb 1,6). O canto de louvor deles ao nascimento de Cristo não cessou de ressoar no louvor da Igreja: “Glória a Deus nas alturas…” (Lc 2,14). Protegem a infância de Jesus, servem--No no deserto, reconfortam-No na agonia. Além disso, os anjos cooperam na obra da Redenção sendo também evangelizadores, ou seja, anunciadores da Boa-nova. Assim o fazem ao proclamar o nascimento e a ressurreição de Cristo.

 

E os anjos da guarda?

 

A Igreja acredita que,“desde a infância até a morte, a vida humana é cercada pela proteção e pela intercessão dos anjos. Cada fiel é ladeado por um anjo como protetor e pastor para conduzi-lo à vida. Ainda aqui na Terra, a vida cristã participa, na fé, da sociedade bem-aventurada dos anjos e dos homens, unidos em Deus” (CIC, 336).

A confiança no auxílio amoroso dos Anjos em nosso caminho rumo à pátria definitiva é baseada, já no Antigo Testamento, sobre a promessa de Deus: “Eis que eu envio o meu Anjo à tua frente, para te proteger no caminho e para te conduzir ao lugar que preparei para ti. (…) E o meu Anjo caminhará à tua frente” (Ex 23,20.23).

A Escritura nos revela, com essas palavras, que Deus confiou aos homens os seus anjos, a fim de acompanhá-los e lutarem juntos contra seu inimigo comum. Passando pelas provas, o homem deve prosseguir pelo caminho do mandamento de Deus em direção ao “lugar preparado”. Esse trajeto torna-se seguro na medida em que, instruídos pela Escritura e pela voz da Igreja, aprendemos também a ouvir interiormente as inspirações que nos são oferecidas pelo nosso Santo Anjo da guarda.

Como podemos, contudo, perceber essas inspirações? Em primeiro lugar, é preciso lembrar que cada anjo da guarda ama o seu protegido e não o abandona. Tal como é dito na parábola descrita em Mt 25, 14-30, somos como que o “talento” que é confiado por Deus ao Santo Anjo e que ele deseja devolver um dia, com êxito, ao seu Senhor. Portanto, é preciso que aprendamos a cultivar nossa amizade com o anjo como um hábito em nossa caminhada cristã. É certo que a voz do anjo se faz ouvir em nosso íntimo, contanto que estejamos interiormente calmos e receptivos. Devemos estar atentos a toda dissipação que, no tumulto e no barulho do dia a dia, nos leva constantemente para fora de nós mesmos, tornando-nos superficiais e necessitados de agitação exterior. Essa atitude nos ensurdece para os apelos que Deus nos faz mediante seus anjos.

Além disso, o propósito do anjo é sempre bastante claro: “Ele te conduzirá ao lugar que preparei para ti…” As inspirações vindas dele sempre apontarão para Deus e para sua Santa Vontade. Em toda situação, o Santo Anjo nos levará a pensar, em primeiro lugar, naquilo que nos firma em nossa fidelidade a Deus. O inimigo, ao contrário, terá sempre muita ciência e carinho por nossa vontade própria, nossas justificativas para pecar e tudo aquilo que nos amortece a consciência. De todo modo, somos sempre livres para dizer nosso sim ou nosso não àquilo que Deus nos propõe.

O Santo Anjo da guarda, portanto, é como que o “porteiro do Céu”. Ele abre para nós a porta da Santa Vontade de Deus e, através dela, a porta da eternidade e de todas as realidades perenes. Além disso, por ter participado da vitória contra os espíritos malignos, guiado pelo Arcanjo São Miguel, nosso Santo Anjo é capaz de reconhecer e afugentar o Tentador em virtude da graça. Seu auxílio é ajuda poderosa no “bom combate da fé” (1Tm 6,12) que devemos travar todos os dias para nos mantermos fiéis a Deus e à missão que dele recebemos.

Por fim, o anjo da guarda deseja nos ensinar uma última lição: a de sermos nós mesmos anjos da guarda para os que nos rodeiam. Sendo Jesus Cristo, Filho de Deus feito homem, o centro e o motivo de toda a Criação, o caminho perfeito para nossa realização plena é o do seu seguimento e imitação. Isso é de tal maneira verdadeiro que os Santos Anjos, ao serem designados por Deus para a nossa guarda, se alegram imensamente por poder, com esse ofício, imitar o Cristo Bom Pastor. A imitação de Cristo, a conformidade a Ele e ao sentimento do seu coração, é assim uma coroa de glória para os nossos anjos da guarda. E o mesmo pode acontecer conosco! Quando Deus permite que se aproxime de nós alguém especialmente necessitado de reencontrar o caminho da paz e do Céu, também nós podemos ser para essa pessoa “anjo da guarda” e “bom pastor”. Talvez não tenhamos condições de, humanamente, solucionar seus problemas — é certo que deveremos discernir a maneira mais equilibrada de ajudá-los sem nos deixar levar por nenhum tipo de confusão. Contudo, trazendo em nós a compaixão de Jesus Cristo e contando com a intercessão dos Santos Anjos, poderemos, com nossa presença, nossas palavras e nosso exemplo, iluminar uma parte do caminho desse irmão, para que ele faça melhores escolhas e progrida na direção da vontade de Deus.

 

Primeira aparição do anjo: oração

 

Chega a primavera do ano de 1916. Lúcia, agora, é acompanhada no pastoreio do rebanho pelos primos Francisco e Jacinta, que se tornam companheiros inseparáveis. Cria-se entre as crianças uma verdadeira amizade, que se traduz tanto nas brincadeiras quanto na oração em comum. É verdade que, nesse tempo, embora os pequenos houvessem encontrado um jeito de obedecer às ordens de dona Maria Rosa, mãe de Lúcia, para que rezassem o terço durante o dia, faziam-no sem sacrificar muito o tempo das brincadeiras. Praticavam uma espécie de “terço abreviado”: Lúcia, a mais velha, exclamava “Ave, Maria!”, ao que os dois menores respondiam, simples e piedosamente “Santa Maria!”. Pronto, eis o terço rezado em muito pouco tempo!

Numa dessas ocasiões, enquanto as crianças jogavam na região da colina do Cabeço, ao abrigo de uma rocha a que se deu o nome de “Loca do Cabeço”, sentiram um vento forte sacudir as árvores, apesar de o dia estar sereno. Viram então que, sobre as oliveiras, caminhava na direção delas “uma figura, como se fosse uma estátua de neve”. À medida que se aproximava, perceberam que se tratava de um jovem com seus 14 ou 15 anos, que o sol tornava transparente como se fosse de um cristal de grande beleza. As crianças ficaram arrebatadas diante de tal visão.

Ao chegar junto deles, o celeste visitante tentou acalmá--los:

— Não temais! Sou o Anjo da Paz. Orai comigo.

Ajoelhando-se na terra, curvou a fronte até ao chão e fez as crianças repetirem três vezes estas palavras:

— Meu Deus! Eu creio, adoro, espero e amo-Vos. Peço-Vos perdão para os que não creem, não adoram, não esperam e não Vos amam.

Depois, erguendo-se, disse:

— Orai assim. Os corações de Jesus e Maria estão atentos à voz das vossas súplicas.

Desaparecendo o Anjo, as crianças ficaram envoltas num ambiente sobrenatural tão intenso que, por longo espaço de tempo, permaneceram na posição em que ele as havia deixado, repetindo a oração que ficara gravada intimamente no coração. A presença de Deus foi sentida por elas de tal maneira que mal se atreviam a falar entre si nos dias seguintes. Tal como aconteceria posteriormente nas aparições de Nossa Senhora, porém, Francisco não ouviu a voz do anjo. Enquanto as meninas repetiam a oração que ele havia ensinado, Francisco fazia eco ao que delas ouvia.

Acerca dessa aparição, Lúcia confidenciou mais tarde que não foi preciso recomendar silêncio aos pequenos, visto que o silêncio se impôs por si mesmo. A experiência havia sido tão íntima e intensa que não era fácil pronunciar alguma palavra sobre ela. Além disso, Lúcia afirmou que as aparições do Anjo absorviam e aniquilavam quase por completo as forças dos pequenos. Durante alguns dias, eles faziam as ações materiais como que impelidos pela lembrança de sua presença. A paz e a felicidade que sentiam eram tão grandes, e ao mesmo tempo tão íntimas, que concentravam a alma completamente em Deus.

 

As lições da aparição do anjo

 

A exemplo de João Batista, enviado como Precursor a fim de preparar corações bem-dispostos para a vinda do Salvador, Deus também enviou seu Anjo para preparar os pastorinhos à mensagem da Santíssima Virgem. As disposições de alma, que cultivaram a partir de seus encontros com o Celeste Mensageiro, tornaram as crianças intimamente sensíveis aos apelos da Mãe de Deus e capazes de uma generosidade heroica para cumprir a missão que receberiam do Pai. Mas e nós? Que lições podemos aprender com a aparição do Anjo da Paz?

Acima de tudo, o primeiro encontro das crianças com o Anjo foi uma ocasião de escuta — apenas ele falou. Além disso, uma das marcas deixadas pelo Anjo após a sua partida foi a profunda propensão ao silêncio. Contemplando a beleza de Deus que transparecia através do seu Anjo, as crianças foram iniciadas nos segredos e na eficácia do silêncio e do recolhimento. Todos nós sabemos, por experiência, o quanto podemos nos tornar pessoas agitadas e superficiais se não soubermos colocar limites àquilo que vemos e ouvimos do mundo ao nosso redor. Como é fácil perder a sensibilidade para Deus quando nos envolvemos em mil preocupações e distrações! O encontro dos pastorinhos com o Anjo nos recorda que, se desejamos estar abertos para compreender a direção que Deus quer dar à nossa vida, devemos aprender a guardar em nosso coração um espaço para a comunhão íntima e silenciosa com o Senhor. Todo cristão que se deseja capacitado para a missão que Deus lhe confiou deve aprender também a arte do recolhimento interior e da escuta.

O profeta Isaías nos diz: “No silêncio e na esperança estará vossa fortaleza” (Is 30,15). O silêncio exterior — com o qual calamos as palavras inúteis — e o silêncio interior — com o qual colocamos um limite à enxurrada de pensamentos que nos invadem e que roubam a simplicidade do nosso olhar, tornando-nos pessoas “complicadas” — renovam as nossas forças. Recolhimento e escuta foram as duas primeiras lições aprendidas pelos pastorinhos.

Do mesmo modo, ao apresentar-se às crianças, o anjo repetiu palavras já conhecidas do Evangelho. Como o Arcanjo Gabriel a Nossa Senhora, ou os anjos da ressurreição às santas mulheres, o convite do anjo aos pastorinhos foi um chamado à confiança: “Não temais!” Quantas vezes, diante de algo novo que se apresenta a nós e nos causa assombro, poderíamos também ouvir a voz de Deus dizendo ao nosso coração: “Não tenha medo!” Apesar de tudo o que viria pela frente, a primeira palavra vinda do Céu ao coração daqueles pequenos pastores foi um convite à corajosa entrega nas mãos de Deus, pois Nosso Senhor vence o medo que nos paralisa e nos inspira confiança nele.

Abraçar nosso lugar nos planos de Deus não significa que seremos capazes de prever todas as circunstâncias, ou que teremos o controle de todas as situações. Quando sabemos quem é o Deus que nos sustenta, não precisamos saber como será o dia de amanhã; “basta a cada dia o seu cuidado” (Mt 6,34). A confiança em Deus e no seu amor muda inteiramente nossa maneira de pensar e de acolher as coisas que nos acontecem. De tal modo isso é verdade que o apóstolo Paulo, diante das provações que cercam a vida de um cristão fiel, nos faz dizer: “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são os eleitos, segundo os Seus desígnios” (Rm 8,28). Pela confiança, aprendemos a deixar os planos de Deus amadurecerem em nossa vida; o medo não nos paralisa, porque sabemos que mesmo as circunstâncias adversas têm um lugar em nosso caminho rumo a Deus.

“Sou o Anjo da Paz.” Assim identificou-se o mensageiro do Céu às crianças. Anjo da Paz, ou seja, o anjo cuja missão é conduzir os homens à paz. Não há dúvidas de que o ministério e a intervenção desse anjo foram especialmente necessários ao longo desse século, desde as aparições de Fátima. A presença do anjo nos faz compreender, de maneira muito clara, que a paz tão necessária e tão desejada pelos homens é um dom vindo do Céu, de Deus. A paz é muito mais fruto de nossa rendição à vontade perfeita de Deus do que das negociações de interesses humanos. Por isso, logo depois de se apresentar às crianças, o Anjo convidou-as à oração. Na verdade, ele se tornou para elas um verdadeiro mestre de oração, pois suas palavras ficaram gravadas para sempre em seus corações. Daquele dia em diante, os pastorinhos passavam longas horas prostrados repetindo a oração, até cair cansados: Meu Deus! Eu creio, adoro, espero e amo-Vos. Peço-Vos perdão para os que não creem, não adoram, não esperam e não Vos amam.

A oração é composta de uma declaração de amor a Deus e de uma súplica de intercessão pelos homens. Amor a Deus e amor ao próximo são o resumo de toda a Lei (cf. Mt 22,39) e nos colocam no centro da vontade de Deus. A irmã Lúcia dizia que as orações ensinadas pelo Anjo foram uma constante em sua vida. Nelas se encontra tudo: profissão de fé, adoração, ato de amor, intercessão pelos irmãos que não sabem, não podem ou não querem rezar. Além disso, segundo ela, “nestas orações, quem reza está pelos outros em adoração, intercedendo e reparando, sem pensar em si”. O esquecimento de si mesmo para colocar-se no lugar do próximo também é um dos ingredientes da vida e da oração cristã.

Se tomarmos cada palavra da oração, perceberemos que são convites a atitudes bem concretas. Em primeiro lugar: Meu Deus, eu creio! Tudo na vida cristã se dá pela fé. Seria maravilhoso se pudéssemos fazer dessa oração, ensinada por um celeste mensageiro, a nossa oração diária. Ela seria então como que um brado da nossa alma, clamando a Deus no meio das tempestades de cada dia: “Meu Deus, em todas as circunstâncias, mesmo não compreendendo teus caminhos, confiando inteiramente no teu amor de Pai, eu creio!” Já o Salmo 115 nos convida a proclamar: “Guardei a minha fé mesmo dizendo ‘é demais o sofrimento em minha vida’” (Sl 115,1). A bem-aventurada Elena Guerra, apóstola do Espírito Santo nos tempos modernos, escreveu um dia em uma carta: “Creio! Creio! Creio! Isso direi até o último suspiro!” E assim de fato aconteceu: no momento da morte, desejosa de rezar o Credo, expirou ao dizer a primeira palavra: Creio!

Do mesmo modo, meditando sobre as palavras do anjo, veríamos crescer em nós uma disposição constante à adoração. Adorar significa reconhecer a santa e perfeita fidelidade de Deus ao seu Santo Nome. Ele é o mesmo “ontem, hoje e eternamente” (Hb 13,8), não importam as circunstâncias que estejamos vivendo: quando adoramos a Deus, reconhecemos que Ele permanece acima de tudo, governando tudo com seu amor eterno. A adoração é o antídoto para o embaço que Satanás cria em nossos olhos por meio da descrença e do desânimo. Quando, repetindo a oração angélica, nosso coração declarar ao Senhor Meu Deus, eu adoro!, estaremos voltando nosso olhar para Aquele que permanece fiel em meio a todas as vicissitudes de nossa vida.

A terceira atitude de alma que renovamos ao orar como o Anjo ensinou aos pastorinhos é a esperança. A Bíblia nos ensina que ela é a âncora que firma nossa alma além das nuvens (Hb 6,19), ou seja, além das provações, no trono da graça de Deus. Pela esperança, virtude que vem de Deus e nos leva para Ele, dirigimos os nossos olhos para o bem que o Senhor quer e pode nos fazer, mesmo quando estamos atravessando vales e provações.

Por fim, o Santo Anjo nos convida a dizer: Meu Deus, eu Vos amo! É maravilhoso que Deus nos tenha dado a capacidade de amá-Lo, mas é ainda mais maravilhoso que Ele aceite nosso amor, tão imperfeito e frágil. Contudo, imediatamente após a nossa “declaração de amor” ao Senhor, a oração muda de rumo e se torna uma súplica por todos os que não creem, não adoram, não esperam e não amam. Segundo o entendimento que a irmã Lúcia recebeu da oração, isso significa que “para que a nossa fé, a nossa adoração, a nossa esperança e o nosso amor sejam verdadeiros e agradáveis a Deus, têm que reverter a favor dos nossos irmãos, por meio da nossa oração, do nosso bom exemplo, das nossas palavras e das nossas obras. Temos que procurar ajudá-los e atraí-los, para os levarmos a Deus por caminhos retos de verdade, de justiça, de paz e de amor”.

É interessante que, no momento em que a oração se torna uma súplica pelos que não creem, ela se torne também um pedido de perdão: Peço-Vos perdão para os que não creem, não adoram, não esperam e não Vos amam. Há aqui uma lição especial: enquanto nosso coração não abre mão do julgamento e das acusações, não somos capazes de ter uma verdadeira compaixão por aqueles que erram, ao ponto de rezar e pedir a Deus a sua salvação. Sem perdão, não há intercessão. Por outro lado, o perdão só começa a acontecer quando rezamos por aqueles que feriram o coração de Deus e, talvez, tenham ferido também o nosso. Perdão e oração são realidades que se entrelaçam, tal como o próprio Salvador nos ensinou na Cruz, dizendo: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34).

Em seu comentário à oração do anjo, irmã Lúcia nos ensina ainda que, quando nos colocamos diante de Deus para pedir perdão por aqueles que não creem, não adoram, não esperam e não amam, de repente podemos descobrir que nós mesmos estamos nesse número. Então, que lição gloriosa!, descobrimos que, na medida em que oramos pelos que têm falhado no amor, crido fragilmente ou esperado e adorado de maneira fria, podemos estar orando por nós mesmos. Cumpre-se, então, aquilo que o próprio Salvador já nos havia ensinado a pedir: “Perdoa as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos têm ofendido.”

Depois de ensinar a oração, o Santo Anjo encorajou as crianças certificando-as de que “os corações de Jesus e de Maria estão atentos à voz das vossas súplicas”. Quando oramos “com o coração”, podemos ter a certeza de que o coração de Deus está aberto para nos ouvir. Vivemos num mundo e num tempo de tanta desatenção… Chega-se a falar de uma síndrome de deficiência na atenção que nos impede de mergulhar com profundidade numa atividade ou num estudo. Contudo, os corações de Jesus e Maria são atentos, capazes de se deter sobre nós e sobre nossas súplicas, descendo profundamente sobre cada situação que lhes apresentamos. Cultivar a atenção ao Senhor na oração é uma tarefa árdua, mas que realiza em nós uma transformação profunda, capaz de abençoar todas as áreas da nossa vida. Por fim, as palavras do anjo aos pastorinhos inspiram, também a nós, a certeza de que o Senhor se importa com nossas palavras e nossos pedidos, especialmente quando são movidos pelo amor ao próximo.

 

Segunda aparição do anjo: sacrifício

 

No auge do verão, os pastores levavam as ovelhas para o pasto na parte da manhã e traziam-nas de volta para os estábulos na hora do almoço. Após a refeição, por causa do intenso calor, todos se recolhiam para a sesta. Numa dessas ocasiões, enquanto as crianças brincavam junto ao poço que havia atrás da casa de Lúcia, receberam pela segunda vez a visita do anjo. Dessa vez, foram interrompidas em suas brincadeiras por uma pergunta do Celeste Amigo:

— Que fazeis? Orai, orai muito. Os corações santíssimos de Jesus e de Maria têm sobre vós desígnios de misericórdia. Oferecei constantemente ao Altíssimo orações e sacrifícios.

Surge então uma nova palavra, que daquele dia em diante fará parte da vida dos pastorinhos: sacrifício. Naquela ocasião, as crianças não sabiam exatamente o que essa palavra poderia significar. Por isso, Lúcia perguntou:

— Como havemos de nos sacrificar?

— De tudo que puderdes — respondeu o anjo. — Oferecei a Deus sacrifício em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e súplica pela conversão dos pecadores. Atraí, assim, sobre a vossa pátria, a paz. Eu sou o anjo da sua guarda, o Anjo de Portugal. Sobretudo, aceitai e suportai, com submissão, o sofrimento que o Senhor vos enviar.

Após ensinar o valor da oração e incutir no coração dos pequenos a certeza confiante da atenção de Deus sobre as nossas súplicas, o anjo ensinava agora o valor e o sentido do sacrifício. Cada palavra desta segunda aparição pode dizer muito também a nós.

Ao aproximar-se das crianças, o anjo interrompe suas brincadeiras com uma pergunta: Que fazeis? Certamente que os divertimentos dos pastorinhos naquela quente tarde de verão eram inocentes, mas o propósito da pergunta era levá-los a tomar consciência do valor dos pequenos atos de nossa vida e da importância de não perdermos nenhuma oportunidade de nos unirmos mais perfeitamente à vontade de Deus.

Hoje, o anjo poderia fazer também a mim e a você a mesma pergunta. Em que você está envolvido nesse dia? O que está sendo para você motivo de agitação ou dispersão? O que você está fazendo com sua alma e com aqueles que o Senhor confiou aos seus cuidados? Porque somos tantas vezes arrastados por uma atividade febril e nem sequer nos damos conta de que vai se abrindo um grande vazio dentro de nós, é preciso perguntar-nos vez por outra: “Que estou fazendo?” Algumas circunstâncias, que nos fazem parar o caminho acelerado do nosso dia a dia, podem ser um modo de Deus nos perguntar o que estamos fazendo. Uma enfermidade que nos obriga a diminuir nosso ritmo acelerado; uma limitação que nos faz reconhecer que não damos conta de tudo; a perda de alguém que tínhamos ao nosso lado…

A pergunta do anjo obriga-nos a olhar para nós mesmos. Tendemos a perceber de maneira muito atenta aquilo que outros estão fazendo. Principalmente quando nos sentimos prejudicados pelas atitudes de alguém, ou quando alguma coisa não sai como havíamos planejado, identificamos imediatamente os responsáveis por nosso sofrimento. Contudo, apenas quando somos capazes de reconhecer o que nós mesmos estamos fazendo com nossa alma é que somos libertados da opressão das circunstâncias. Quando abrimos mão da posição de vítima e nos questionamos sobre nossas próprias atitudes, sobre o modo como estamos reagindo ao que nos cerca, Deus gera em nós a graça do arrependimento e nos concede fortaleza para a mudança. Responder à pergunta “O que estou fazendo?” obriga-nos a reconhecer nossa posição diante da vida e diante de Deus.

A Escritura nos conta que, um dia, Jesus encontrou-se com uma mulher samaritana junto a um poço. Inicialmente, a conversa parecia correr em linhas paralelas, até que Jesus questionou a mulher a respeito de seu casamento. De maneira evasiva, ela respondeu que não era casada. De fato, diz Jesus, ela já havia se casado cinco vezes, e seu atual companheiro não era seu marido. Gradualmente, a mulher vai abrindo seu coração a Jesus, que parecia conhecê-la tão bem. Ao final da conversa, ela retorna para sua aldeia e anuncia que encontrou o Messias. O testemunho que ela tem a oferecer a seus compatriotas é surpreendente: “Encontrei um homem que me disse tudo que eu fiz!” (Jo 4,29). Que maravilhosa descoberta: encontrar alguém que, sem acusar, sem usar nossos erros para nos desanimar, revela-nos tudo o que fizemos e as consequências que isso tem causado em nossa vida. Um encontro assim é capaz de fazer alguém ver as coisas de outra maneira; pode-se tentar, então, um novo caminho. Será que nós também não precisamos de um encontro assim, hoje? É essa experiência de encontro com Jesus que a pergunta do anjo pode nos proporcionar.

A essa pergunta, porém, segue-se um conselho: “Orai, orai muito!” Questionada um dia sobre o que significaria orar muito, a irmã Lúcia respondeu: “O que cada um entende por orar muito está de acordo com a medida de amor do seu coração. Se cada um de nós orasse muito, certamente a medida do amor cresceria; e se cada um de nós amasse muito, por sua vez, a medida da oração aumentaria igualmente.” O próprio Jesus um dia nos disse: “Onde está o teu tesouro, aí estará também teu coração” (Mt 6,21). Se fizermos uma escolha por Deus, se o mantivermos diante dos olhos como alvo de nossa vida, então certamente também encontraremos tempo para rezar. Enquanto não escolhemos Deus, não temos tempo para Ele, ainda que consigamos encontrar tempo para outras coisas que nos parecem urgentes. A respeito de tudo na vida, e não só a respeito da oração, vale a regra: temos tempo para aquilo que é prioridade. Orar muito, portanto, não é um luxo para aqueles que têm tempo de sobra; é uma necessidade para aqueles que não querem sair da presença de Deus.

Nesse segundo encontro com o anjo, Lúcia pediu um esclarecimento. Este continuou sendo o modo como transcorreram as aparições até o fim: Francisco apenas via o anjo e Nossa Senhora, mas não os ouvia. Jacinta via e ouvia. Lúcia, por sua vez, podia ainda falar com os visitantes celestes. Tendo ouvido a palavra “sacrifício”, Lúcia perguntou como poderiam eles se sacrificar.

De tudo que puderdes, oferecei… Maravilhosa lição para a vida de todo cristão: quando estamos unidos a Deus, nada se perde, nem os sofrimentos. Tudo pode ser consagrado, ofertado a Deus no altar de nosso coração. Quando não apenas suportamos as provas da vida, mas nossas dores se tornam “sofrimentos consagrados” pela nossa íntima oferta ao Senhor, pela nossa união com a sua Cruz, então cada pequena dor reveste-se do incrível poder do Calvário: “Completo o que falta às tribulações de Cristo em minha carne pelo Seu corpo, que é a Igreja” (Cl 1,24). Não que falte algo ao que Cristo realizou por nós. Mas, como agora somos uma só coisa com Ele, deve completar-se em nós o grandioso mistério que da Cruz faz brotar vida.

Como, na prática, podemos transformar sofrimentos em oferta a Deus? Há basicamente dois tipos de sacrifício que podemos oferecer: os que nós próprios escolhemos e aqueles que Deus nos envia. As palavras do Anjo dão a entender que a aceitação do segundo tipo de sacrifício é especialmente agradável a Deus. Vinte e cinco anos depois das aparições, quando era já religiosa na Espanha, a irmã Lúcia pediu a Deus algumas luzes especiais sobre o tema do sacrifício e da penitência. Afinal, algumas pessoas, julgando que penitência significava grandes austeridades, e não sentindo forças nem generosidade para tanto, poderiam desanimar e se render a uma vida de tibieza e pecado. Foi então que, numa noite de quinta para sexta-feira, o Senhor lhe falou ao coração: “O sacrifício que de cada um exige o cumprimento do próprio dever na observância da minha Lei, essa é a penitência que agora peço e exijo.” E completa então a irmã: “O sacrifício que cada pessoa tem que impor--se a si mesma para levar uma vida de justiça na observância da Sua Lei; é esse caminho que o Senhor deseja que se faça conhecer com claridade às almas.” A própria irmã Lúcia, que com coração generoso desejava entregar sua vida ao martírio por Jesus Cristo, percebeu então que existe um outro tipo de martírio “por vezes ainda mais difícil, que consiste no golpear lento do martelo da renúncia que crucifica e imola, como a lima surda que desgasta a vida que se entrega para sempre: o que tu quiseres, meu Deus e meu Senhor!”

É verdade que, a partir dessa segunda visita do anjo, os pastorinhos não perderam mais nenhuma oportunidade de sacrificar alguns pequenos prazeres de criança: davam seu almoço para os pobres e se alimentavam com ervas amargas do campo; não bebiam água, mesmo no calor do verão, enquanto estavam cuidando do rebanho; inventaram um “cinto da penitência”, uma corda áspera que levavam amarrada sob a camisa. Contudo, todas essas coisas eram como que um exercício para dar vazão e alargar a generosidade de seus corações infantis. Chegando o tempo da enfermidade e das maiores provações, os pastorinhos manifestaram profundo espírito de sacrifício ao viver tudo sem reclamações, transformando seus sofrimentos em “sofrimentos consagrados” pela aceitação e pela rendição confiante à vontade e ao chamado de Deus.

À luz dos comentários da irmã Lúcia, podemos entender que “o sofrimento que o Senhor vos enviar” é a cruz que acompanha cada nova missão ou tarefa que Ele nos confia. As obras de Deus são seladas com o sinal da Cruz; nossa fidelidade diária ao chamado que o Senhor um dia nos fez, seja para a vida matrimonial ou consagrada, seja nessa ou naquela área profissional, trará consigo, certamente, algumas contrariedades. Quando damos nosso “sim” ao chamado de Deus, não imaginamos aonde esse sim nos levará, não somos capazes de prever todas as circunstâncias. Esconde-se aí o “sofrimento que o Senhor nos envia”. Porém, se é verdade que não podemos escolher cada circunstancia da vida, é verdade também que podemos escolher como vivê-las: com espírito de revolta ou com disposição para o sacrifício. Esse é o convite que o anjo nos faz nessa segunda aparição.

 

“Reparação”: palavra-chave da mensagem

 

Qual, no entanto, seria o propósito de uma vida de oração e sacrifício? O próprio Santo Anjo nos responde, ao dizer a Lúcia: “oferecei a Deus sacrifício em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e súplica pela conversão dos pecadores”. A intenção primeira é a da reparação, ou seja, a de restaurar o dano causado pelo pecado. Esta palavra — “reparação” —, talvez tão pouco comum em nossa linguagem habitual, é uma das palavras--chave para compreendermos a mensagem de Fátima. O que ela significa, afinal?

O verbo “reparar” possui diversos sentidos. Mais comumente, significa restaurar, recompor até o estado primitivo. Sabemos que nosso relacionamento com Deus foi ferido pelo pecado e nos tornamos distantes Dele. A Escritura nos diz que o pecado se tornou um abismo no qual mergulhou nossa alma. Mas a misericórdia de Deus, mais alta e mais profunda, foi capaz de nos alcançar. Um abismo foi colocado diante do outro, nosso pecado foi posto diante do amor redentor de Deus: “Um abismo chama outro abismo” (Sl 41,8). E os braços de Cristo crucificado se interpuseram entre ambos, reunindo de novo Céu e Terra, nosso coração ao Coração de Deus (Cl 1,20). Com o seu Coração consumido pelo desejo de fazer a vontade do Pai e pelo desejo de salvar a ovelha perdida, Jesus reparou a fenda que havia entre nós e Deus. O caminho escolhido para realizar essa obra e nos conduzir de volta ao Pai foi o caminho da Cruz e do sofrimento. Porque a capacidade de amar de Cristo é imensa, é também imensa a sua capacidade de sofrer. Seu amor é sempre um amor de imolação, ou seja, um amor disposto a tudo deixar por aquele que se perdeu. Pelo sacrifício de sua vida doada até o fim, Jesus reparou, restaurou a comunhão entre os homens e Deus, abrindo para nós um “novo e vivo caminho”. O perdão “mais forte que a morte” nos alcançou e nos abriu as portas para uma nova vida.

Contudo, há multidões que não conhecem ou se esqueceram desse amor. Há muitos que, tendo um dia sido agraciados por ele, tornaram-se insensíveis e ingratos. Cristo, porém, continua amando-os e ardendo no desejo de acolhê-los. Se é verdade que, atualmente, Ele já não pode mais padecer em sua humanidade e dar largas a esse amor por meio do sofrimento, também é verdade que Ele pode ainda padecer em nós, que somos o seu Corpo nesta Terra (1Cor 12,12). Todos os que estamos em Cristo devemos ter em nós “o mesmo sentimento dele” (Fl 2,5). Ora, São Paulo nos diz em 2Cor 1,5 que devem “crescer em nós os sofrimentos de Cristo”, para que possamos ser instrumento de consolação para os irmãos. Que grandioso destino o que nos foi reservado por Deus: participar da missão do Salvador, ou seja, de sua Paixão, por meio da oferta de nossa vida — tantas vezes de maneira sofrida —, para que outras pessoas possam ter sua comunhão com Deus restaurada. Diante das ruínas que se amontoam por todos os lados, um cristão não pode fechar o coração sobre si mesmo. A mensagem de Fátima nos convida a ser colaboradores de Deus na restauração de muitos.

Lembremos que a mensagem foi dirigida, em primeiro lugar, a três crianças. O caminho de oferecimento de si que o Espírito Santo inspirou nos seus corações devia ser trilhado, portanto, segundo as possibilidades de uma criança. É maravilhoso descobrir o quanto elas usaram sua imaginação infantil para aproveitar todas as oportunidades de oferecer as pequenas contrariedades do dia a dia com espírito de amor, por reparação e para a conversão dos pecadores. Eram crianças “resolvidas ao sacrifício”! Por intermédio delas, Deus nos mostra que não é preciso ter muito para dar muito. Aquele que possui pouco, mas se dá por inteiro, dá muito. Assim também podemos fazer nós, se aprendermos a usar nossas cruzes para o bem das almas e para o Céu, em vez de as desperdiçarmos pelo espírito de revolta e de reclamação. São Francisco de Sales recorda que são de modo especial valiosas as cruzes que encontramos na rua e aquelas que achamos em casa. Nada se perde para quem tem o coração generoso e deseja reparar as tantas feridas ainda abertas pelo pecado, mas que podem ser curadas pelo fluir do Sangue Precioso de Cristo através da vida daqueles que são Dele.

Além do sentido de uma vida oferecida a Deus pela salvação dos homens, na qual toda ocasião de amar, inclusive o sofrimento, é aproveitada ao máximo, a palavra “reparação” também possui outro significado, mais íntimo, de consolar a Deus. Veremos esse tema um pouco mais adiante.

 

O Anjo de Portugal

 

Em seu segundo encontro com os pastorinhos, o anjo revelou algo novo a respeito de sua identidade: Sou o Anjo de Portugal.

Diz o Catecismo da Igreja Católica que “esta ordem ao mesmo tempo cósmica, social e religiosa da pluralidade das nações foi confiada pela Providencia Divina à guarda dos anjos” (CIC, 56). A fé em que toda nação tenha o seu anjo da guarda, posto por Deus para lutar pelos divinos interesses sobre cada povo e para interceder por seus protegidos, está enraizada em algumas passagens do Antigo Testamento. O Arcanjo São Miguel é chamado, no livro de Daniel (Dn 10,21), de “príncipe do povo de Israel”. Também no livro do profeta Zacarias encontramos uma visão na qual o anjo intercede pelo povo de Israel: “Então disse o Anjo do Senhor: ‘Senhor dos Exércitos, até quando demorarás ainda a ter piedade de Jerusalém e das cidades de Judá, contra as quais estás irado, há setenta anos?’ E o Senhor respondeu ao Anjo que falava comigo, com boas palavras, com palavras consoladoras” (Zc 1,12-13).

Alguns comentadores do Novo Testamento consideram que a passagem narrada em Atos dos Apóstolos (At 16,9), na qual o apóstolo Paulo é chamado em sonho para pregar na Macedônia, refere-se a uma visão do anjo da guarda daquela nação, desejoso de que Paulo se dirigisse para lá a fim de anunciar o Evangelho.

Em Fátima, o Anjo que se apresenta aos pastorinhos se chama pelo nome de Anjo de Portugal. Seu desejo é atrair a paz para a nação, pedindo às crianças, portanto, que ofereçam orações e sacrifícios. “A oração é irmã do sacrifício.” O Salvador assim o mostrou, cobrindo sua Cruz com súplicas de perdão e palavras de confiança no Pai. Se, por revelação de Deus, sabemos que essa é a realidade espiritual que nos cerca, aprendamos com a mensagem de Fátima a pedir a intercessão do anjo da guarda de nossa pátria, unindo-nos a ele em oração e penitência pelos destinos do nosso povo.

 

Terceira aparição do anjo: íntima comunhão

 

Na terceira e última aparição, o Santo Anjo conclui sua missão de preparar os pastorinhos para as coisas maiores que viriam. Lúcia recorda que esse último encontro com o Celeste Mensageiro aconteceu no outono de 1916, na gruta onde o haviam visto pela primeira vez, chamada, como vimos, Loca do Cabeço. Enquanto as crianças, como de costume, rezavam prostradas a oração aprendida na primeira aparição, sentiram-se envolvidas por uma luz intensa. Nela, avistaram o anjo com um cálice nas mãos, sobre o qual pairava uma hóstia de que caíam algumas gotas de Sangue. Sem nada dizer, o anjo deixou o cálice e a hóstia suspensos no ar e ajoelhou com o rosto por terra, no que foi acompanhado pelos pastores. Rezou, então, esta oração:

 

Santíssima Trindade, Pai, Filho, Espírito Santo, adoro-Vos profundamente e ofereço-Vos o preciosíssimo Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Jesus Cristo, presente em todos os sacrários da Terra, em reparação dos ultrajes, sacrilégios e indiferenças com que Ele mesmo é ofendido. E pelos méritos infinitos do Seu Sacratíssimo Coração e do Coração Imaculado de Maria, peço-Vos a conversão dos pobres pecadores.

 

O anjo rezou lentamente, para que as crianças repetissem. Como das outras vezes, Francisco repetiu ao ouvir a irmã e a prima, pois não escutava a voz do mensageiro. Em seguida, erguendo-se, o anjo tomou a hóstia e ministrou-a a Lúcia, enquanto o conteúdo do cálice foi oferecido a Jacinta e a Francisco. Ao fazer isso, disse: “Tomai e bebei o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo, horrivelmente ultrajado pelos homens ingratos. Reparai os seus crimes e consolai o vosso Deus.” Poderíamos agora nos lembrar das palavras do Salvador, manifestando aos discípulos que eles participariam de seus sofrimentos: “Vós bebereis o cálice que eu devo beber e sereis batizados no batismo em que eu devo ser batizado” (Mc 10,39). Então, prostrando-se todos ao chão novamente, repetiram por três vezes a oração à Santíssima Trindade, desaparecendo o anjo em seguida.

Sem perceber sua ausência, as crianças, em êxtase, permaneceram prostradas por longo tempo. Foi Francisco que, notando a proximidade da noite, chamou a atenção das meninas para a necessidade de retornarem à casa. Desde aquele dia, não viram mais o anjo, que havia cumprido sua missão: como bom catequista, levou as crianças até Jesus na Eucaristia, alargando seus corações segundo as dimensões de Deus. Estavam prontas, portanto, para responder ao chamado que receberiam do Céu.

 

Corações unidos

 

A oração ensinada pelo anjo em sua última aparição é uma revelação da dor do coração de Deus e, ao mesmo tempo, um convite a compartilharmos de seu sofrimento e tornar-nos um só coração com Cristo, que se ofereceu de uma vez por todas ao Pai para cobrir o pecado do mundo com a entrega de sua vida.

Alguém poderia imaginar: “Como podemos falar que há dor no coração de Deus, ou que Ele sofre?” É claro que Deus, soberano em majestade, não sofre as limitações ou contrariedades que nós sofremos. Em Deus, a capacidade de sofrer é proporcional à sua capacidade de amar. Ele sofre porque nos ama, vendo-nos afastados Dele e entregues a tantos enganos e solidão. Nesse sentido, a mensagem de Fátima não é outra coisa senão um lamento do coração amoroso de Deus. Ele busca corações sintonizados com o seu, com os quais possa compartilhar a sua dor e, por isso mesmo, consolar-se.

Deus quis que seu sofrimento por amor, um sofrimento que podemos chamar de compaixão, se derramasse sobre o mundo e fosse capaz de curá-lo pela encarnação de seu Filho, Jesus Cristo. O Verbo de Deus encarnado sofreu por nós, e o fez com um coração humano. A poderosa compaixão de Cristo, que era capaz de curar enfermos e mesmo ressuscitar os mortos, manifestou-se de maneira gloriosa no Calvário, onde o Salvador se entregou por cada um, cobrindo nossos pecados e egoísmo com seu amor puro e generoso.

Ora, tendo voltado para o Pai, Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro, não experimenta mais a dor e o sofrimento como os experimentou em sua vida terrena. Contudo, sua capacidade de sofrer, assim como sua capacidade de amar, permanece imensa. Por isso, para dar vazão a tamanho oceano de amor oblativo, Jesus compar-tilha com seu Corpo na Terra, a Igreja, o sentimento de seu coração. Inflamada por esse amor que anseia por entregar-se para que muitos tenham vida nova, a Igreja se sacrifica há dois mil anos. E o faz de modo bem concreto, por aqueles seus filhos e filhas que oferecem sua vida, os pequenos atos de cada dia, para a salvação do mundo.

Cristo alimenta a Igreja consigo mesmo, com seu amor sacrificado, por meio da Eucaristia. Quando nos unimos a Ele em comunhão, podemos ser abrasados com o mesmo amor que havia no seu peito na Cruz. Assim, tendo o mesmo sentimento de Cristo, poderemos oferecê-lo ao Pai, na unção do Espírito Santo, para cobrir ainda mais largamente a humanidade inteira com o perdão divino. A cada comunhão, em cada Eucaristia, realizamos o que a oração do anjo ensinou aos pastorinhos: oferecemo-nos com Cristo, por Cristo e no Cristo eucarístico à Santíssima Trindade. E nesse retorno amoroso para a fonte de nossa vida, que é Deus, arrastamos conosco, por nossa oração, sacrifício e testemunho, tantos e tantos que, esquecidos do amor, perdem-se na indiferença ou no ódio. O amor cobre uma multidão de pecados e é capaz de alcançar o coração do pecador. Crer nesse prodígio silencioso do sofrimento oferecido em união com o coração de Cristo é uma das chaves para compreendermos a mensagem de Fátima.

A oração do anjo indica, ainda, quais as causas do constante sofrimento do coração de Deus, que Ele compartilha com os que abrem seus ouvidos ao seu apelo: ingratidões, ultrajes, sacrilégios e indiferenças. Se, em Deus, sofrer e amar se confundem, a causa de seu sofrimento não poderia ser outra senão nossa frieza diante da Aliança que nos é proposta.

A Escritura nos afirma que o desejo de Deus ao criar o homem era compartilhar sua vida, sua amizade. Ao enviar seu Filho para nos reconduzir à casa, o Pai prometeu que Ele seria conhecido por todos como “Emanuel”, que significa “Deus conosco”. Esta é a identidade de Jesus, seu modo de ser: “Deus conosco.” A missão de Jesus foi muitas vezes, por Ele mesmo, resumida nessas palavras: “Coragem! Sou eu! Não tenhais medo” (Mc 6,50). Ou então: “Eu estarei convosco todos os dias, até o fim!” (Mt 28,20). A resposta dos homens, ao longo dos tempos, não tem sido outra senão desprezo e abandono. De fato, o caminho de Jesus até o Calvário foi um caminho de profunda solidão: um de seus amigos o traiu, outro o negou. Na hora de maior angústia, todos dormiram, sem conseguir vigiar ao seu lado e compartilhar o seu sofrimento. Durante sua Paixão, o Senhor não foi julgado uma, senão cinco vezes. O Emanuel foi abandonado à Cruz. E, ainda assim, fiel à sua missão e ao seu ser, Ele prosseguiu em amar e se doar. Ainda hoje, com sua fidelidade eucarística, Ele continua a cobrir tantas ingratidões e esquecimentos com um amor maior, ao qual deseja associar cada um dos que se abrem a Ele.

Essa gloriosa união ao Coração entregue de Jesus na Cruz foi acolhida, antes de tudo e mais do que qualquer outro, pela Virgem Santíssima. Por isso, na oração do anjo, o Imaculado Coração de Maria aparece unido, fundido, ao Coração de Jesus. Juntamente com ela, agora é nossa vez de tomarmos lugar nessa comunhão de corações. Como não temos nada de próprio a apresentar nesse ofertório cotidiano ao altar da vida, oferecemos à Santíssima Trindade o perfeito sacrifício do Coração de Jesus e a perfeita comunhão com Ele que realizou o Coração de Maria. Nessa oferta unimos nossas frequentes dores, alegrias, obras e palavras, para que tudo seja “matéria-prima” nas mãos de Deus, que deseja mergulhar os corações dos homens no amor salvador de Cristo.

A oração do anjo termina com a súplica pela conversão dos pobres pecadores. Eles, todos nós, só podemos ser alcançados e tocados no íntimo por algo que venha do coração de Deus e nos leve de volta para Deus. Tal é a compaixão infinita que Jesus compartilha conosco na Eucaristia que, inflamando nosso coração, pode consumir todas as nossas ações; por esse caminho, nada se perde, nem mesmo aqueles momentos de inação nos quais nos sentimos atados por nossas limitações e pelos laços que nos prendem à cruz de cada dia. Esse é o caminho ensinado pelo anjo aos pastores, o caminho pelo qual eles correrão com a ajuda da Mãe de Deus.

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