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Capítulo 7
OS FILHOS DO TROVÃO
Em Jerusalém, Pedro, João, Tiago e Simão foram conduzidos novamente à sala onde o Sinédrio estava reunido. Gamaliel, herdeiro do pensamento de Hillel – representante proeminente da tendência mais liberal e humana na interpretação da Lei – tinha conseguido convencer os membros do Conselho a soltar os apóstolos, depois de mandar açoitá-los com varas (cf. At 38–42). Os quatro apóstolos foram, então, levados para uma sala ao lado, e depois que os guardas lhes arrancaram as vestes, receberam os quarenta açoites menos um. Em seguida, as autoridades judaicas os intimaram a que não falassem mais em nome de Jesus, e mandaram soltá-los.
Enquanto saíam do recinto do Sinédrio, Tiago e João se surpreenderam com o que experimentavam em seu interior. Um sentimento, misto de paz e alegria, havia tomado conta deles. Estavam contentes por terem merecido sofrer afrontas por causa do nome de Jesus. Algum tempo antes, tais sentimentos seriam inconcebíveis em relação aos filhos de Zebedeu. No mínimo estariam experimentando revolta e amargura. Os dois se entreolharam admirados com a mudança que havia se operado neles. Certamente essa transformação devia-se, em grande parte, à experiência do Espírito Santo que haviam recebido no dia de Pentecostes. Recordaram, então, o passado recente que tinham vivido na companhia de Jesus, e, enquanto caminhavam, conversavam animadamente um com o outro.
– Você se lembra daquele dia em que Jesus nos chamou, pela primeira vez, com o apelido de Boanerges, isto é, “os filhos do trovão”? – perguntou Tiago.
– Sim, respondeu João. Nós estávamos atravessando o lago de Genesaré de barco (cf. Mt 16,5ss). Nessas ocasiões, Jesus aproveitava para descansar, pois eram raros os momentos em que ficava livre do assédio das multidões (cf. Mc 4,38). Em terra, o povo nos solicitava de tal maneira que às vezes não tínhamos tempo nem mesmo de comer (cf. Mc 6,30-31). Estávamos cansados e famintos, e quando procuramos pelos pães que costumávamos levar, percebemos que não havia nenhum no barco.
– Nós dois, então, ficamos indignados – prosseguiu Tiago. Imediatamente procuramos Judas Iscariotes, que era o encarregado de guardar a bolsa comum (cf. Jo 13,29), para responsabilizá-lo por ter se esquecido de comprar os pães. Uma grande discussão surgiu entre nós, pois Judas não aceitava de maneira alguma ser acusado de negligência sozinho. Ele dizia que todos nós éramos responsáveis. Diante da celeuma que havia se formado, Jesus despertou e aproximou-se de nós para saber o que estava ocorrendo.
– Foi então que todos olharam na nossa direção – retrucou João. Jesus voltou-se e, fixando em nós o seu olhar sereno e profundo, exclamou com um leve sorriso: Boanerges, “os filhos do trovão!”. A princípio eu fiquei envergonhado por haver provocado uma tempestade num copo d’água. Mas, depois, até que gostei do apelido. Acho que Jesus falava de maneira delicada e carinhosa. Ele sempre demonstrou por nós uma amizade especial e grande consideração. Nós fomos os únicos, juntamente com Pedro, que presenciamos a sua transfiguração no alto de um monte na Galileia (cf. Mc 9,2), a cura da filha de Jairo (cf. Mc 5,37) e a sua oração angustiada ao Pai no Getsêmani, na noite em que foi detido (cf. Mc 14,33).
– Eu penso que ele tinha razão de nos tratar com este apelido – prosseguiu Tiago. Lembro-me de outros acontecimentos que justificam esse tratamento por parte dele em relação a nós.
Os dois irmãos, então, prosseguiram conversando sobre outros episódios que comprovavam o quanto eles possuíam um caráter impetuoso e impulsivo. João referiu-se à ocasião em que Jesus enviou seus discípulos e discípulas, dois a dois, para anunciar o Reino de Deus a toda cidade e aldeia aonde ele próprio devia ir (cf. Lc 10,1ss). Ele e Tiago haviam entrado numa aldeia, quando se depararam com um grupo de pessoas reunidas em torno de um homem que tentava realizar um exorcismo (cf. Lc 9,49-50). O endemoninhado, no meio do povo, desafiava o exorcista e este ordenava que o demônio o deixasse, usando o nome de Jesus. Jesus era um exorcista de prestígio tão extraordinário que muitos utilizavam seu nome como meio poderoso para expulsar demônios.
– Ao vermos aquela cena, ficamos indignados – disse João. Aquele homem não fazia parte do grupo dos discípulos de Jesus, não era um dos nossos e, portanto, não poderia usar o nome de Jesus daquela maneira. Imediatamente nós nos aproximamos do exorcista e tentamos impedi-lo de prosseguir a sua atividade libertadora. O exorcista, porém, não deu ouvidos às nossas reclamações, e continuou realizando a sua tarefa, até que o endemoninhado fosse libertado.
– Foi então que, percebendo que o endemoninhado tinha sido curado, nós resolvemos contar a Jesus o que havia acontecido – acrescentou Tiago. Certamente Jesus haveria de nos dar razão, proibindo aquele homem de usar seu nome, ao realizar seus exorcismos. Quando retornamos da missão, fomos imediatamente ao encontro de Jesus.
João tomou a palavra e disse: “Mestre, vimos alguém expulsar demônios em teu nome e quisemos impedi-lo porque ele não te segue conosco” (Lc 9,49).
– Ficamos surpresos ao escutar a resposta de Jesus, disse João: “Não o impeçais, pois quem não é contra vós está a vosso favor” (Lc 9,50).
– Compreendemos, então, o quanto Jesus, ao contrário de alguns de nós, não era sectário, nem intolerante, mas possuidor de uma mentalidade aberta, capaz de acolher e respeitar o diferente – concluiu Tiago.
– Compreendemos também que, embora Jesus se parecesse com os exorcistas de seu tempo, ele se diferenciava deles; pois, ao contrário da prática geral dos exorcistas que conjuravam os demônios em nome de alguma divindade ou personagem sagrada,1 Jesus os enfrentava com a força da sua palavra – disse João. Ele não utilizava os recursos usados pelos outros exorcistas: anéis, amuletos, incenso, leite humano, cabelos. A força de Jesus estava na sua própria pessoa. Bastava sua presença e o poder de sua palavra para impor-se, pois estava convencido de estar atuando com a força de Deus.
– Os exorcismos de Jesus eram, portanto, sinais do Reino de Deus que ele anunciava, completou Tiago. Seu esforço por libertar os endemoninhados era uma vitória sobre as forças do mal que os oprimiam, e o melhor sinal de que estava chegando o Reinado de Deus, que quer uma vida mais justa, sadia e libertada para seus filhos e filhas.
– Lembro-me que noutra ocasião – retrucou João –, discutindo com seus opositores, Jesus dissera:
“Ninguém pode entrar na casa de um homem forte e roubar os seus pertences, se primeiro não amarrar o homem forte; só então poderá roubar a sua casa” (Mc 3,27).
– Essas palavras de Jesus significavam que ele via nos seus exorcismos uma forma de “amarrar” o maligno e controlar sua força destruidora – acrescentou Tiago. Essa prática suscitava esperanças, pois se tratava de ações simbólicas. Os exorcismos de Jesus punham em questão a dominação estrangeira, a ordem estabelecida no campo da política colaboracionista das classes aristocráticas, a ideologia dominante – principalmente o código de pureza que discriminava os enfermos – e a ordem econômica que excluía as multidões. Dessa maneira, as atividades de cura e exorcismo de Jesus eram vistas pelos governantes ou representantes oficiais como uma ameaça à ordem estabelecida. Pois, já que Satanás estava sendo derrotado, isso significava que uma libertação e renovação mais amplas, no campo da sociedade, eram agora possíveis.
Os dois irmãos conversaram também sobre o episódio que ocorrera durante a última viagem de Jesus e seus discípulos e discípulas a Jerusalém. Tiago e João tinham sido enviados adiante por Jesus, a fim de preparar um lugar onde pudessem se hospedar (Lc 9,51-55). Nessa ocasião, Jesus decidira passar pela Samaria.
A Samaria era uma região que ficava situada entre a Judeia e a Galileia. A população do lugar era desprezada pelos judeus, por ter, durante muitos anos, se misturado com povos pagãos. Os samaritanos provinham da união entre os colonizadores assírios e as mulheres israelitas, que não haviam sido deportadas para a Assíria após a destruição do reino do Norte, em 721 a.C. Ao retornar do exílio da Babilônia, em 537 a.C., os judeus os excluíram do “povo eleito”, devido à sua origem impura e à sua observância pouco estrita da religião judaica. Na época de Jesus, havia uma inimizade ferrenha entre os judeus e os samaritanos. Estes haviam construído seu próprio templo, no monte Garizim. Mesmo depois da destruição desse templo, no ano 129 a.C., os samaritanos continuaram a considerar o monte Garizim como seu local de culto (cf. Jo 4,20). A inimizade entre judeus e samaritanos era recíproca: os judeus procuravam mantê-los à distância e não se comunicavam com eles (cf. Jo 4,9), enquanto os samaritanos incomodavam os peregrinos judeus que iam a Jerusalém e passavam pelo seu território (cf. Lc 9,52-54). O ódio entre os dois povos cresceu quando, entre os anos 6 e 9 d.C., na véspera da festa da Páscoa, um grupo de samaritanos espalhou pelo Templo ossos de mortos, deixando-o impuro para qualquer celebração.
Ao alcançar a Samaria, Tiago e João entraram num povoado. Os samaritanos, ao perceberem que Jesus e suas discípulas e discípulos caminhavam para Jerusalém, resolveram negar-lhes hospedagem. Os dois irmãos reagiram com grande indignação. Foram até Jesus e lhe disseram:
– Senhor, queres que ordenemos que desça fogo do céu para consumi-los? (Lc 9,54)
Jesus, porém, os repreendeu com veemência, e, em seguida, eles partiram para outro povoado. Os “filhos do trovão” compreenderam então que Jesus, que pregava o perdão e o amor aos inimigos (cf. Mt 5,38-48), era contrário ao uso da violência e ao espírito de vingança.
Ao chegarem perto do lugar para onde se dirigiam, Tiago perguntou ao irmão:
– Você lembra aquele dia em que, estando em Jericó, alguns dos discípulos nos trouxeram a notícia de que Pilatos havia mandado massacrar peregrinos galileus, que tinham ido ao Templo para oferecer sacrifícios (cf. Lc 13,1ss)?
– Sim, respondeu João, lembro-me perfeitamente desse incidente. Parece que, no meio dos peregrinos, havia alguns salteadores armados. Pilatos, informado do que acontecia, enviou um destacamento de soldados romanos para revistar o grupo de galileus à procura de armas. Constatando que alguns estavam armados, os soldados agiram com violência. Vários peregrinos foram mortos; muitos deles pessoas inocentes, que se encontravam nos átrios do Templo.2
– Ao saber dessa notícia, sugerimos a Jesus que seria mais prudente adquirirmos algumas armas, antes de entrarmos em Jerusalém – acrescentou Tiago. Jesus, porém, não concordou com a nossa ideia. Apenas Simão, o Zelota, e também Simão Pedro possuíam, cada qual, uma espada (cf. Lc 22,38; Jo 18,10).
– Ainda bem que, por ocasião da prisão de Jesus, estávamos desarmados. Certamente nós, “os filhos do trovão”, teríamos reagido de maneira desastrosa se tivéssemos espadas. Essa reação teria sido a nossa ruína.
– O único jeito então foi fugir – concluiu Tiago –, pois do contrário teríamos sido todos presos juntamente com Jesus.
Em seguida, os dois irmãos chegaram ao seu destino. Tinham ido até a casa do carcereiro e levita Jasão. Este acolheu Tiago e João com alegria, e lhes lavou as feridas causadas pelos açoites que haviam recebido. Depois, ele e todos os seus familiares foram batizados. Jasão, então, preparou-lhes um jantar e regozijou-se, juntamente com todos os de sua casa, por terem acreditado em Jesus.
1 O nome sagrado mais utilizado pelos exorcistas daquela época era o de Salomão. Flávio Josefo confirma a reputação de Salomão como conhecedor de ciências ocultas, perito em exorcismos. Ele era famoso como homem favorecido por Deus e de virtude extraordinária (cf. Antiguidades Judaicas VIII,46-49).
2 A sede principal das correntes contra os romanos e das ideias messiânicas era a Galileia. De acordo com Flávio Josefo, os galileus eram “belicosos desde pequenos” e por isso eram suspeitos de subversão à ordem político-religiosa (cf. Guerra Judaica III,3,2).
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