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Capítulo 2
TEMPESTADE NO LAGO
Ao entrar na cela, o chefe da guarda do Templo pediu que Pedro e João se identificassem. Depois que eles o fizeram, dirigiu-lhes a palavra dizendo que tinha recebido uma ordem de conduzi-los para fora da cela, a fim de açoitá-los com varas. Depois de mandar que os guardas lhes arrancassem as vestes, ordenou que estes lhes infligissem muitos golpes. Em seguida, os levaram para a parte mais interna da cela e lhes prenderam os pés no tronco.1 O chefe da guarda explicava-lhes que estavam sendo castigados por terem desobedecido às ordens do sumo sacerdote e dos seus partidários (cf. At 4,5-22).
De fato, depois de curarem um coxo de nascença na entrada do Templo (cf. At 3,1ss), os dois apóstolos foram intimados pelas autoridades judaicas a não falar ou ensinar em nome de Jesus. Pedro e João então responderam:
Julgai se é justo, aos olhos de Deus, obedecer mais a vós do que a Deus. Pois não podemos, nós, deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos (At 4,19-20).
Depois que os três algozes saíram da cela, Tiago e Simão, o Zelota, aproximaram-se dos dois apóstolos. Tiago tomou uma lamparina a óleo que pendia de uma das paredes, e aproximou a luz pálida e mortiça dos rostos de seus companheiros. João, que era ainda muito jovem, fitou o irmão com um olhar tranquilo e confiante. Seus olhos castanhos claros eram límpidos e profundos; e sua fisionomia diáfana e serena. Todo o seu ser irradiava paz profunda. O mesmo não se podia dizer de Pedro. Sendo bem mais velho do que João, seu rosto, no qual se destacavam os olhos escuros e expressivos, era curtido e bronzeado pelo sol. Uma prematura calvície tomara a parte superior do crânio, dando-lhe uma aparência afável e bondosa. O cenho franzido e as sobrancelhas cerradas, longas e crispadas, denotavam um quê de ansiedade e apreensão.
Tiago perguntou-lhes:
– Vocês estão bem?
Os dois apóstolos responderam assertivamente com a cabeça. Pedro então acrescentou:
– Recebemos os quarenta açoites menos um,2 mas o Senhor nos deu forças para suportarmos tudo com coragem. Devemos estar preparados para dar testemunho da ressurreição de Jesus diante do Sinédrio. Certamente eles irão interrogar-nos como fizeram antes (cf At 4,1-22).
– Jesus prometeu que o Espírito Santo haveria de nos ensinar o que dizer (cf. Lc 12,11-12); por isso, não devemos ter medo, disse Simão, demonstrando confiança.
– Se ao menos pudéssemos ter um pouco de água para lhes lavar as feridas, acrescentou Tiago enquanto caminhava em direção à porta da cela.
João, contudo, permanecia meditativo e em silêncio. Algumas cenas da sua infância vinham-lhe à mente com intervalos intermitentes. Lembrava-se de quando, aos sete anos, fora inscrito na escola da sinagoga, a beth ha sefer (a casa do livro). O professor, hazzan, o ministro da sinagoga, ensinou-o a ler e escrever. A sinagoga de Betsaida não dispunha de todas as Escrituras hebraicas, mas tinha a Torah, isto é, os cinco primeiros livros da Bíblia, o Saltério e o livro de Isaías. Tinha também “targumins”, que eram versões aramaicas dos Livros Sagrados. Os textos eram aprendidos de cor à força de repetição, empregando-se para isso um sistema de mnemotécnica, como o paralelismo, a antítese, a aliteração e o ritmo. Quando encontrava nos rolos da Torah o Tetragrama, o nome santíssimo e impronunciável de Deus, João devia pôr a mão diante dos olhos, em sinal de respeito e temor reverencial. Ele era muito aplicado nos estudos, e desde cedo desejava, quando se tornasse adulto, fazer parte da classe dos escribas.3
João lembrava-se também de que, certo dia de sábado, tinha ido ao culto na sinagoga acompanhado de seus pais, Zebedeu e Salomé. Além de seu irmão Tiago, João tinha mais três irmãs: Isabel, Miriam e Lia. Ele tinha um carinho especial por suas irmãs, mas, sendo Tiago treze anos mais velho do que ele, sentia não ter um irmão menor para acompanhá-lo nas suas brincadeiras. Por isso, enquanto suas irmãs se reuniam para brincar alegremente com enormes bonecas de barro ou de trapo, João e algumas crianças da vizinhança iam até uma pequena olaria, que havia na entrada da cidade. O proprietário, um ancião de nome Josias, permitia que os meninos usassem o barro que havia na olaria, para modelar diversos objetos e construir cidades imaginárias. Noutras ocasiões, sentavam-se no meio da rua e brincavam com barcos de madeira, lançando à terra e recolhendo pedaços de rede que, em sua fantasia, ora vinham repletos de peixes, ora vazios. Imitavam a voz ritmada dos remadores, o ulular do vento ou o fragor das tempestades.
Naquele sábado, João estava feliz porque havia sido escolhido para fazer a leitura das Escrituras.
A sinagoga de Betsaida era uma sala despojada, sem pinturas ou imagens, e devia conter cerca de cem pessoas. No adro havia uma fonte, onde todos lavavam ritualmente as mãos. Ao entrar, os homens se dirigiam para a parte central, e as mulheres para as galerias laterais que lhes eram reservadas. À frente, podia-se ver o estrado com seu púlpito (tebah), de onde João leria as Escrituras. Atrás, situava-se o cofre sagrado (aron ha-qoedesh), protegido por uma cortina e que guardava os rolos sagrados. Diante dessa arca santa, ardia perpetuamente uma lâmpada como sinal da shekinah ou da Presença de Deus no meio do seu povo, através da sua Palavra.
O culto iniciou-se com a recitação de três salmos, seguidos de um hino de louvor. Depois de fazer uma oração, e enquanto o povo cantava, o celebrante carregou os rolos santos, em procissão, pela sinagoga. Chegando ao púlpito, levantou-os bem alto e pronunciou um credo resumido: “Escuta, Israel...”. Depois, colocou-os sobre a estante para que fosse feita a leitura. João dirigiu-se para lá e proclamou para toda a assembleia:
Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará das suas raízes. Sobre ele repousará o espírito de Iahweh, espírito de sabedoria e de inteligência, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de conhecimento e de temor de Iahweh: no temor de Iahweh estará a sua inspiração. Ele não julgará segundo a aparência. Ele não dará sentença apenas por ouvir dizer. Antes, julgará os fracos com justiça, com equidade pronunciará uma sentença em favor dos pobres da terra. Ele ferirá a terra com o bastão da sua boca, e com o sopro dos seus lábios matará o ímpio (Is 11,1-4).
Depois da leitura, um convidado fez a homilia e em seguida, o culto foi encerrado com orações e uma bênção final.
Ao voltar para casa, o coração de João estava repleto de esperança de que, em breve, “a raiz de Jessé” viesse libertar o seu povo de todos os seus opressores.
Na prisão em Jerusalém, o fato de João ter os pés presos no mesmo tronco que prendia os pés de Pedro fazia-o recordar-se do dia em que fora salvo por Pedro. Isso aconteceu quando moravam em Betsaida, e João era ainda um adolescente.
Naquele dia, Simão Pedro, seu irmão André e os dois filhos de Zebedeu tinham saído antes do alvorecer para pescar. Na maioria das vezes, costumavam pescar durante a noite, mas naquela ocasião decidiram ir de manhã cedo. O dia estava quente e abafado. Nuvens espessas encobriam o sol, cuja luz pálida e difusa dava ao ambiente um ar triste e sombrio. Quando se encontravam no meio do lago, o céu escureceu e uma tempestade desabou sobre eles, fazendo com que o mar se tornasse extremamente encrespado e agitado. Ondas enormes sacudiam o barco de um lado para o outro, fazendo com que os quatro pescadores ficassem apavorados. Tentaram, desesperadamente, agarrar-se a duas tábuas de madeira, situadas no centro da embarcação, e que serviam de bancos, para não serem lançados ao mar. De repente, uma onda gigante arrastou João para dentro do lago, e ele desapareceu no meio das águas revoltas. Imediatamente, Simão Pedro despiu-se da túnica que trazia recolhida na cintura, e, num ímpeto de coragem, lançou-se ao mar para salvar o jovem companheiro, que corria perigo de vida. Em geral, Simão Pedro era medroso e hesitante, mas, às vezes, costumava ter certos rompantes de coragem, desafiando perigos iminentes. Nadou até João, agarrou-o com seus braços rijos e fortes e arrastou-o até a praia. Todos ficaram admirados, e perguntavam-se de onde Simão tinha conseguido adquirir tamanha força e coragem para realizar semelhante proeza. Ele foi recebido na aldeia como herói e o jovem João ficou eternamente grato ao companheiro por ter salvado a sua vida. A partir desse dia, uma estreita amizade se estabeleceu entre os dois, e Simão Pedro passou a considerar João como um de seus filhos.
João também recordou que, alguns anos mais tarde, ele havia vivenciado uma experiência semelhante. Certa tarde, ele estava atravessando o lago num barco, com Jesus e alguns de seus discípulos (cf. Mc 4,35-41 par). Jesus estava extremamente fatigado, pois tinha pregado para o povo durante o dia inteiro. Ele, então, reclinou a cabeça num travesseiro que havia na parte de trás da embarcação, e mergulhou num sono profundo. De repente, um vento forte começou a soprar com grande intensidade; o mar se tornou agitado e grandes ondas eram lançadas para dentro do barco. João imediatamente reviveu a experiência da sua adolescência. Temeu ser, novamente, arremessado para dentro do mar, como havia acontecido naquele dia, em que fora salvo por Simão Pedro. Ficou ainda mais apavorado quando percebeu que Jesus continuava dormindo, parecendo não se importar com o que estava acontecendo. Então ele e seus companheiros, que também estavam com muito medo, foram até Jesus e o acordaram dizendo:
“Mestre, não te importa que pereçamos?”. Levantando-se, ele conjurou severamente o vento e disse ao mar: “Silêncio! Quieto!”. Logo o vento serenou, e houve grande bonança (Mc 4,38-39).
Recordando esse episódio, João compreendeu que, todas as vezes que ele e seus companheiros tivessem que enfrentar uma situação difícil, poderiam contar sempre com a presença de Jesus, mesmo quando Ele parecesse estar dormindo. A partir de então, encheu-se de confiança de que haveriam de sair sãos e salvos da prisão em que se achavam confinados, correndo perigo de vida.
1 O tronco eram entraves fixados na parede, usados para impedir a fuga dos prisioneiros.
2 De acordo com a lei, não se podia dar mais de quarenta golpes; por isso limitavam a 39, em caso de errarem na contagem. Em geral, os judeus castigavam com varas, enquanto os romanos usavam tiras de couro e correntes de ferro, às vezes entrelaçados com espinhos, pedacinhos de osso, ou botões. Esta flagelação foi executada em Jesus (cf. Mt 27,26 par), provavelmente em público, diante do pretório.
3 Os escribas ou doutores da Lei eram estudiosos e intérpretes das Escrituras. Ocupavam um lugar de destaque na vida judaica, exercendo as funções de teólogos e juristas.
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