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A Senhora mais brilhante que o sol

 

 

Maio: o primeiro encontro

 

No dia 5 de maio de 1917, o papa Bento XV, diante da tragédia da Primeira Guerra Mundial, decidiu acrescentar à Ladainha de Nossa Senhora a invocação “Rainha da Paz”. Convocando a Igreja à oração, o Santo Padre dizia: “Eleve-se a Maria, que é Mãe de Misericórdia e onipotente por graça, esse amoroso e devoto apelo… E leve a ela o angustiado grito das mães e das esposas, o gemido das crianças inocentes, o suspiro de todos os corações: mova a sua terna e benigníssima solicitude para obter para o mundo perturbado a ansiada paz.” No dia 13, domingo, em Fátima, os três pastorinhos, depois de participar da Missa na matriz, foram tocar os rebanhos para as pastagens próximas da aldeia, como era seu costume. Foram até uma região conhecida como Cova da Iria, de propriedade dos pais de Lúcia, um pequeno vale onde, um dia, havia existido uma capela de devoção à mártir Santa Irene (ou Santa Iria). Enquanto brincavam, por volta do meio-dia, as crianças avistaram um relâmpago e, pensando que poderia ser aviso de tempestade, começaram o retorno para casa. Ao descer a encosta e reunir o rebanho, perceberam perto de uma azinheira outro relâmpago e, sobre uma das árvores, uma senhora, vestida toda de branco, “mais brilhante que o sol”, espargindo luz, mais clara e intensa que um copo de cristal cheio de água límpida sendo atravessado pelos raios do sol mais ardente. Surpreendidas pela aparição, as crianças pararam. Estavam então tão próximas que se viram dentro da luz que cercava a Senhora, talvez a um metro e meio de distância, mais ou menos. Aquela mulher, então, iniciou uma amistosa conversa:

— Não tenhais medo! Eu não vos faço mal.

Maria Santíssima desejava, acima de tudo, a confiança dos seus pequenos confidentes. Por isso, assim como fizera o anjo, afugentou todo medo: “O amor lança fora o temor” (1Jo 4,18). Então, humildemente, a Mãe de Deus lhes disse: “Eu não vos faço mal.” Nosso mundo desconfia do amor de Deus e de seus caminhos, por isso, aprendeu a fugir da Cruz. Nossa Senhora quer que os pequenos aprendam a viver para Deus e, assim, saibam também superar os próprios sofrimentos, colocando o Senhor no centro. A entrega em meio ao sofrimento é a atitude oposta à que o mundo tem hoje. Começa aqui uma nova lição na escola de Maria. Também nós precisamos reaprender a confiar no Senhor e nos desígnios que, como Pai, Ele tem para nossa vida. Deus não nos faz mal, mesmo quando não compreendemos seu modo de agir. É a confiança que nos faz prosseguir para além da Cruz.

Lúcia, então, perguntou de onde vinha a visitante. A Senhora respondeu simplesmente: “Sou do Céu.” Certamente essa deveria ser também nossa resposta ao sermos perguntados sobre de onde somos. Diz a Escritura que “nossa vida está escondida com Cristo, em Deus” (Cl 3,3); além disso, nos afirma que somos “cidadãos do Céu” (Fl 3,20). Como Maria Santíssima, como os santos, nossos irmãos, somos do Céu, e para lá devemos manter nossos olhares fixos.

Continuando o diálogo, como fará nas outras vezes, Lúcia perguntou o que desejava a Senhora. A resposta é o convite a um compromisso; dali por diante, Nossa Senhora deseja reencontrar os pastorinhos, ensiná-los, ter com eles um caminho para percorrer:

— Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos, no dia 13, a esta mesma hora. Depois vos direi quem sou e o que quero. Depois voltarei ainda aqui uma sétima vez.

Lúcia perguntou então se ela também iria para o Céu. E a Senhora lhe respondeu que sim.

— Jacinta também?

— Sim — respondeu a Senhora.

— E o Francisco?

— Também, mas terá que rezar muitos terços.

A menina então se lembrou de perguntar por duas moças da aldeia que tinham morrido há pouco tempo, com cerca de dezesseis e vinte anos. Eram suas amigas e estavam sempre em sua casa aprendendo, com a irmã mais velha, o ofício de tecedeiras.

— Maria das Neves já está no Céu?

— Sim, está.

— E a Amélia?

— Estará no Purgatório até ao fim do mundo.

Nossa Senhora, então, continuando a selar com as crianças um compromisso duradouro, sinal do chamado especial que Deus havia destinado a cada uma delas, lhes perguntou:

— Quereis oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser enviar-vos, em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores?

— Sim, queremos! — responderam pronta e generosamente as crianças.

— Ireis, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto.

Ao pronunciar essas palavras, Nossa Senhora abriu as mãos pela primeira vez, comunicando-lhes uma luz tão intensa — como que um reflexo que dela se expandia — que, penetrando-lhes no peito e no mais íntimo da alma, fez as crianças verem a si mesmas em Deus, mais claramente do que se é possível ver nos espelhos. Então, por um impulso íntimo comunicado por Deus, elas caíram de joelhos e repetiram intimamente:

— Ó Santíssima Trindade, eu Vos adoro. Meu Deus, meu Deus, eu Vos amo no Santíssimo Sacramento.

Passados alguns momentos, Nossa Senhora acrescentou:

— Rezem o terço todos os dias, para alcançarem a paz para o mundo e o fim da guerra.

Em seguida, começou a elevar-se serenamente, subindo em direção ao Nascente até desaparecer na imensidão distante. A luz que a circundava ia como que abrindo um caminho no cerrado dos astros, motivo pelo qual algumas vezes as crianças disseram ver o céu se abrir.

Desaparecida a visão, os pastorinhos ficaram absorvidos pela beleza da Senhora, mas não com a prostração que lhes deixavam as visitas do anjo. As meninas comunicaram ao Francisco o que havia dito a mulher, porque ele não a ouvia. Quando Lúcia lhe disse que Nossa Senhora o levaria para o Céu, mas que tinha que rezar muitos terços, o pequeno não titubeou:

— Ó minha Senhora, terços, rezo todos quantos vós quiserdes!

Na volta para casa, Jacinta repetia muitas vezes: “Que Senhora tão bonita!” Percebendo que o entusiasmo da prima faria com que ela terminasse por contar a experiência para alguém, Lúcia recomendou vivamente que tudo fosse mantido em segredo. Contudo, as recomendações não foram suficientes e, no jantar, Jacinta acabou por relatar à família que haviam encontrado uma linda Senhora na Cova da Iria. “Tinha as mãos assim (e imitava a posição das mãos de Nossa Senhora) e tinha um terço tão lindo!” Lúcia, por sua vez, nada contou à família. Tendo sua mãe sido informada pela cunhada de que Jacinta revelara o “segredo” dos primos, Lúcia foi fortemente admoestada pela mãe a deixar de lado as conversas sobre o acontecido.

Nesta mesma data, 13 de maio de 1917, também por volta do meio-dia, em Roma, era ordenado bispo o padre Eugenio Pacelli. No futuro, quando se tornasse o papa Pio XII, seria ele a proclamar o dogma da Assunção de Maria Santíssima ao Céu.

 

A escola de Maria

 

Fátima é “um acontecimento único na história dos homens”, segundo as palavras do papa Bento XVI. De fato, esse lugar se tornou uma escola de santidade, onde a própria Mãe de Deus veio nos convidar a viver de maneira radical e sincera o Evangelho. E quais as primeiras lições de Maria Santíssima no dia 13 de maio?

A conversa entre Nossa Senhora e Lúcia versa, em sua primeira parte, sobre o Céu. Diante da beleza da “Senhora mais brilhante que o sol”, a menina perguntou imediatamente se iria, com seus primos, para o Céu. Além disso, preocupou-se com o destino eterno de duas amigas recém-falecidas, recebendo ao menos uma resposta surpreendente da parte de Nossa Senhora.

Poder-se-ia questionar se tais preocupações seriam adequadas a uma criança de dez anos; estamos acostumados a pensar que a morte e a eternidade não fazem parte do horizonte de preocupações de uma criança. Contudo, talvez não fosse assim no início do século XX. Além disso, parece que a tônica da conversa não se encontra num melancólico desânimo diante da vida, mas sim na esperança de que, um dia, poderemos fazer parte de uma realidade tão gloriosa como aquela que os pastorinhos então contemplavam. A vinda de Nossa Senhora acendeu no coração das crianças, em primeiro lugar, uma viva esperança, sem a qual não é possível acolher os desafios de cada dia com espírito bem-disposto. Além disso, as aparições terminaram sempre com as crianças erguendo a cabeça, admirando Nossa Senhora “subir” em regresso ao Céu, como que alargando os horizontes diante de seus olhos. Essa imagem deveria nos dizer muito num tempo em que tantos vivem com a cabeça abaixada, sem esperança. Como diz o Salmo 26: “Desde agora o Senhor levanta a minha cabeça…” (Sl 26,6).

Na escola de Fátima, Maria Santíssima, vinda do Céu, nos lembra que “nosso destino está seguro nas mãos de Deus”. De repente, aquelas crianças veem e ouvem o mundo futuro tocando e transformando o seu presente, derramando-se sobre elas. Assim como aos pastorinhos, também a nós Deus anuncia boas-novas de esperança: Jesus está vivo, está perto de nós, cada vez que ouvimos sua voz na Escritura, O buscamos na oração ou entramos em comunhão com Ele na Eucaristia. Nesses momentos, podemos ter a certeza, como nos diz o papa Bento XVI, de que existe “Aquele que, mesmo na morte, me acompanha e com seu bastão e seu cajado me conforta, de modo que não devo temer nenhum mal: esta é a nova esperança que surge na vida daqueles que acreditam” (Spe salvi, 6). A mensagem de Fátima, ao contrário do que muitos poderiam pensar, não é uma mensagem de pessimismo sobre o futuro ou de predições assombrosas. Do começo ao fim, é uma mensagem de esperança: “Não tenhais medo!”

A segunda lição de 13 de maio é a do oferecimento de si mesmo. Nossa Senhora pergunta aos pequenos: Quereis oferecer-vos…? Em seus planos de salvação, Deus não conta com empregados ou desconhecidos. O próprio Salvador havia dito a seus discípulos: “Já não vos chamo servos, pois o servo não sabe o que faz o seu senhor… Eu vos chamo amigos, pois vos dei a conhecer os desígnios do meu Pai” (Jo 15,15). Deus conta com amigos, pessoas com as quais possa compartilhar os desígnios e as dores de seu coração de Pai. Além disso, o Senhor não nos pede muitas coisas ou, quem sabe, nosso dinheiro ou uma parte de nosso tempo. Ele nos pede a nós, por inteiro: Quereis oferecer-vos? Jesus havia dito, um dia, que o Bom Pastor é aquele que dá a vida por suas ovelhas. Nós, por experiência, sabemos que as ovelhas só têm vida, só estão seguras e fortes se o Pastor dá a vida por elas: foi isso o que Cristo fez por nós! Ora, desde aquela tarde no Calvário, esse deve ser o caminho de todos aqueles com os quais o Senhor compartilha seu coração de pastor. Assim também deve ser conosco: se Deus tem confiado pessoas a você, se o Senhor colocou alguém em sua vida para ser objeto de seus cuidados e atenção, então saiba que, mais do que cumprir tarefas ou dar coisas, sua missão é dar-se, dar a vida, para que essa alma encontre verdadeiramente o caminho da salvação e da paz. Hoje, por exemplo, muitos pais e mães se esforçam por dar de tudo a seus filhos, mas eles próprios não se dão, sua presença, sua vida. Muitos consagrados e consagradas dão à Igreja e a Deus muitas horas de atividade e agitação, mas não se dão, sua decisão indivisa. Desde o Calvário, as ovelhas só têm vida se o pastor dá a vida por elas. Por isso o Senhor conta com pessoas ofertadas, rendidas nas suas mãos. Tais como aqueles pequenos pastorinhos.

Mais uma lição preciosa: tendo aberto seus braços para comunicar-lhes a luz que vinha de Deus, Nossa Senhora levou as crianças a viver uma experiência maravilhosa, talvez jamais vivida por muitos adiantados em idade ou sabedoria humana. Penetrando-nos a luz no peito, (…) fez-nos ver a nós mesmos em Deus (…) mais claramente que num espelho. Existe um provérbio que diz: “Somos aquilo que somos aos olhos de Deus.” E isto é profundamente verdadeiro. Inundadas pela luz do Céu, as crianças puderam ver a si mesmas. Quando nos deixamos levar pelas aparências ou pelas lentes de nossos julgamentos precipitados, a atenção de nosso olhar volta-se unicamente para as pessoas ao nosso redor; somos muito desatentos em relação a nós mesmos, conhecemo-nos muito pouco, mas temos ótima percepção das limitações e defeitos dos outros. Quando, conduzidos pela luz divina, que é o seu Espírito Santo, olhamos para nós mesmos, nosso coração se enche de arrependimento e reconhecimento da grandeza de Deus, que jamais nos tem abandonado. Ao receberem essa iluminação interior, as crianças caíram prostradas diante da santidade de Deus e diante de sua própria pequenez. Essa maravilhosa graça podemos pedir, também nós, ao Senhor. Que os olhos de nossa alma não estejam de tal maneira distraídos com as fragilidades e limites de nosso próximo que nos tornemos incapazes de receber a luz que nos faz ver a nós mesmos. Ao nos vermos diante de Deus, que possamos reconhecer, com profunda gratidão, que Ele habita no íntimo de nós, ainda quando não lhe rendemos a devida atenção e nos afastamos de sua presença, dispersos por tantos chamados inúteis. Reconhecendo sua grandeza e nossa pequenez, seremos impulsionados, tal como os pastorinhos, à adoração e ao louvor.

Uma última lição deixada por Nossa Senhora em seu primeiro encontro com os pastorinhos: Rezem o terço todos os dias, para alcançarem a paz… A paz é fruto da oração; experimentá-la não é algo impossível, mesmo naquelas situações em que precisamos continuar lutando. A paz que vem de Deus não é turvada pelas circunstâncias, mas se mantém no meio delas e nos permite ter clareza para encontrar a direção do Senhor. Maria Santíssima ainda nos indicou uma forma de oração eficaz para alcançar a paz não só para nosso interior, mas também para as nações do mundo: o terço. A promessa de alcançar a paz pela oração do terço não poderia ser apenas retórica. De fato, em 1917 o mundo ainda convulsionava com os acontecimentos da Prmeira Guerra Mundial, e revoluções sacudiam as nações. O convite de Nossa Senhora foi um chamado celestial para uma atitude bem concreta, um passo de fé num momento de grande dor e escuridão sobre a humanidade. Se vivemos em tempo semelhante, quem sabe o remédio dessa oração não seja também indicado para nós?

Em 2004, o papa São João Paulo II ofereceu à Igreja como que um testamento espiritual, no qual revelou o caminho percorrido por ele mesmo no seguimento do Salvador. Na carta apostólica Rosarium Virgins Mariae (O Rosário da Virgem Maria), o Santo Padre repetiu uma confidência que fizera vinte e cinco anos antes, ao assumir o ministério petrino: “Minha oração predileta é o Rosário. Oração maravilhosa! Maravilhosa na simplicidade e na profundidade. O Rosário me acompanha nos momentos de alegria e provações. A ele confiei tantas preocupações; nele encontrei sempre conforto.” O papa afirmou que, pela oração do Rosário, “o povo cristão frequenta a escola de Maria, para deixar-se introduzir na contemplação da beleza do rosto de Cristo e na experiência da profundidade do seu amor”. Recitar o Rosário é “contemplar com Maria o rosto de Cristo”. Esse é, para João Paulo II, o primeiro passo no itinerário de um cristão que deseja aprender não somente algumas coisas sobre o Senhor, mas sobretudo a ser como Ele. De fato, Cristo é nosso mestre e modelo em todas as coisas; devemos aprender, na contemplação do seu rosto que vai sendo delineado diante de nosso coração pela meditação dos mistérios do Rosário, a conhecer seus sentimentos, seu modo de ser. Por essa estrada de configurar-se como Jesus Cristo é que deve avançar todo cristão que O acolheu como seu Salvador e Mestre. Para São João Paulo II, o Rosário é um poderoso auxílio para aqueles que querem “aprender Cristo” na escola de Maria.

Além disso, o papa nos ensina que o Rosário é, por natureza:

 

Uma oração orientada para a paz, precisamente porque consiste na contemplação de Cristo, Príncipe da paz e Ele mesmo a nossa paz. Igualmente, os frutos de caridade que o Rosário produz nos levam a buscar a paz com nossos semelhantes. Olhar para Cristo em Belém ou no Calvário deveria nos fazer mais sensíveis a todos aqueles que, ao nosso redor, precisam de nossa compaixão e compreensão.

 

De modo especialíssimo, João Paulo II insiste no Rosário como a “oração da família e pela família”. “Família que reza unida permanece unida”; esse infalível provérbio cristão, repetido pelo papa em sua carta, deve ser, ainda nesse nosso tempo tão cheio de distrações que nos afastam uns dos outros, um convite a experimentar o poder de comunhão e perdão que brota da oração feita em comum.

“Ó Rosário bendito de Maria, doce cadeia que nos prende a Deus!” Assim o bem-aventurado Bartolo Longo, fundador do santuário de Nossa Senhora do Rosário de Pompeia, referia-se a esse simples e poderoso instrumento colocado por Deus nas mãos de seus filhos, desde os mais simples aos mais doutos. Rezem o terço (…) para alcançar a paz: assim Nossa Senhora nos convida a encontrar na oração a fonte para a serenidade que tanto precisamos dentro de nós e ao nosso redor.

Em Hiroshima, nos anos 1940, vivia um grupo de oito padres jesuítas. Sua residência ficava a menos de um quilômetro de distância do lugar onde cairia a primeira bomba atômica, no dia 6 de agosto de 1945, espalhando morte e devastação ao redor. A explosão matou instantaneamente oitenta mil pessoas, chegando depois a um total aproximado de cento e quarenta mil mortes. Mais de dois terços dos edifícios da cidade ficaram completamente destruídos.

Contudo, a construção onde viviam os oito padres sofreu apenas alguns danos leves. Eles saíram praticamente ilesos dos efeitos da bomba, e nenhum sofreu efeitos da radiação ou lesões graves como consequência. É verdade que um pequeno número de pessoas que se encontrava na área da explosão sobreviveu. Contudo, todos faleceram logo depois de doenças decorrentes da radiação. Em 1976, os oito padres jesuítas ainda viviam. Em uma entrevista, um deles, padre Hubert Schiffer, deu, em nome de todos, a seguinte resposta aos que se perguntavam pelo porquê: “Nós sobrevivemos porque estávamos vivendo a mensagem de Fátima: rezávamos o Rosário diariamente naquela casa.”

A melhor parte desse incrível testemunho é que o mesmo poder extraordinário que estava nas mãos daqueles oito sacerdotes está ainda à nossa disposição.

 

Junho: “Meu coração será teu refúgio”

 

Chegou o mês de junho, e já algumas pessoas, tendo ouvido as notícias sobre a aparição de maio, se juntaram às crianças para ir à Cova da Iria. A mãe de Lúcia, muito contrariada com o que considerava histórias de crianças, fez de tudo para dissuadir a filha de estar junto com os primos, mas não conseguiu. Por volta do meio-dia, como no mês anterior, a aparição fez-se anunciar por um relâmpago. E, também como da outra vez, foi Lúcia quem deu início à conversa:

— O que vosmecê me quer?

— Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem, que rezeis o terço todos os dias e que aprendais a ler. Depois direi o que quero.

Lúcia se recorda de ter pedido a cura de um doente, recebendo de Nossa Senhora a promessa de que, caso se convertesse, curar-se-ia durante o ano.

Mais uma vez, a conversa gira em torno do Céu. Lúcia pede que Nossa Senhora os leve para lá; Nossa Senhora afirma que levará, em breve, Jacinta e Francisco. Mas, quanto a Lúcia, deverá permanecer aqui por um tempo. Ela deve realizar uma missão muito especial nos projetos de Deus:

— Jesus quer servir-se de ti para me fazer conhecer e amar. Ele quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado Coração — disse a Santíssima Virgem. — A quem aceitar essa devoção, prometo-lhe a salvação; e essas almas serão amadas de Deus, como flores colocadas por mim para enfeitar o seu trono.

Ao perceber que seu caminho se afastaria daquele reservado por Deus a seus primos, Lúcia se entristeceu e, assustada, perguntou:

— Fico cá sozinha?

A promessa de Nossa Senhora, relembrada pela pastorinha tantas e tantas vezes ao longo da vida, especialmente nos momentos de contrariedade e solidão, foi um clarão em meio a muitas incertezas:

— Não, filha! E tu, sofres muito? Não desanimes! Eu nunca te deixarei. O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus.

No momento em que disse essas últimas palavras, Nossa Senhora abriu as mãos e comunicou às crianças, pela segunda vez, o reflexo de uma luz imensa. Nela, os pequenos se viam como que submergidos em Deus. Segundo a lembrança de Lúcia, Francisco e Jacinta pareciam estar na parte da luz que se elevava para o Céu, enquanto ela própria era mergulhada naquela luminosidade que se espargia sobre a Terra. À frente da palma da mão direita de Nossa Senhora, estava um coração cercado de espinhos, que pareciam estar nele cravados. As crianças compreenderam imediatamente que se tratava do Imaculado Coração de Maria, ultrajado pelos pecados da humanidade, e que desejava reparação.

Terminada a aparição, Lúcia foi chamada pelo pároco de Fátima para uma conversa. Foi a primeira aproximação de uma autoridade eclesiástica desejosa de averiguar os fatos. Ouvindo o relato da menina, o padre sugeriu que tudo poderia ser engano do diabo, o que, somado às desconfianças da família, fez com que Lúcia decidisse não comparecer ao encontro de julho.

 

A devoção ao Imaculado Coração de Maria

 

Assim como o convite à reparação, o estabelecimento da devoção ao Imaculado Coração de Maria é central na mensagem de Fátima. Nossa Senhora afirma que é desejo de Deus que o seu Coração se torne escola e caminho de salvação para tantos filhos e filhas cujo coração é desfigurado pelo pecado em nossos tempos. A promessa feita a Lúcia se estende, de alguma maneira, a todos os que abraçam a mensagem de Fátima: Meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus.

Claramente, quando falamos do Coração de Maria, não estamos nos referindo em primeiro lugar ao órgão físico. Este, escondido e ao mesmo tempo manifesto em todos os sinais vitais do corpo, é apenas um símbolo de algo maior. Segundo o Catecismo da Igreja Católica, o coração “é a casa em que estou, onde moro (segundo a expressão semítica ou bíblica: aonde eu ‘desço’). Ele é o nosso centro escondido, inatingível pela razão e por outra pessoa; só o Espírito de Deus pode sondá-lo e conhecê-lo. Ele é o lugar da decisão, no mais profundo de nossas tendências psíquicas. É o lugar da verdade, onde escolhemos a vida ou a morte. É o lugar do encontro, pois, à imagem de Deus, vivemos em relação; é o lugar da Aliança” (CIC, 2563).

Revelar o coração e seus segredos, portanto, significa compartilhar suas escolhas, abrir as portas desse santuário onde selamos aliança com Deus. Ao abrir os braços aos pastorinhos e mostrar-lhes seu Imaculado Coração, Nossa Senhora estava convidando não somente eles, mas todo o mundo a conhecer as riquezas que habitam no seu íntimo, onde somente Deus reinou sempre.

A Escritura nos desvenda, em poucas passagens, um pouco da maneira como bate o Coração de Maria, que São Gregório Taumaturgo chamou de “vaso onde Deus derramou todos os mistérios”. Em Lucas 2,19, lemos que “Maria conservava todas essas palavras, meditando-as no seu coração”. Também em Lucas 2,51, diz a Escritura que “sua mãe guardava todas essas coisas no seu coração”. Tanto uma passagem quanto a outra se referem a acontecimentos da infância de Jesus que, certamente, ficaram guardados na memória de sua mãe. Talvez, na própria ocasião em que aconteceram, esses fatos não tenham sido plenamente compreendidos pela Virgem. Contudo, ela nada perdia do que Deus estava lhe concedendo. Além de um coração “à escuta”, que se inclinava para ouvir a voz de Deus, Maria possuía um coração capaz de reter e meditar sobre o que o Senhor estava fazendo em sua vida. Infelizmente, muitas vezes escolhemos reter dentro de nós aquilo que deveria ser deixado para trás. Esquecemos tão facilmente do bem que Deus nos faz e guardamos, tão ciosos, as palavras e os gestos de outras pessoas que, porventura, tenham nos desagradado ou ofendido. Nosso coração, alimentando-se de ressentimento, torna-se doente. Contudo, podemos aprender com Nossa Senhora a alimentar nosso coração com aquilo que realmente vale a pena. Um dia, o profeta Jeremias havia dito: “Quero trazer à memória aquilo que me dá esperança” (Lm 3,21).

Maria e todos aqueles que têm o coração cheio de gratidão sabem que, ao olharmos para trás, vamos encontrar muitos motivos para louvar a Deus por sua presença ao nosso lado. A lembrança das lutas que enfrentamos e superamos com a ajuda do Senhor nos faz recobrar o ânimo para novas batalhas. Vale a pena lembrar daquilo que nos ajuda a ir adiante, daquilo que nos faz esperar o sustento que vem de Deus.

Além disso, as passagens do Evangelho de Lucas que acabamos de ler nos ensinam a julgar com maior ponderação os fatos de nossa vida. Diante de coisas que pareciam ultrapassar seu entendimento, Nossa Senhora tudo guardava; aos poucos, sua compreensão crescia, e então as coisas começavam a fazer sentido. Infelizmente, vivemos em dias de grande agitação e acabamos nos tornando pessoas precipitadas. Somos apressados em emitir nossas opiniões; abandonamos muito rapidamente um caminho quando nele encontramos uma cruz; não refletimos ou meditamos sobre o que nos acontece, de modo que vivemos mil experiências e não aprendemos a agir de um modo melhor. Não damos tempo para que as sementes da obra de Deus amadureçam e comecem a dar frutos. O coração de Maria, tão capaz de recolhimento e ponderação, nos ensina um novo jeito de ser; com ela descobrimos a importância de “ruminar” as coisas que vivemos para, com um julgamento mais profundo, reconhecer a mão de Deus que vai guiando nossas vidas em meio a todas as circunstâncias.

Outra passagem do evangelho de Lucas manifesta a característica mais intensa do coração de Maria. Quarenta dias após o nascimento de Jesus, indo ao templo com José para apresentar o Menino e cumprir os preceitos da Lei, Maria ouviu a profecia do velho Simeão, cuja grande esperança mantinha de pé: “Eis que este menino está destinado a ser uma causa de queda e de soerguimento para muitos homens em Israel, e a ser um sinal que provocará contradições, a fim de serem revelados os pensamentos de muitos corações. Quanto a ti, uma espada de dor te transpassará a alma” (Lc 2, 34-35).

O coração de Maria é aquele que mais intimamente está unido ao coração de Jesus. Mais do que por laços de carne, o próprio Salvador nos indica o que tanto os uniu e continua a unir: “Todo aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos Céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12,50), e ainda: “Minha mãe e meus irmãos são estes, que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 8,21). O coração de Jesus era faminto e se alimentava de fazer a vontade do Pai; e assim era também, mais do que qualquer outro, o coração de Maria. De tal maneira que, segundo alguns autores, a “espada” que segundo Simeão atravessaria sua alma é, antes que qualquer espécie de sofrimento, a própria Palavra de Deus, “mais penetrante que uma espada de dois gumes e que atinge até a divisão da alma e do corpo, das juntas e medulas, e discerne os pensamentos e intenções do coração” (Hb 4,12). A Palavra, expressão do querer do Senhor, fez de Maria uma virgem fecunda: “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra”; essa mesma Palavra se encarnou em seu ventre: “E o Verbo de Deus se fez carne e habitou entre nós.” A Palavra de Deus, portanto, cresceu no coração e no seio de Maria, de tal modo que toda a sua vida transcorreu em íntima união com o querer de Deus. Segundo o papa Bento XVI, “o Espírito Santo, que fez presente o Filho de Deus na carne de Maria, dilatou seu coração às dimensões do de Deus e a impulsionou pelo caminho da caridade”. Que maravilhosa obra divina no coração da Virgem Mãe: desde a Anunciação, seu coração foi sendo mais e mais dilatado; seu sim, dito em Nazaré, foi se alargando sempre mais para corresponder ao chamado e à vontade perfeita de Deus. E de tal maneira a Virgem se deixou moldar pela divina vontade que, aos pés da cruz, no sim derradeiro de Jesus, ela própria viu o seu sim alargado ao extremo, para que nele coubéssemos todos nós. Por isso, diz São João Paulo II, “o coração de Maria palpita na direção de todos aqueles que Cristo abraçou e abraça continuamente com seu inexaurível amor”.

O Imaculado Coração é, portanto, o coração novo, prometido por Deus para aqueles que vivem em Jesus uma “nova e eterna aliança”: “Eu vos darei um coração novo e em vós porei um espírito novo; tirarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Dentro de vós colocarei meu espírito, fazendo com que obedeçais às minhas leis e sigais e observeis os meus preceitos” (Ez 36,26s). É esse coração que os pastorinhos veem na mão de Maria, como que se dando de presente a nós, que tantas vezes sentimos um vazio dentro do peito. Inscrever--se entre aqueles que desejam ser ensinados pela via do Imaculado Coração significa permitir que o Espírito Santo alargue também as nossas medidas, muitas vezes usando como instrumento a rude cruz de cada dia. Significa disciplinar-se na arte da ponderação e da meditação, a fim de perscrutar os desígnios de Deus que se escondem onde nossa agitação e nossa pressa não são capazes de reconhecê--los; significa unir-se a Cristo por aquele laço mais estreito e mais perfeito que pode existir: a fome de realizar a vontade do Pai, que se manifesta a nós quando inclinamos nosso coração em obediência à sua Palavra. Essa foi a promessa de Nossa Senhora a Lúcia e pode ser também sua promessa para si mesmo: O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus.

 

Julho: o segredo

 

Por causa da dúvida lançada pelo pároco em seu coração e da dureza com que a família vinha lhe tratando nos últimos tempos, Lúcia havia decidido não comparecer à aparição do mês de julho. O pequeno Francisco, penalizado com a decisão da prima, disse-lhe:

— Deus já está tão triste com tantos pecados, e agora, se tu não vais, vai ficar ainda mais triste. Estou pensando em Deus que está tão triste por causa de tantos pecados. Se eu fosse capaz de proporcionar-lhe alegria…!

Contudo, à medida que se aproximava o momento do encontro, Lúcia experimentou um irresistível impulso interior que a fez buscar os primos e correr em direção à Cova da Iria.

Ao chegarem, as crianças começaram a rezar o terço com as pessoas que já se encontravam presentes, à sua espera. De repente, como das outras vezes, viram o reflexo de uma luz, parecida com um relâmpago, e Nossa Senhora sobre uma azinheira. A conversa teve início como de costume, com Lúcia perguntando o que a Senhora queria. A resposta, também dessa vez, apelou para a perseverança das crianças:

— Quero que venham aqui no dia 13 do mês que vem, que continuem a rezar o terço todos os dias, em honra de Nossa Senhora do Rosário, para obter a paz no mundo e o fim da guerra, porque só Ela lhes poderá valer.

Lúcia pediu então que a Senhora dissesse quem era e que fizesse um milagre para que todos acreditassem na aparição. Após insistir em que deveriam continuar indo à Cova da Iria todos os meses, Nossa Senhora prometeu que, em outubro, revelaria quem era e faria um milagre para que todos acreditassem.

Após Lúcia fazer mais uns pedidos pela cura de alguns enfermos e Nossa Senhora lhe responder que deveriam continuar rezando o terço para que fossem curados ao longo do ano, a Mãe de Deus lhes disse:

— Sacrificai-vos pelos pecadores e dizei muitas vezes, em especial sempre que fizerdes algum sacrifício: “Ó Jesus, é por Vosso amor, pela conversão dos pecadores e em reparação pelos pecados cometidos contra o Imaculado Coração de Maria”. — Estando alguns padres presentes nessa aparição, e explicando posteriormente às crianças quem era o “Santo Padre” e a necessidade de rezar por suas intenções, as crianças somaram nessa oração, por iniciativa de Jacinta, o oferecimento “e pelo Santo Padre”.

Ao dizer essas últimas palavras, Nossa Senhora abriu as mãos, como nos dois meses passados. Contudo, dessa vez, algo diferente aconteceu. As crianças receberam da parte de Deus a revelação daquilo que comumente se chamou de “o segredo”. Este consta de três partes, a última das quais foi revelada pelo papa São João Paulo II no ano 2000. Nada melhor do que darmos voz à própria Lúcia, que nos deixou por escrito em suas memórias aquilo de que foi testemunha.

 

Primeira parte do segredo: a visão do Inferno

 

O reflexo pareceu penetrar a terra e vimos como que um mar de fogo. Mergulhados nesse fogo, os demônios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras ou bronzeadas, com forma humana, que flutuavam no incêndio, levadas pelas chamas que delas mesmas saíam juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair das fagulhas nos grandes incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero que horrorizavam e faziam estremecer de pavor (deveu ser ao deparar-me com esta vista que dei esse ai! que dizem ter-me ouvido). Os demônios distinguiam-se por formas horríveis e asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes como negros carvões em brasa. Assustados e como que a pedir socorro, levantamos a vista para Nossa Senhora que nos disse, com bondade e tristeza:

— Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores; para as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção a Meu Imaculado Coração. Se fizerem o que Eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar. Mas, se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior. Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida,[1] sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre.

 

Segunda parte do segredo: a devoção ao Imaculado Coração de Maria

 

— Para a impedir, virei pedir a consagração da Rússia a meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas. Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz. Em Portugal se conservará sempre o dogma da Fé.

 

Terceira parte do segredo: convite à penitência

 

Vimos do lado esquerdo de Nossa Senhora, um pouco mais alto, um anjo com uma espada de fogo na mão esquerda; ao cintilar, despedia chamas que parecia iam incendiar o mundo; mas apagavam-se ao contato do brilho que da mão direita Nossa Senhora expedia ao seu encontro. O anjo, apontando com a mão direita para a Terra, com voz forte disse: “Penitência, penitência, penitência!” E vimos numa luz imensa que é Deus: algo semelhante a como se veem as pessoas num espelho quando lhe passam por diante, um bispo vestido de branco, e tivemos o pressentimento de que era o Santo Padre. Vários outros bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas a subir uma escabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande Cruz de troncos toscos como se fora de sobreiro com a casca; o Santo Padre, antes de chegar aí, atravessou uma cidade meia em ruínas, e meio trêmulo com andar vacilante, acabrunhado de dor e de pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de joelhos aos pés da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo uns trás outros os bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas e várias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras de várias classes e posições. Sob os dois braços da Cruz estavam dois anjos, cada um com um regador de cristal na mão, neles recolhiam o sangue dos mártires e com ele regavam as almas que se aproximavam de Deus.

 

Nossa Senhora então recomendou que a visão que constituía a terceira parte do segredo não fosse revelada a ninguém. Tudo o que as meninas tinham ouvido poderiam contar ao Francisco. E então continuou:

Quando rezais o terço, dizei, depois de cada mistério: Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do Inferno; levai as almas todas para o Céu, principalmente aquelas que mais precisarem.

Após despedirem-se, Nossa Senhora começou a elevar--se em direção ao Nascente até desaparecer na imensa distância do firmamento.

 

As lições de julho

 

Na aparição de julho, Nossa Senhora ensinou às crianças algo bastante prático a respeito da reparação e do sofrimento. A própria Lúcia diz que, a partir daquele dia, muitas vezes ao longo de sua vida as palavras ensinadas por Maria Santíssima foram seu único recurso diante da dor: Ó Jesus, é por Vosso amor, pela conversão dos pecadores e em reparação pelos pecados cometidos contra o Imaculado Coração de Maria!

Nossa Senhora pediu que os pastorinhos repetissem essas palavras, especialmente quando tivessem de fazer algum sacrifício. Já vimos que a própria Lúcia, inspirada pelo Senhor, reconheceu que a grande fonte de sacrifícios na qual sempre devemos nos mergulhar é a fidelidade ao chamado que Deus nos faz nas árduas tarefas do dia a dia. Repetir as palavras ensinadas por Maria não faz com que, num passe de mágica, o sofrimento e a contrariedade deixem de nos ferir. Mas tais palavras consagram nosso sofrimento e as agruras da vida, agora abraçadas com generosidade e confiança por amor ao Senhor. Uma cruz acolhida com espírito de fé e ofertada em imolação no altar do coração também fere, mas jamais rouba a paz. Esse é o segredo que descobre uma pessoa que tudo faz com espírito rendido a Deus e tudo transforma em oportunidade de reparação: “A paz de Deus, que supera todo entendimento, guarda sua mente e seu coração” (Fl 4,7). Para aquele que está disposto a unir seu coração à vontade divina, ou seja, para aquele que caminha com os olhos atentos no céu e na sua santificação, nada se perde, tudo se torna matéria-prima, especialmente a cruz de cada dia.

A aparição de julho também ficou marcada pela revelação do que se convencionou chamar de “O Segredo de Fátima”. As duas primeiras partes do segredo foram colocadas por escrito pela irmã Lúcia, em obediência ao então bispo de Leiria, no ano de 1941, e já eram há muito conhecidas. Referem-se à visão do Inferno e ao estabelecimento da devoção ao Imaculado Coração de Maria. A terceira parte, firmada por escrito em 1944, foi revelada por desejo do papa São João Paulo II em 26 de junho de 2000. No dia 13 desse ano, por ocasião da beatificação de Jacinta e Francisco, o cardeal Angelo Sodano apresentou aos fiéis, no Santuário de Fátima, a decisão do Santo Padre de revelar o segredo juntamente com uma nota interpretativa, feita pelo então cardeal Joseph Ratzinger (futuro Bento XVI). Desde então, não há mais motivo para conjecturas ou alarmismos em torno do tema.

É verdade que a terceira parte do segredo esteve envolta em mistério e foi objeto de muitas especulações ao longo de quase oitenta anos. Irmã Lúcia sempre afirmava que, se todos dessem ouvidos aos pedidos de Nossa Senhora expressos nas mensagens que já haviam sido reveladas, não haveria muito o que acrescentar com o conhecimento da última parte do segredo. Vale a pena, somente, recordar o itinerário feito pela carta na qual Lúcia, em 1944, transcreveu aquilo que tinha sido visto em 13 de julho de 1917. O texto do segredo foi escrito em obediência ao bispo de Leiria, receoso de que uma enfermidade que tinha se abatido sobre a vidente pudesse levá-la à morte sem que o conteúdo da mensagem permanecesse íntegro. Lúcia teve escrúpulos em cumprir essa tarefa, apesar de sua costumeira confiança na virtude da obediência; afinal, havia sido dada uma ordem do Céu para que o segredo não fosse revelado a ninguém.

Contudo, na tarde do dia 3 de janeiro de 1944, enquanto apresentava ao Senhor sua preocupação acerca desses pontos na capela do convento de Tuy, Lúcia sentiu “uma mão amiga, carinhosa e maternal” tocar o seu ombro. Levantando o olhar, viu a Mãe de Deus, que lhe disse:

— Não tenhas medo. Quis Deus provar a tua obediência, fé e humildade; está em paz e escreve o que te mandam, não porém o que te é dado a entender do seu significado. Depois de escrito, encerra-o em um envelope, fecha-o e lacra-o e escreve por fora que só pode ser aberto em 1960, pelo senhor patriarca de Lisboa ou pelo bispo de Leiria.

Então, Lúcia diz que sentiu seu espírito inundado por um mistério de luz que é Deus e nele viu e ouviu “a ponta de uma lança como chama que se desprende, toca o eixo da Terra. — Ela estremece: montanhas, cidades, vilas e aldeias com os seus moradores são sepultados. O mar, os rios e as nuvens saem de seus limites, transbordam, inundam e arrastam consigo, num redemoinho, moradias e gente em número que não se pode contar; é a purificação do mundo pelo pecado em que se mergulha. O ódio e a ambição provocam a guerra destruidora! Depois senti no palpitar acelerado do coração e no meu espírito o eco duma voz suave que dizia: ‘No tempo, uma só fé, um só batismo, uma só Igreja, una, santa, católica, apostólica. Na eternidade, o Céu!’ Esta palavra — Céu — encheu a minha alma de paz e felicidade, de tal forma que, quase sem me dar conta, fiquei repetindo por muito tempo: o Céu! O Céu!” Passada apenas a maior força desse evento sobrenatural, Lúcia foi escrever o segredo, de joelhos, sem maior dificuldade.

Até o ano de 1957, o envelope com o texto ficou sob a tutela do bispo de Leiria. Nesse ano, para maior segurança, ele foi entregue ao arquivo secreto do Santo Ofício (atual Congregação para a Doutrina da Fé). Em 17 de agosto de 1959, São João XXIII pediu para ver o documento e o devolveu ao arquivo. O mesmo fez o beato Paulo VI no dia 27 de março de 1965.

Em 13 de maio de 1981, o papa São João Paulo II sofreu um atentado na praça de São Pedro, sendo alvejado por uma bala e ficando, por um tempo, entre a vida e a morte. Enquanto ainda convalescia no hospital, pediu para ver o envelope com o segredo, o que de fato só aconteceu em 18 de julho de 1981. O papa decidiu não publicar o que havia sido lido, mas compreendeu imediatamente a relação entre a mensagem do segredo e os acontecimentos que o tocaram pessoalmente naqueles dias. De tal modo isso é verdade que, visitando o Santuário de Fátima em 13 de maio de 1982, a fim de agradecer a Nossa Senhora pelo seu restabelecimento, o Santo Padre ofereceu ao bispo de Leiria-Fátima a bala que o atingira e que havia sido recolhida no papamóvel. O projétil, posteriormente, foi encravado na coroa da imagem de Nossa Senhora que se encontra na Capelinha das Aparições. Além disso, o papa deixou, aos pés da imagem da Virgem, o seu anel episcopal, que havia recebido de presente do antigo primaz da Polônia, o cardeal Stefan Wyszynski, grande confessor da fé durante o regime comunista. Em sua homilia, o papa atestou:

 

Venho hoje, aqui, porque exatamente nesse mesmo dia do mês, no ano passado, dava-se, na Praça de São Pedro, em Roma, o atentado à vida do Papa, que misteriosamente coincidia com o aniversário da primeira aparição em Fátima, a qual se verificou em 13 de maio de 1917. Estas datas encontraram-se entre si de tal maneira, que me pareceu reconhecer nisso um chamamento especial para vir aqui. E eis que hoje aqui estou. Vim para agradecer à Divina Providência, neste lugar que a Mãe de Deus parece ter escolhido de modo tão particular.

 

Como entender o segredo?

 

Quando a terceira parte do segredo foi revelada, o então cardeal Joseph Ratzinger ofereceu à Igreja um texto no qual apresentava uma justa maneira de interpretar a visão dos pastorinhos. O essencial dessa interpretação foi apresentado à irmã Lúcia, que afirmou estar concorde com as impressões ali registradas.

Antes de se deter sobre a parte revelada, o então cardeal teceu um pequeno comentário à visão do Inferno e ao estabelecimento da devoção ao Imaculado Coração de Maria. Ele recordou que o motivo pelo qual Nossa Senhora fez as crianças passarem por uma experiência tão intensa foi “a salvação das almas”. O desejo de Deus era oferecer a um mundo onde tantos se perdem um caminho de salvação. Esse caminho, por sua vez, é a devoção ao Imaculado Coração de Maria. Segundo o cardeal:

 

O termo “coração”, na linguagem da Bíblia, significa o centro da existência humana, uma confluência da razão, vontade, temperamento e sensibilidade, onde a pessoa encontra a sua unidade e orientação interior. O “Coração Imaculado” é, segundo o Evangelho de Mateus (Mt 5,8), um coração que a partir de Deus chegou a uma perfeita unidade interior e, consequentemente, “vê a Deus”. Portanto, devoção ao Imaculado Coração de Maria é aproximar-se desta atitude do coração, na qual o fiat — “seja feita a vossa vontade” — se torna o centro conformador de toda a existência. Se porventura alguém objetasse que não se deve interpor um ser humano entre nós e Cristo, lembre-se de que Paulo não tem medo de dizer às suas comunidades: “Imitai-me” (cf. 1Cor 4,16; Fl 3,17; 1Ts 1,6; 2Ts 3,7.9). No Apóstolo, elas podem verificar concretamente o que significa seguir Cristo. Mas, com quem podemos nós aprender sempre melhor do que com a Mãe do Senhor?

 

O comentário então se volta para a terceira parte do segredo. Se, nas duas primeiras, a expressão-chave era “salvar as almas”, agora a palavra-chave é o tríplice grito do anjo: Penitência, penitência, penitência! Se voltarmos nossos olhos para a Sagrada Escritura, veremos que é esse mesmo grito que sai dos lábios de Jesus após trinta anos de preparação para sua vida pública: “Depois que João foi preso, Jesus dirigiu-se para a Galileia. Pregava o Evangelho de Deus, e dizia: ‘Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo; fazei penitência e crede no Evangelho.’” (Mc 1,14s). Segundo o Catecismo da Igreja Católica, qualquer atitude exterior de penitência só tem significado quando é a expressão da conversão do coração, ou seja, de uma penitência interior. Esta, por sua vez, significa “uma reorientação radical de toda a vida, um retorno, uma conversão para Deus de todo o nosso coração, uma ruptura com o pecado, uma aversão ao mal e repugnância às más obras que cometemos. Ao mesmo tempo, é o desejo e a resolução de mudar de vida com a esperança da misericórdia divina e a confiança na ajuda da sua graça. Esta conversão do coração vem acompanhada de uma dor e uma tristeza salutares, chamadas pelos Padres de aflição do espírito, arrependimento do coração” (CIC, 1431).

Num mundo que tem se afastado cada vez mais de Deus, o convite da mensagem de Fátima é como que a sinalização de um caminho de retorno. A solução de Deus para nossa vida não se reduz a um simples remendo, mas é uma mudança profunda que se dá ao rumo do coração. Se temos procurado a nós mesmos em cada coisa que fazemos, em nossas escolhas, agora é tempo de procurar a Deus, buscarmos o seu reinado sobre nossa vida. Só então depomos as vestes esfarrapadas com as quais tentamos nos cobrir (nossas justificativas, nossa autopiedade, nossa vontade própria) e nos revestimos de Cristo, que nos ensina a viver uma vida nova segundo o coração do Pai. Essa é a penitência à qual somos chamados.

A terceira parte do segredo apela para a possibilidade de um juízo divino sobre o mundo. Recordando a visão do anjo com a espada de fogo à esquerda de Nossa Senhora, o cardeal Ratzinger lembra que “a possibilidade de que o mundo acabe reduzido a cinzas num mar de chamas hoje já não aparece de forma alguma como pura fantasia: o próprio homem preparou, com suas invenções, a espada de fogo”. Contudo, ao contrário do que muitos poderiam pensar, a mensagem de Fátima não encerra um vaticínio sobre o futuro dos homens, senão aponta para os diversos caminhos os quais podemos seguir; diversas vezes aparece no texto a partícula condicional “se”. Assim como um dia o Senhor falou ao seu povo de Israel, agora Ele se dirige a todos os povos e nações da Terra: “Ponho diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida para que vivas com tua descendência, amando o Senhor, teu Deus, obedecendo à sua voz e permanecendo unido a Ele” (Dt 30,19-20). O propósito divino ao pintar tal quadro diante dos pastorinhos, e agora também diante de nós, é incitar o coração do homem a uma escolha, a um posicionamento, diante dos rumos que a história vai tomando.

O caminho da história é descrito na visão dos pastores por meio de três figuras: a montanha íngreme; uma grande cidade meio em ruínas e, finalmente, uma grande cruz de troncos toscos. As três imagens falam do drama da história humana, que é, ao mesmo tempo, uma subida, o palco de uma convivência tantas vezes destrutiva e uma promessa de salvação, quando Deus transforma a destruição em recomeço. Em meio a essas figuras, surge a Igreja, representada pelo “bispo vestido de branco” que vai à frente de sacerdotes, religiosos e fiéis de todas as condições. Todos passam por perigos, e muitos sucumbem em meio às ruínas. O caminho da Igreja é, assim, descrito como uma Via-sacra de perseguições e martírio. Tal é o retrato de todo o século XX e das tantas perseguições sofridas pela Igreja em regimes totalitários. Já em 1982, a irmã Lúcia havia dito que “a terceira parte do segredo refere-se às palavras de Nossa Senhora: Se não, a Rússia espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas. Portanto, a visão que constitui a terceira parte do segredo refere-se, mais imediatamente, aos episódios desencadeados pela Revolução Comunista na Rússia e suas consequências para a Igreja. Não é de espantar que, tendo pedido o texto do segredo logo após o atentado de 1981, o papa São João Paulo II tenha lá identificado a si mesmo. De fato, em 27 de dezembro de 1983, ele se encontrou com o autor do atentado, Ali Agca, na prisão de Rebibbia, em Roma. O terrorista confidenciou ao papa que havia disparado para matar e que era um excelente atirador. Por fim, perguntou ao Santo Padre: “Quem é Fátima para você?” Mais de uma vez, a partir de então, João Paulo II afirmou que, “se uma mão disparou o tiro que poderia ter sido fatal, uma outra mão materna guiou a trajetória da bala”.

A última parte do segredo termina com uma imagem de esperança. O sangue daqueles que foram martirizados é recolhido pelos anjos e rega as almas. Isso significa que o sacrifício de tantos está agora unido à entrega da vida do próprio Jesus e torna-se fonte de vida e de bênção para muitos. Nenhum sofrimento é vão; essa Igreja sofredora, mártir, é sinal de Deus para os homens. Do sofrimento dessas testemunhas deriva uma força de purificação e de renovação, porque é a atualização do próprio sofrimento de Cristo e transmite ao tempo presente a sua eficácia salvífica. Nas palavras de Tertuliano, escritor cristão do século II: “O sangue dos mártires é semente de novos cristãos.”

Ao final de seu comentário, o cardeal Ratzinger recorda uma frase do segredo que, por justo motivo, tornou-se famosa. Trata-se da promessa de Nossa Senhora: Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará. Ela significa que:

 

Este Coração aberto a Deus, purificado pela contemplação de Deus, é mais forte que as pistolas ou outras armas de qualquer espécie. O “sim” de Maria, a palavra do seu Coração, mudou a história do mundo, porque introduziu neste mundo o Salvador. Graças àquele “sim”, Deus pôde fazer-se homem no nosso meio e deste modo permanece para sempre. Que o maligno tem poder neste mundo, vemo-lo e experimentamo-lo continuamente; tem poder porque a nossa liberdade se deixa continuamente desviar de Deus. Mas, desde que Deus passou a ter um coração humano e desse modo orientou a liberdade do homem para o bem, para Deus, a liberdade para o mal deixou de ter a última palavra. O que vale desde então está expresso nesta frase: “No mundo tereis aflições, mas tende confiança! Eu venci o mundo” (Jo 16,33). A mensagem de Fátima convida a confiar nessa promessa.

 

Agosto: mais provações

 

O mês de agosto foi especialmente conturbado para os pastorinhos. No dia 10, Lúcia foi interrogada pelo administrador da região de Vila Nova de Ourém. Nesse tempo, o governo português era especialmente anticlerical e achava que as aparições poderiam ser um embuste para reafirmar a autoridade da Igreja. Tendo chegado o dia 13, o mesmo administrador dirigiu-se à casa da família Marto, manifestando o desejo de falar com as três crianças. Os pais pediram então que o interrogatório fosse feito na residência do pároco de Fátima. Como não conseguiu arrancar das crianças o conteúdo do segredo, o administrador ofereceu--se para levá-las de carro à Cova da Iria, visto que já se aproximava a hora da aparição. Depois de alguma resistência dos familiares, as crianças entraram no carro que, contudo, não tomou a direção prometida, mas sim a de Vila Nova de Ourém.

Chegando à sede do conselho, o administrador ameaçou as crianças de serem jogadas no azeite fervente caso não contassem o conteúdo do segredo. Os pequenos se mostraram especialmente corajosos ao serem separados uns dos outros e pensarem que, realmente, estavam sendo levados à caldeira. Contudo, não tendo sido demovidos do silêncio, foram levados a passar a noite na casa do administrador e ficaram sob os cuidados de sua esposa.

No dia 14, as crianças foram levadas para a cadeia onde estavam os presos adultos. Sensibilizados especialmente pela pequena Jacinta, rezaram o terço com as crianças e, tendo um deles uma harmônica, cantaram e dançaram para distraí-las. Mais uma noite na casa do administrador e os pequenos foram deixados à porta da igreja de Fátima no dia 15.

No dia 13 de agosto, à hora da aparição, calcula-se que entre 15 e 18 mil pessoas aguardavam na Cova da Iria. Muitos vinham das aldeias vizinhas, andando quilômetros com seus doentes para apresentá-los à Mãe de Deus. Não é preciso dizer que a ausência das crianças causou surpresa e decepção entre os presentes. Contudo, à hora prevista para a aparição, as pessoas foram agraciadas com os sinais da presença de Nossa Senhora: o relâmpago que anunciava sua chegada, a brisa sobre a azinheira, já marcada por um arco de madeira e flores. Mesmo sem as crianças, Nossa Senhora não quis decepcionar aqueles que haviam se prontificado a comparecer ao encontro daquele mês. Ainda que, por motivos alheios à sua vontade, os pastorinhos não tenham podido estar ali, a Mãe de Jesus tinha assumido um compromisso de estar na Cova da Iria todo dia 13, de maio a outubro, e jamais faltaria com sua palavra.

No domingo seguinte, dia 19, Lúcia levou as ovelhas para pastar com Francisco e seu irmão João, num lugar mais próximo de casa, chamado Valinhos. Por volta das quatro horas da tarde, Lúcia percebeu as alterações atmosféricas que costumavam preceder as aparições na Cova da Iria: uma ligeira e súbita queda da temperatura; um embotar-se da luz do sol e o brilho do relâmpago. Sentindo também aquele impulso interior que significava que Nossa Senhora iria se apresentar, Lúcia pediu que o pequeno João corresse para chamar a Jacinta. Logo que ela chegou, novo relâmpago, e Nossa Senhora apareceu às crianças. Como de costume, Lúcia pergunta à Senhora o que ela deseja; a resposta, semelhante aos outros meses foi:

— Quero que continueis a ir à Cova da Iria no dia 13, que continueis a rezar o terço todos os dias. No último mês farei o milagre, para que todos acreditem.

Durante aqueles meses, algumas pessoas tinham deixado na Cova da Iria uma certa soma de dinheiro para alguma necessidade que se apresentasse no lugar. Apesar de algumas sugestões, a senhora que havia se tornado informalmente a zeladora do local não sabia que fim dar às contribuições. Lúcia então perguntou a Nossa Senhora qual finalidade deveria ser dada ao dinheiro. A resposta de Maria foi tão singela quanto a pergunta:

— Façam dois andores: um, leva-o tu com a Jacinta e mais duas meninas vestidas de branco; o outro, que o leve o Francisco com mais três meninos. O dinheiro dos andores é para a festa de Nossa Senhora do Rosário e o que sobrar é para a ajuda duma capela que hão de mandar fazer.

Como de outras vezes, Lúcia pediu a cura de alguns doentes; Nossa Senhora respondeu que alguns ficariam curados durante o ano. Então, assumindo um aspecto triste, ela pediu:

— Rezai, rezai muito e fazei sacrifícios pelos pecadores, que vão muitas almas para o inferno por não haver quem se sacrifique e peça por elas.

Ao terminar a aparição, os pequenos cortaram alguns ramos da azinheira nos quais Nossa Senhora havia pousado os pés. Ao passarem perto da casa de Lúcia, Jacinta, transbordando de alegria, grita para a tia Maria Rosa que haviam visto novamente Nossa Senhora nos Valinhos. A tia, que não conseguia acreditar no testemunho das crianças, repreende a menina: “Estais sempre a ver Nossa Senhora. Sois é uns grandes mentirosos!” Jacinta, cheia de entusiasmo, não se deixa vencer e mostra os ramos que trazia consigo. A tia os quis ver, e ficou surpreendida com o maravilhoso perfume que os ramos exalavam. Sem ter o que dizer, deixou partir a criança, que entregou os ramos ao pai. O senhor Marto guardou esses mesmos ramos durante muitos anos, debaixo do colchão, até que um dia os entregou ao padre responsável pela causa de beatificação dos filhos.

 

Colaboradores de Deus

 

A última obra escrita pela irmã Lúcia foi chamada de Apelos da mensagem de Fátima. Neste livro, a pastorinha, agora já uma veneranda religiosa carmelita, desejou compendiar a sua compreensão da mensagem naquilo que considerou serem vinte apelos ou convites da parte de Deus. No capítulo referente à aparição de agosto, nos Valinhos, Lúcia chamou a atenção para o “Apelo ao Apostolado”. Deus nos considera colaboradores seus na obra da salvação dos homens; Nossa Senhora nos ensinou que nossa negligência em amar e servir pode se tornar causa de perdição para muitos: Rezai, rezai muito e fazei sacrifícios pelos pecadores, que vão muitas almas para o inferno por não haver quem se sacrifique e peça por elas.

A irmã Lúcia nos recorda que há três tipos básicos de apostolado, ou seja, três maneiras pelas quais nossas atitudes cooperam com o agir soberano de Deus para alcançar seus filhos:

1. O apostolado da oração. Nossa união com as orações de Cristo, que continua presente e atuante especialmente no sacramento da Eucaristia, pode realizar maravilhas ocultas. Nossa união com Cristo, selada e alimentada pela oração, é a única fonte para que nossas demais ações tenham fecundidade para a salvação dos irmãos. Irmã Lúcia alerta, de modo especial àqueles que, movidos pela ansiedade, podem se lançar à agitação da atividade e se esquecer da comunhão orante com Deus:

 

Sem esta vida de oração e trato com Deus, todo apostolado é nulo, porque é Deus que tem de dar a eficácia ao nosso trabalho, às nossas palavras e aos nossos esforços. Por isso, a Mensagem nos diz: “Orai e sacrificai-vos” para, com as vossas orações, as vossas palavras, os vossos exemplos, os vossos sacrifícios, os vossos trabalhos e a vossa caridade, conseguirdes ajudar os vossos irmãos a levantar-se se estão caídos, a voltarem ao bom caminho se andam extraviados, e a aproximarem-se de Deus se vivem afastados; conseguirdes ajudá-los a vencerem as dificuldades, os perigos e as tentações que os cercam, seduzem e arrastam. E tantos dos nossos irmãos caem, muitas vezes, vencidos, porque não encontram ao seu lado quem ore e se sacrifique por eles, dando-lhes a mão e ajudando-os a seguir por um caminho melhor.

 

2. O apostolado do sacrifício. Todo o nosso esforço e toda a nossa contribuição para a salvação dos demais não é senão participação na missão do próprio Cristo. Ora, não é possível perpetuar a obra do Salvador sem nos assemelharmos a Ele. E assim como não há redenção sem o Calvário, não há apostolado sem imolação, ou seja, sem a renúncia e o esquecimento de si mesmo pelo bem dos irmãos.

3. O apostolado da caridade. Por fim, a vida e o sentimento de Cristo reproduzidos em nós se manifestam também pelo serviço mais imediato ao próximo.

Um pequeno detalhe relativo à aparição de agosto merece ser esclarecido. Respondendo à pergunta sobre os donativos deixados na Cova da Iria, Nossa Senhora recomenda que se façam dois andores, a serem levados pelas crianças, e cuja renda deveria ser usada na festa de Nossa Senhora do Rosário e na construção de uma capelinha. Ora, os andores que aqui se referem não são andores para transportar imagens. Era costume do povo das redondezas de Fátima, para agradecer a Deus os seus benefícios, levar em procissão coletiva os frutos das colheitas, na medida das posses de cada um. Essas ofertas eram recolhidas e colocadas em andores, levados em procissão nas grandes solenidades. Depois da Missa solene, eram oferecidas a Deus como sinal de gratidão e para as despesas do culto.

Irmã Lúcia considera que a resposta de Nossa Senhora manifestou o agrado de Deus para com esse gesto, sinal de partilha e da responsabilidade de todos para com o culto público. Num tempo em que o nome bendito do Senhor é tantas vezes tratado com irreverência, mesmo por aqueles que se consideram cristãos, Nossa Senhora convoca o povo a, com espírito de comunidade, se responsabilizar pelo culto reverente a Deus. De fato, o primeiro ato devido por uma pessoa que se reconhece crente é a adoração. No Catecismo da Igreja Católica lemos que “a adoração é o primeiro ato da virtude de religião. Adorar a Deus é reconhecê-Lo como Deus, como o Criador e o Salvador, o Senhor e o Dono de tudo o que existe, o Amor infinito e misericordioso. ‘Adorarás o Senhor, teu Deus, e só a Ele prestarás culto’ (Lc 4,8), diz Jesus, citando o Deuteronômio” (CIC, 2096).

Muitos são aqueles que se perdem e se esquecem da própria dignidade porque não reconhecem mais Deus como seu Criador e Senhor. Esse “esquecimento” de Deus acaba por contaminar tudo, visto que embrutece o coração humano. Assim, incapazes de reconhecer com reverência filial Aquele que nos amou e nos chamou à vida, terminamos por não reconhecer também a delicada dignidade de cada pessoa humana e de nós mesmos. A adoração, na medida em que nos faz reconhecer os vestígios de Deus em todas as suas obras e agradecer-Lhe por isso, é o remédio para o nosso tempo. O pedido da festa em honra de Nossa Senhora do Rosário; o pedido da construção de uma capelinha; e o pedido da confecção dos andores com os quais custear tudo isso são um sinal desse caminho de reverência pelo qual Nossa Senhora gostaria de nos levar.

 

Setembro: promessa do milagre

 

Chegou o mês de setembro, e milhares de pessoas já se reuniam na Cova da Iria para acolher a visita de Nossa Senhora. A aparição transcorreu tal como das outras vezes. A conversa se inicia com a pergunta de Lúcia: “O que vosmecê me quer?”, ao que Nossa Senhora respondeu:

— Quero que continuem a rezar o terço, para alcançar o fim da guerra. Em outubro virá também Nosso Senhor, Nossa Senhora das Dores e do Carmo, São José com o Menino Jesus para abençoarem o mundo. Deus está contente com os vossos sacrifícios, mas não quer que durmais com a corda; trazei-a só durante o dia.

Como de outras vezes, diversas pessoas pediram a Lúcia que recomendasse a Nossa Senhora os seus enfermos. A resposta, como em outras ocasiões, foi:

— Sim, alguns curarei, outros não.

E, em seguida, Nossa Senhora prometeu novamente:

— Em outubro farei o milagre, para que todos acreditem.

Começando então a elevar-se, desapareceu como de costume.

 

Um convite à perseverança

 

Na breve conversa de setembro, Nossa Senhora encorajou os pastorinhos e, por intermédio deles, também a nós a perseverar na oração do terço. Mais uma vez, Ela nos garante: pela oração podem ser vencidas até as guerras!

Continuem a rezar! As palavras de estímulo da Mãe Santíssima são valiosas, pois todos aqueles que se propõem a dar os primeiros passos na vida de oração sabem o quanto é difícil perseverar. O primeiro obstáculo que se põe não vem de fora, senão que está dentro de nós mesmos: os altos e baixos que experimentamos quando somos movidos pelos nossos impulsos. A Escritura nos alerta sobre os perigos da inconstância: “O homem inconstante é como a onda do mar, levantada pelo vento e agitada de um lado para o outro. Não pense, portanto, tal homem que alcançará alguma coisa do Senhor, pois é um homem irresoluto, inconstante em todo o seu proceder” (Tg 1,6-8).

Se é verdade que os primeiros dias de oração podem ser uma maravilhosa descoberta, também é verdade que logo eles podem se mostrar árduos, sem muitas respostas imediatas ou sinais da presença de Deus. Nesse momento, precisamos recordar que o primeiro motivo da oração não somos nós mesmos, nem nossas necessidades, nem nosso desejo de experimentar a presença de Deus. O motivo decisivo, que nos impulsiona a vencer a inconstância, é agradar verdadeiramente a Deus e buscá-Lo, para que sejamos transformados segundo a sua vontade. Se o foco de nossas orações é alguma necessidade imediata, ou o desejo de experimentar o consolo divino (ainda que seja correto e necessário apresentar a Deus nossas preocupações por meio da oração), nosso relacionamento com Ele vai ter sempre como medida o pensamento daquilo que nos falta ou uma consciência de que nunca temos o bastante. Ao contrário, se nosso propósito primeiro é adorar a Deus e conhecer sua vontade, nosso primeiro pensamento na oração vai ser sempre o de um grato reconhecimento por tudo o que o Senhor é e faz por nós. Além disso, nossa abertura de coração para compreender seu chamado vai, gradualmente, alargando nossa união com Deus; seus interesses irão se tornando, aos poucos, os nossos interesses. Tendo cada vez mais em comum com o Senhor, estar com Ele se tornará então uma agradável necessidade do nosso coração.

Além de vencer a inconstância natural dos nossos sentimentos, precisamos de disciplina para consagrar tempo a Deus em meio às tantas atividades de nossa jornada diária. É comum ouvirmos pessoas dizerem que “não conseguem parar para rezar, mas lembram de Deus muitas vezes ao longo do dia”. Recordar-nos de que estamos na presença de Deus durante a jornada diária é um excelente exercício. Contudo, ele só será frutuoso para nós na medida em que, “nada antepondo ao amor de Cristo”, dedicarmos alguns momentos do dia para nossa íntima convivência com o Senhor. É nessa hora, no oculto do coração, que o Espírito Santo planta as sementes que devem dar fruto ao longo de todo o dia. Se não temos tempo para consagrar a Deus, em detrimento de todo o resto, estamos revelando praticamente que não nos consideramos dependentes dele, visto que não lhe dedicamos atenção total. Em nossa época, considera-se uma qualidade o fato de uma pessoa conseguir desempenhar diversas tarefas ao mesmo tempo, ter um “multifoco”. Quando o assunto é a vida do nosso espírito, isso não é uma qualidade! Essa dispersão da atenção, que pode ser útil quando somos arrastados para fora de nós mesmos a fim de desempenhar diversas tarefas mais ou menos superficiais, não nos permite mergulhar naquilo que Deus deseja revelar de si mesmo quando o buscamos. A palavra “inteligência” (que é, aliás, um dos dons do Espírito Santo) significa originalmente: “capacidade de ler dentro.” Só nos detendo diante do Senhor com serenidade seremos capazes de “ler dentro” de nós mesmos e das circunstâncias da vida, a fim de descobrirmos a vontade de Deus e agirmos sabiamente.

Portanto, lutar contra a inconstância; disciplinar-se para dedicar tempo ao encontro com Deus; ter como ponto de partida da oração não a consciência de nossas necessidades ou de nossas carências, mas o desejo de cultivar a consciência de adorador, ou seja, de fazer do reconhecimento agradecido o princípio da vida de oração — esses são alguns dos elementos que fortalecerão a perseverança na vida de comunhão com Deus. Concretamente, em Fátima, Nossa Senhora nos ofereceu como ponto de partida a oração do terço. Na medida em que, unindo nosso coração ao Imaculado Coração de Maria, vamos meditando serenamente nos mistérios da vida de Jesus, podemos vencer exatamente nesses primeiros desafios da vida de oração. O ritmo de repetição do terço pode ser uma grande ajuda: não importando o estado de nossos sentimentos, se entusiásticos ou abatidos, a oração vai fluindo com constância, levando-nos para além de nós mesmos. Além disso, a oração do terço pode encorajar a dedicação de um tempo diário ao Senhor; sua contemplação desperta os olhos de nossa alma para que vejamos diante de nós, com os olhos de Maria, a face de Jesus Cristo. Quando o foco de nossa oração é Jesus, o amado Salvador de todos nós, como não se encher de confiança e gratidão?

Também em setembro de 1917 surge uma importante personagem da igreja portuguesa em Fátima, que será valiosa para o prosseguimento dos estudos e para o reconhecimento das aparições: o cônego Manuel Nunes Formigão. Conhecido não somente por sua sabedoria e sua prudência, mas, sobretudo, pela santidade de sua vida (está atualmente em processo de canonização), o venerado sacerdote, depois de tudo observar com atenção, volta-se para Lúcia e a admoesta: “A menina tem a obrigação de amar muito a Nosso Senhor, por tantas graças e benefícios que lhe está concedendo.” Anos mais tarde, irmã Lúcia afirmou que essas palavras se gravaram tão intimamente em sua alma que, desde então, ela adquiriu o hábito de dizer constantemente a Nosso Senhor: “Meu Deus, eu Vos amo, em agradecimento pelas graças que me tendes concedido.”

A história de Fátima é também a história dos pastorinhos. A ação do Espírito Santo nessas crianças, bem como a transformação de seus corações por meio de uma generosidade heroica em responder ao chamado de Deus, é o sinal de que algo realmente sobrenatural se dera naqueles dias na Cova da Iria e permaneceu atuando por muito tempo dentro delas. A gratidão, transformada em amor efetivo a Deus, constitui um dos tantos traços que vão se imprimir no coração de Lúcia. Como seria maravilhoso se, também em nós, a devoção a Nossa Senhora de Fátima gerasse uma cura e uma transformação interior profundas. Talvez esse trabalho do Espírito Santo em nós possa começar justamente na medida em que aceitarmos que as palavras do cônego Formigão também poderiam ser dirigidas a nós, por muitos motivos: “Tenho a obrigação de amar muito a Nosso Senhor, por tantas graças e benefícios que me está concedendo!” Sempre nos ronda a tentação da insatisfação e da ingratidão: apesar de Deus estar sempre conosco, muitas vezes nos sentimos sozinhos ou preteridos diante dos outros. Aprender a agradecer (como nos ensina a liturgia da Igreja, que a cada Missa nos convida a declarar: “Demos graças ao Senhor, nosso Deus! É nosso dever e nossa salvação!”) pode ser o caminho que nos levará da revolta à paz, da tristeza à confiança nos planos de Deus.

Além disso, outro detalhe precioso da aparição de setembro está em que Nossa Senhora dá às crianças uma notícia que muito deve tê-las alegrado: “Deus está contente com os vossos sacrifícios.” Não podemos nos esquecer de que os interlocutores de Maria Santíssima são três crianças de dez, nove e sete anos; os sacrifícios que faziam, como já sabemos, eram o jejum do almoço; não beber água por tempo prolongado; usar uma corda ao redor da cintura por debaixo da roupa, e mais qualquer pequena coisa que se lhes apresentasse como oportunidade de penitência. Contudo, para Deus, o motivo de contentamento não é o tamanho da obra oferecida, mas o amor com que ela é feita. Assim também é conosco! Talvez jamais tenhamos a oportunidade de fazer algo grande para Deus. O que importa é saber que Ele fez algo grande por nós, dando-nos uma nova vida pelo sacrifício de Jesus. Agora, cabe a nós corresponder a esse dom por meio do amor. Colocar verdadeiro amor a Deus em todas as coisas que fazemos no dia a dia: esse é o segredo para contentarmos o Senhor. Como escreveu certa vez o bem-aventurado Columba Marmion a uma de suas filhas espirituais, “procurai, querida filha, fazer tudo por amor. Deus é Amor e aceita as mais pequeninas coisas feitas por amor. O amor é como a pedra filosofal, que transforma em ouro tudo quanto for tocado por ela”.

Em seu caminho de penitência, porém, os pastorinhos não contavam com a orientação de ninguém que pudesse ajudá-los. Por escrúpulo, não contavam a outras pessoas os sacrifícios que faziam. Portanto, era natural que acabassem caindo em algum exagero, o que de fato aconteceu com a corda que traziam por debaixo das blusas, que não tiravam sequer para dormir. Nossa Senhora, então, depois de encorajá-los com a notícia de que Deus se agradava de suas pequenas penitências, pede que as crianças usem a corda apenas durante o dia. Vemos nesse detalhe um cuidado de mãe e educadora: conhecendo a generosidade das crianças e sua capacidade de oblação, Maria Santíssima não as desencoraja de fazer o sacrifício durante o dia. Mas, conhecendo também as limitações de seu organismo infantil, recomenda que durmam sem nenhum incômodo, colocando um limite saudável à penitência. Como seria bom se as mães e os pais cristãos se espelhassem nesse exemplo de Maria… Num mundo em que nossas crianças são educadas pelos meios de comunicação a reclamar a satisfação imediata de suas vontades, seria maravilhoso se as mães e os pais ensinassem seus filhos a respeito do valor do sacrifício e da renúncia e os encorajassem a praticá-los. Temperando essa prática com os cuidados naturais que uma mãe deve cultivar pela saúde e bem estar de seu filho, certamente formaríamos uma geração de cristãos e cidadãos generosos, dispostos a se esquecerem de si mesmos para corresponder à vontade de Deus. Uma “educação para o sacrifício”, temperada com o amoroso reconhecimento e encorajamento pelas virtudes praticadas, daria muitos frutos para a formação da personalidade de nossas crianças.

 

Outubro: o cumprimento da promessa

 

Chegou finalmente o dia 13 de outubro, no qual se daria o esperado milagre para que todos pudessem acreditar. Alguns registros da época fazem menção a 100 mil pessoas presentes na Cova da Iria nesse dia. Na sua maioria, gente humilde das aldeias vizinhas, vinda a pé desde a véspera para despedir-se de Nossa Senhora e presenciar o milagre prometido para a última aparição.

Perto do meio-dia, os pastorinhos conseguiram aproximar-se da azinheira, já então desfolhada pelos devotos, marcada com um arco de madeira do qual pendiam duas lanternas, e com os galhos nus cobertos por fitas de seda colocadas por dona Maria Carreira (depois conhecida como “Maria da Capelinha”), a guardiã informal do local das aparições. Chovia constantemente desde o dia anterior, e toda a região estava encharcada, bem como as roupas dos peregrinos. Lúcia, então, movida por uma impressão interior, pede que todos fechem os guarda-chuvas e comecem a rezar o terço. Pouco depois, as crianças veem o reflexo do costumeiro relâmpago e Nossa Senhora se lhes apresenta mais uma vez. Colocando-se à disposição da Senhora, como fizera das outras vezes, Lúcia pergunta:

— Que é que vosmecê me quer?

Dessa vez, como prometido, a Senhora revela sua identidade:

— Quero dizer-te que façam aqui uma capela em Minha honra, que sou a Senhora do Rosário, que continuem a rezar o terço todos os dias. A guerra vai acabar e os militares voltarão em breve para suas casas.

Lúcia então reporta a Nossa Senhora os muitos pedidos de ajuda que lhe eram feitos pelos peregrinos:

— Eu tinha muitas coisas para lhe pedir: se curava uns doentes e se convertia uns pecadores…

— Uns, sim; outros, não. É preciso que se emendem, que peçam perdão dos seus pecados.

Tomando um aspecto mais triste, Nossa Senhora disse:

— Não ofendam mais a Deus Nosso Senhor, que já está muito ofendido.

E, abrindo as mãos, fez com que se refletissem no sol. Enquanto se elevava, continuava o reflexo da sua própria luz a projetar-se no sol. Por esse motivo, Lúcia gritou para que todos olhassem para o astro.

 

As três visões

 

Desaparecida Nossa Senhora na imensa distância do firmamento, as crianças viram, ao lado do sol, São José com o Menino Jesus e Nossa Senhora vestida de branco, com um manto azul. São José e o Menino pareciam abençoar o mundo com uns gestos que faziam com a mão em forma de cruz. Pouco depois, desvanecida essa aparição, as crianças viram Nosso Senhor e Nossa Senhora, que parecia ser Nossa Senhora das Dores. Nosso Senhor aparentava abençoar o mundo, tal como fizera São José. Desvaneceu--se essa aparição e pareceu às crianças ver Nossa Senhora semelhante a Nossa Senhora do Carmo.

Muitas são as interpretações possíveis das cenas vistas pelas crianças. Alguns autores fazem uma relação entre as imagens e os mistérios do Rosário (a Sagrada Família corresponde aos mistérios gozosos; Nossa Senhora das Dores, aos dolorosos; Nossa Senhora do Carmo, aos gloriosos). A própria irmã Lúcia, contudo, reconhece uma outra relação possível. Para ela, as visões são um apelo de Deus a valorizarmos a vocação à santidade cristã em suas diversas formas de realização.

A primeira visão foi a da Sagrada Família. Para a vidente, nesses nossos tempos em que a família, como constituída por Deus, é tão malcompreendida, o Senhor desejou chamar nossa atenção para o valor e a missão das famílias cristãs. Segundo a irmã Lúcia, “Deus confiou à família uma missão sagrada de cooperação com Ele na obra da criação. Esta decisão de querer associar as Suas pobres criaturas à Sua obra criadora é uma grande manifestação da bondade paternal de Deus: é como que fazê-las participantes do Seu poder criador; é querer servir-se dos Seus filhos para a multiplicação de novas vidas, que floresçam na Terra com destino ao Céu”.

Além disso, a Sagrada Família aparece como modelo de vida e convivência para todas as famílias cristãs. A perfeita comunhão de Nossa Senhora e São José em realizar a vontade de Deus; sua inteira dedicação à missão materna e paterna junto ao Salvador; a perfeita submissão de Jesus aos humildes pais que o custodiavam na Terra… Tudo nessa família é exemplo para aqueles que desejam colocar Deus no centro de seus lares e relacionamentos.

A segunda cena, do Cristo e de Nossa Senhora das Dores, representa, para a irmã Lúcia, o apelo de Deus à nossa perfeição no seguimento de Jesus Cristo. Tendo se apresentado como “homem perfeito”, adulto, majestoso ao abençoar o mundo, o Cristo se manifesta como o Mestre do qual devemos seguir os passos. Um dia, o Senhor convidou Seus discípulos a virem ao seu encontro com essas palavras: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e sobrecarregados debaixo do peso de vossos fardos. Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrais repouso para vossas almas.” (Mt 11,28ss). O Senhor não deseja apenas que aprendamos algumas coisas sobre Ele; seu grande desejo é que aprendamos tudo Dele, ou seja, que aprendamos a ser como Ele. Santo Henrique de Ossó assim expressou o ideal que deve arder no coração de todo cristão:

 

Pensar como Jesus Cristo, sentir como Jesus Cristo, amar como Jesus Cristo, agir como Jesus Cristo, conversar como Jesus Cristo, falar como Jesus Cristo. Enfim, conformar toda a nossa vida à de Cristo, revestir-nos de Jesus Cristo! Nisso consiste o único interesse, a ocupação essencial e primária de todo cristão; porque cristão significa alter Christus, outro Cristo. Salvar-se-á aquele que for encontrado conforme a imagem de Cristo. (…) A vida eterna consiste em conhecer sempre mais a Jesus Cristo, nossa única felicidade no tempo e na eternidade. Quão feliz será a alma que aprender cada dia esta lição e a puser em prática! Que suave pensamento: viverei, comerei, dormirei, falarei, calarei, trabalharei, padecerei, tudo farei e sofrerei em união com Jesus, conformando-me à divina intenção e aos sentimentos com que Jesus agiu e quer que sejam os meus no agir ou no padecer!

 

A Virgem das Dores, aparecendo ao lado do Salvador, recorda-nos de que não há seguimento de Cristo que não passe pela Cruz. Ela nos lembra o valor do sacrifício e da imolação por amor. Nosso mundo não quer ouvir falar dessas verdades e, segundo a irmã Lúcia, “quanto mais foge do sofrimento, mais se vê mergulhado no mar das aflições, amarguras e penas”. O sofrimento fecundo de Nossa Senhora, porque sempre unido a Jesus, nos convida a transformar nossas dores em ocasião de maior entrega a Deus. Em nossa união com Ele, também os sacrifícios que a vida nos impõe serão fecundos e gerarão frutos de graça para nós e para muitas outras pessoas.

Por fim, os pastorinhos tiveram a visão de Nossa Senhora do Carmo, revestida com o escapulário. Para a irmã Lúcia, essa cena manifestou o amor de Deus pela vida religiosa e por todos os consagrados. A renúncia à própria vontade para estar mais generosamente disponível ao chamado de Deus é o distintivo da vida religiosa. Essa renúncia abraça cada detalhe da vida: a capacidade de amar; os projetos de trabalho e o reconhecimento humano; as pequenas e grandes escolhas nas quais podemos abrir mão da vontade própria. Segundo a irmã Lúcia, “a missão das pessoas consagradas é trabalhar e santificar-se em união com Cristo pelo Reino dos Céus… A forma para cumprir essa missão é dar a vida: ‘Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto’ (Jo 12,24). (…) Esta é a glória das pessoas consagradas: a glória que elas esperam de Deus e que as eleva para Deus. Podem de certo modo dizer como e com Jesus Cristo: ‘Por causa disto é que cheguei a essa hora’ (Jo 12,27).” Eis, portanto, o sentido das três visões de outubro, segundo a irmã Lúcia: são um chamado à santidade, ao seguimento de Jesus em qualquer estado de vida em que nos encontremos. “Para isso fomos escolhidos e havemos de ser santos: para ser o louvor da glória de Deus e participar dessa mesma glória que dele recebemos como graça.”

 

O milagre prometido

 

Enquanto as crianças contemplavam essas visões, deu-se o famoso milagre do sol, o sinal prometido para confirmar a veracidade das aparições. Os pastorinhos, contudo, não viram o milagre. Segundo as milhares de testemunhas oculares, a chuva parou, as nuvens abriram-se como uma cortina que se afasta e deixaram passar os raios do sol que secaram toda a lama e as roupas da multidão. Por três vezes o sol girou sobre si próprio, dardejando os seus raios com matizes de amarelo, azul, verde e roxo; era possível observar esse prodígio desde muito longe. As pessoas tomavam as cores do sol. A certa altura, toda a multidão aterrada começou a gritar e muitos confessavam em voz alta seus pecados, fazendo atos de fé e pedindo perdão. Parecia que o sol se desprendia do firmamento e vinha em direção à Terra.

O correspondente do jornal O Século, vindo de Lisboa para “desmascarar a farsa de Fátima”, assim relatou sua experiência:

 

Podia ver-se a imensa multidão que olhava para o sol, que parecia estar livre das nuvens e a pino. Parecia como uma placa de prata desbotada e era possível olhá-lo sem nenhum incômodo. Poderia ser um eclipse que estava acontecendo. Mas nesse momento escutou-se um grande grito e podia se escutar os espectadores mais próximos gritando “Milagre! Milagre!”. Diante dos olhos da multidão, cujo aspecto era bíblico, o sol tremeu, fez alguns movimentos incríveis fora de suas leis cósmicas — o sol “dançou” — de acordo com a expressão típica das pessoas. E, a seguir, perguntam-se todos se viram o que viram. O maior número confessa que viu a tremura, o bailado do sol; outros, porém, declaram ter visto o rosto risonho da própria Virgem, juram que o sol girou sobre si mesmo como uma roda de fogo de artifício, que ele baixou quase a ponto de queimar a Terra com seus raios. Há quem diga que o viu mudar sucessivamente de cor.

 

O jornal O Dia, também de Lisboa, noticiou o fato da seguinte maneira:

 

O sol prateado viu-se girar e rodopiar no círculo das nuvens abertas. Um grito saiu de cada boca e as pessoas caíram de joelhos no chão pantanoso. A luz tornou-se de azul formoso como se tivesse vindo através de vidros de janelas de catedral e espalhou-se sobre as pessoas que estavam ajoelhadas de mãos abertas. O azul se desvaneceu devagar e então a luz parecia passar através de um vidro amarelo. As pessoas choravam e rezavam com a cabeça descoberta na presença do milagre que tinham esperado. Os segundos pareciam horas, de tanto serem vividos.

 

Terminada a aparição e o milagre, a multidão se precipitou sobre os pastorinhos com mil perguntas. Foi difícil naquele dia preservar as crianças do assédio dos peregrinos, que permaneceram ainda em Fátima durante todo aquele dia, desejando alongar um pouco mais um momento de tanta graça. Nossa Senhora do Rosário de Fátima tinha manifestado, por fim, a razão maior de sua visita, patente em todos os outros pedidos que fez ao longo daqueles meses: Não ofendam mais a Deus Nosso Senhor, que já está muito ofendido. Contudo, a aparição do dia 13 de outubro não foi a despedida definitiva da Senhora. Como havia prometido em maio, Ela voltaria ainda uma sétima vez à Cova da Iria. E voltaria ainda outras duas vezes, para estabelecer a devoção ao seu Imaculado Coração e pedir a consagração da Rússia. A mensagem de Fátima ainda não havia se completado, e a Mãe de Deus devia ainda prodigalizar seus cuidados amorosos sobre a humanidade do século XX.

 

Dois dias antes da proclamação do dogma da Assunção de Nossa Senhora, em 1º de novembro de 1950, o venerável Pio XII foi surpreendido, nos jardins do Vaticano, por um fenômeno muito semelhante ao milagre do sol acontecido em Fátima:

 

O sol, que estava muito alto no céu, assumiu o aspecto de um globo opaco de um amarelo pálido, totalmente cercado por um halo luminoso, que não obstante não me impedia de observá-lo diretamente, sem o menor desconforto. Uma nuvem muito leve encontrava-se diante dele. O globo opaco principiou a mover-se para fora, girando lentamente sobre si mesmo, e deslocando-se da esquerda para a direita, e vice-versa. Mas dentro do globo, movimentos muito fortes podiam ser observados em toda a claridade e sem interrupção. O mesmo fenômeno repetiu-se no dia seguinte, 31 de outubro, bem como a 1º de novembro, dia da definição, e na oitava da solenidade, ou seja, no dia 8 de dezembro. Até hoje não mais se repetiu. Várias vezes, depois, em diferentes dias, mas sempre à mesma hora e em condições atmosféricas iguais ou muito semelhantes, olhei para o sol para ver se aparecia o mesmo fenômeno, mas em vão, pois não consegui olhar fixamente para o sol nem só por alguns segundos, porque me cegava imediatamente a vista. Esta é, em breves e simples palavras, a pura verdade.

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