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Esperança em tempos difíceis

Reclamar para Deus

Servia o mestre, mas reclamava do preço.
Pois não era um santo só de gesso.

Phyllis McGinley, sobre São Jerônimo

O maior livro da Bíblia é o livro dos Salmos, o livro de orações do povo de Deus. Ele tem um monte de hinos para todas as ocasiões – para liturgias, devoções privadas, para todas as alegrias e tristezas das quais a vida humana está cheia.

E já que estamos citando estatísticas, aqui vai mais uma estatística sobre a qual a maioria de nós não pensa: mais de quarenta por cento dos salmos são cânticos de «reclamação» ou lamentações. Isso é quase metade.

Isso nos surpreende. Mais do que isso, nos deixa perplexos. Quem teria coragem de reclamar para Deus?

Na verdade, reclamar para Deus é um dos privilégios de ser filho de Deus. Mas nós temos que entender a diferença entre reclamar e resmungar.

Resmungar é o que os israelitas fizeram no deserto. Eles reclamaram de Deus, não para Deus. Na verdade, estavam prontos para demiti-lo e conseguirem sozinhos um Deus de que gostassem mais – é por isso que fizeram Aarão construir um bezerro de ouro.

Reclamar não é a mesma coisa que resmungar ou murmurar.

As consequências de resmungar podem ser severas. São Paulo avisou aos seus amigos coríntios o que aconteceu com os israelitas rebeldes no deserto:

Nem tentemos o Senhor, como alguns deles o tentaram, e pereceram mordidos pelas serpentes. Nem murmureis, como murmuraram alguns deles, e foram mortos pelo exterminador. Todas estas desgraças lhes aconteceram para nosso exemplo; foram escritas para advertência nossa, para nós que tocamos o final dos tempos.

(1Cor 10,9-11)

Fique no seu canto

Então resmungar – reclamar de Deus – é ruim.

Mas reclamar para Deus é diferente. Se você reclama para alguém, você presume que é alguém que realmente se importa com você.

Porque meus dias se consomem como a fumaça, e os meus ossos ardem como lenha.

O meu coração está ferido e seco como a erva, por isso me esqueço de comer o meu pão.

(Sal 102,4-5)

O poeta, identificado apenas como «um aflito», reclama para Deus sobre sua aflição. Mas reclama, não porque pensa que Deus está fazendo um trabalho ruim na administração do universo, mas porque acredita que Deus pode fazer alguma coisa pelos seus problemas. E, por causa da sua crença, o poeta se agarra a uma esperança razoável:

Quando o Senhor edificar a Sião, aparecerá na sua glória.

Ele atenderá à oração do desamparado, e não desprezará a sua oração.

(Sal 102,17-18)

Essa fé é óbvia até no mais triste dos salmos. O salmo de reclamação mais conhecido é, de longe, o Salmo 22, que o próprio Cristo citou logo antes de morrer na Cruz:

Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?

E permaneceis longe de minhas súplicas e de meus gemidos?

Meu Deus, clamo de dia e não me respondeis; imploro de noite e não me atendeis.

Até agora, parece bastante triste. Mas Davi (a quem o salmo é atribuído) não vai muito longe antes de expressar sua confiança em Deus:

Entretanto, vós habitais em vosso santuário, vós que sois a glória de Israel.

Nossos pais puseram sua confiança em vós, esperaram em vós e os livrastes.

A vós clamaram e foram salvos; confiaram em vós e não foram confundidos.

Essa confiança não faz os problemas atuais irem embora, e mal faz com que fique mais fácil lidar com eles:

Eu, porém, sou um verme, não sou homem, o opróbrio de todos e a abjeção da plebe.

Todos os que me veem zombam de mim; dizem, meneando a cabeça:

Esperou no Senhor, pois que ele o livre; que o salve, se o ama.

Ainda assim, Davi sabe que Deus o manteve seguro durante a vida, e toda sua esperança está na fé de que Deus não vai mesmo abandoná-lo, apesar das aparências:

Sim, fostes vós que me tirastes das entranhas de minha mãe e, seguro, me fizestes repousar em seu seio.

Eu vos fui entregue desde o meu nascer; desde o ventre de minha mãe vós sois o meu Deus.

Isso não é um rebelde amaldiçoando o rei. É um filho implorando ajuda ao seu Pai. Essa é a maravilha dos salmos de reclamação: eles nos dão uma liberdade infantil para nos aproximarmos de Deus como Pai.

Dando uma de Deus

«Se eu fosse pai», dizemos – reclamando do mesmo jeito que nossos filhos reclamam para nós. «Se eu fosse pai, nunca faria meus filhos passarem pelo que você nos faz passar».

Mas perceba que não é aí que o salmista acaba. Apesar das suas reclamações, ele continua para expressar sua fé em Deus: «Eu nunca faria meus filhos passarem pelo que você nos faz passar. Mas você é um pai melhor do que eu poderia esperar ser. Você é mais forte, mais sábio, e mais amoroso do que eu».

Você não pode terminar com uma reclamação, porque só vai acabar ainda mais infeliz. Reclamar não é bom a não ser que você siga em frente. Você tem que transformar a reclamação em um ato de fé.

Centenas de anos antes da ressurreição de Jesus, os salmistas sabiam que suas reclamações não estavam realmente completas até que eles as transformassem num ato de fé e de esperança; até que expressassem sua confiança de que – independentemente de quão profundos fossem seus problemas, de quão insuportáveis fossem suas dores – Deus ainda estaria com eles.

Por isso não devemos ter medo de ir até Deus com reclamações nas nossas orações. Mas não devemos terminá-las com reclamações. Temos que lembrar dos atos de fé e esperança.

A oração é um impulso do coração, um simples olhar para o céu, um grito de amor e gratidão na provação e na alegria; é algo enorme e divino que dilata o nosso íntimo e une a Jesus.

SANTA TERESA DE LISIEUX

Os salmistas sabiam disso, e nós não podemos esquecê-lo – não depois de Deus ter passado milhares de anos mostrando ao mundo muitas e muitas vezes como faz nascer o maior bem do maior mal.

Foi exatamente isso que aconteceu quando Jesus foi crucificado. A crucifixão foi o pecado mais horrível que a humanidade já cometeu contra Deus. Ainda assim, acabou trazendo nosso bem maior: a nossa salvação.

Mas por quê? Por que algumas vezes precisamos do mal maior para termos o bem maior? Deus não poderia ser mais legal e tirar o maior dos bens do, digamos, maior dos bens?

Como quase sempre, podemos encontrar a resposta em São Paulo. Acontece que o que nós consideramos o «bem» não é necessariamente o que é bom de verdade para todos.

* * *

Lembre-se:

Tudo bem reclamar para Deus. Ele aguenta.

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