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Capítulo 5
OS SALTEADORES DAS CAVERNAS
Enquanto estava sendo levado para comparecer diante do Sinédrio, Tiago distinguiu um rosto conhecido que se destacava no meio da multidão. Era o de seu amigo Barrabás. O que estaria ele fazendo ali naquele momento? Teria ele escutado a pregação de Pedro? O que havia feito desde que fora libertado por Pilatos no dia da execução de Jesus? Teria voltado a se unir ao seu grupo de salteadores que viviam nas cavernas? Essas eram perguntas para as quais, naquelas circunstâncias, ele não poderia obter respostas. Certamente Barrabás estava correndo um grande risco ao voltar a Jerusalém. Tiago então se propôs procurá-lo, se Deus lhe permitisse escapar da prisão, logo que houvesse uma oportunidade para isso.
Tiago havia conhecido Barrabás, e se tornado seu amigo, durante o período em que morou em Séforis, trabalhando como operário na reconstrução daquela cidade.
Tudo começou no dia em que fora a Jerusalém para participar da festa do Yom Kippur, o dia da Expiação, que se realizava no outono. Essa festa coincidia com a época da colheita das uvas e, por isso, era regada com muito vinho. Nessa ocasião, o povo se reunia nos vinhedos das cercanias de Jerusalém, onde se realizavam várias danças em que as jovens se exibiam diante dos rapazes. Mesmo as moças das melhores famílias também participavam desses festejos, inclusive as filhas do rei e do sumo sacerdote.1
Durante as danças, uma jovem, chamada Judite, conquistou o coração de Tiago de tal maneira que ele imediatamente dirigiu-se ao pai da jovem, um rico comerciante da cidade chamado Ezequiel, e pediu a mão dela em casamento. Ezequiel, sob o efeito de vários copos de vinho doce, logo concedeu o que Tiago lhe pedia.
Judite prontamente concordou em se casar com Tiago, pois também ela ficara completamente enamorada dele.
No dia seguinte, Tiago foi à casa de Ezequiel e lhe pediu um prazo de alguns meses para iniciar o noivado. Desta vez, já sóbrio, Ezequiel concordou com ele dizendo:
– O que prometi será cumprido. Não sou homem de quebrar promessas.
– Necessito de mais tempo para adquirir a quantia que devo lhe conceder pela mão de sua filha. As minhas economias não são suficientes para o que preciso lhe pagar, disse Tiago.
De fato, o “mohar” (o preço da noiva), a quantia que o rapaz dava ao pai da noiva por ocasião do noivado, variava de acordo com o lugar e a condição social da jovem. Em Jerusalém, o preço estipulado era maior do que no restante do país, e ainda mais se tratando de um homem rico como Ezequiel.2
Tiago combinou com ele um prazo de seis meses. Partiu para Séforis e ali se sujeitou a uma vida dura, realizando, como empreiteiro de obras, os trabalhos mais pesados. Porém, para ganhar o amor de Judite, estava disposto a enfrentar qualquer sacrifício. Depois de conseguir ganhar o suficiente, voltou a Jerusalém para a realização do noivado. Um ano depois, os dois jovens se casaram e Judite foi morar com Tiago em Betsaida.
Assim, enquanto residia em Séforis, Tiago fez amizade com Barrabás, que era natural daquela cidade.
Séforis, situada a menos de seis quilômetros a noroeste de Nazaré, havia sido tomada por Herodes Magno no inverno de 39/38 a.C., que a manteve como um quartel general no norte do seu reino. Com a morte de Herodes, no ano 4 a.C., a região da Palestina entrou num período de grande instabilidade. Diversas rebeliões populares nacionalistas estouraram por toda parte. O povo tinha a esperança de se libertar da forte opressão dos romanos e da dinastia herodiana. Um judeu, chamado Judas, filho de Ezequias,3 comandou uma revolta dos habitantes de Séforis, que o governador romano da Síria, Quintilio Varo, esmagou com sangue e fogo. A cidade foi saqueada e queimada por soldados romanos, grande parte da sua população foi vendida como escrava e Judas e seus companheiros foram crucificados. Herodes Antipas, logo depois de ter herdado a Galileia e a Pereia após a morte de seu pai, começou a reconstruir a cidade que foi sede do seu governo, até que fosse construída a cidade de Tiberíades, no ano 17 d.C.
Durante esses acontecimentos, a família de Barrabás perdeu tudo o que possuía. Seu pai, que era um próspero comerciante de cereais, teve sua casa e seus bens saqueados pelos soldados romanos. Eles conseguiram escapar para Giscala, no norte da Galileia. Depois de alguns anos, Barrabás voltou para Séforis, a fim de trabalhar na sua reconstrução. Enquanto ali trabalhavam, Tiago e Barrabás se tornaram grandes amigos.
Um dia, Barrabás desapareceu da cidade e Tiago ficou sabendo que ele havia fugido para as cavernas dos escarpados penhascos, que ficavam perto da aldeia de Arbela. Ele pretendia se engajar num grupo de salteadores que ali se reuniam, para resistir às forças de ocupação. Esses grupos surgiam como forma de reação dos camponeses, principalmente da Galileia, à situação de opressão em que viviam.
Tentando atender às pesadas exigências tributárias do violento governo de Herodes Antipas, e também às cobranças dos impostos religiosos, os camponeses galileus enredavam-se em empréstimos oferecidos principalmente por funcionários da administração herodiana e aristocratas sacerdotais, dando a própria terra, sua fonte de sobrevivência que devia ser inegociável, como garantia de pagamento. O mecanismo através do qual se perdia a terra era, portanto, o endividamento. Esse gradativo processo de endividamento conduziu grande parte da classe camponesa à completa miséria. Enquanto a aristocracia vivia luxuosamente e poucos proprietários enriqueciam acumulando posses, entre os camponeses o empobrecimento era desesperador. Em determinados momentos, quem conseguia ao menos uma ocupação arrendando a terra de algum fazendeiro tinha que se dar por satisfeito. Pois, tantos outros camponeses, menos afortunados, vendiam-se como escravos ou tornavam-se marginais, vendo-se obrigados a recorrer à mendicância ou mesmo ao banditismo, fenômeno que alcançou proporções epidêmicas em certos períodos da dominação romana na região.4
Esses salteadores atacavam de preferência os ricos proprietários judeus de terras e representantes da dominação estrangeira. Resistindo pessoalmente à injustiça, eles se tornavam ocasião para que outros camponeses, que os apoiavam e protegiam, resistissem àqueles que detinham o poder. Sendo lutadores por justiça, assumiam a atitude de corrigir o que estava errado, “tirando dos ricos para dar aos pobres”. Alguns grupos chegavam a atiçar a inimizade contra os pagãos e a incentivar constantes sublevações. Os romanos os consideravam ladrões e bandidos contra os quais se procurava agir com toda a dureza e rigor.
Quando Tiago era criança, seu pai costumava contar como o rei Herodes Magno havia lutado contra esses salteadores. Herodes, com sua força militar superior, conseguiu matar muitos dos bandidos e rechaçar outros, para além do rio Jordão. Os que escaparam refugiaram-se na sua fortaleza quase inacessível nas cavernas. Herodes, porém, descobriu um meio de atacá-los. Enviou os mais valentes de seus homens em grandes cestos amarrados com cordas até as entradas das cavernas. Ali os soldados lançavam tochas contra todos os que ofereciam resistência. Muitos preferiam a morte à prisão. Entre os resistentes, se encontrava um ancião com mulher e sete filhos. Ele ficou na entrada da caverna e matou cada um dos seus filhos à medida que apareciam na boca da caverna. Finalmente matou a própria mulher, atirou os cadáveres no abismo e precipitou-se a seguir lá de cima.5
Alguns anos mais tarde, Tiago se deu conta do quanto Jesus de Nazaré estava comprometido na luta pela reestruturação de uma sociedade igualitária, que promovesse a redistribuição justa de riquezas. Tudo isso, através de um movimento que se dedicava às curas, exorcismos, e à proclamação do Reino de Deus, que tinha uma perspectiva escatológica6, mas também presente.
Isso aconteceu um dia, quando Jesus saía de Jericó, acompanhado de seu grupo de discípulos e discípulas. Um cego chamado Bartimeu, que estava sentado à beira do caminho mendigando, sabendo que Jesus passava por ali, começou a gritar para que ele o curasse: “Jesus, Filho de Davi, tem piedade de mim” (cf. Mc 10,46-52 par). À vista daquela cena, Tiago encheu-se de compaixão, pois, considerados abandonados por Deus e excluídos do convívio social, os enfermos constituíam o setor mais marginalizado da sociedade. As pessoas viam ordinariamente na cegueira, ou em qualquer outro tipo de enfermidade grave, o castigo de Deus por algum pecado ou infidelidade. Muitos doentes eram excluídos, não só do Templo, mas também da cidade de Jerusalém. Pelo contrário, a cura sempre era vista como uma bênção de Deus. Por isso, todo enfermo ansiava por libertar-se um dia de seu mal, a fim de desfrutar novamente de uma vida digna.
Tiago sabia que o olhar de Jesus se dirigia, em primeiro lugar, aos que sofriam a enfermidade ou o desamparo, e ansiavam por mais vida e saúde. As pessoas viam nele não tanto um hasid,7 no estilo dos homens piedosos da época, como Honi ou Hanina ben Dosa, que curavam pela eficácia da sua oração, mas como um profeta, que, em virtude do Espírito de Deus, curava dando uma ordem ou realizando um gesto. As curas operadas por Jesus faziam parte de sua proclamação do Reino de Deus. Dessa maneira, ele anunciava a grande notícia: Deus está chegando, e os mais desgraçados já podem experimentar o seu amor misericordioso. Por isso, para Jesus, curar era a sua forma de amar. Na raiz da sua força curadora e inspirando toda a sua atuação estava sempre o seu amor compassivo.8
Ao escutar Bartimeu gritar para que Jesus o curasse, Tiago desejou ardentemente que isso acontecesse. Porém, alguns dos discípulos começaram a repreender o cego para que ele se calasse, pois Jesus os havia instruído para que não permitissem que ninguém o chamasse de “Filho de Davi”. Certamente esse tratamento poderia dar margem a uma interpretação equivocada sobre o seu papel messiânico. Jesus não queria que o povo o considerasse simplesmente um messias político, que haveria de expulsar os romanos, assumindo o trono de Davi. Contudo, quanto mais proibiam o cego, mais ele gritava para que Jesus dele tivesse piedade. Foi então que, movido por um sentimento de grande compaixão, Tiago correu até Jesus para interceder por ele. Jesus deteve-se e, olhando para Tiago, ordenou-lhe:
– Chamai-o! (Mc 10, 49).
Imediatamente, Tiago correu até Bartimeu e disse-lhe:
– Coragem! Ele te chama. Levanta-te (Mc 10,49).
O cego, mais que depressa, deixou a sua capa e se pôs de pé. Tiago, então, o conduziu até Jesus.
Enquanto assim o fazia, Tiago compreendeu que a ação de Jesus para com ele, curando-o, era muito mais eficaz do que se lhe tivesse dado uma simples esmola; pois, curado, Bartimeu poderia exercer um trabalho digno, deixando de mendigar para poder sobreviver. Compreendeu também que, nos “atos e palavras” de Jesus, Deus tocava as pessoas nas situações mais concretas da vida. As curas operadas por ele eram também “atos de poder” para com os indivíduos e as comunidades, e não simples milagres ou magia. Elas eram, portanto, “sinais” do que poderia ser a vida humana em sociedade se Deus fosse de fato o “Senhor da vida”; se a vida humana fosse organizada segundo o reinado de Deus, o que Deus sonha para os seus filhos e filhas.
Depois de curado, Bartimeu tornou-se o agente de sua própria libertação, caminhando com seus próprios pés e seguindo Jesus pelo caminho (cf. Mc 10,52).
Em Jerusalém, os guardas conduziram os apóstolos Pedro, Tiago, João e Simão, o Zelota, diante do Sinédrio (cf. At 5,27-33). Caifás levantou-se no meio da assembleia e disse:
– Apesar de nós termos proibido expressamente a vocês de ensinar em nome de Jesus, vocês continuaram pregando a doutrina de vocês e nos tornando responsáveis pela morte dele.
Pedro, então, tomou a palavra e retrucou:
– Devemos obedecer antes a Deus do que aos homens.
Em seguida, Simão acrescentou:
– Vocês mataram Jesus, suspendendo-o numa cruz, mas Deus o ressuscitou, tornando-o Chefe Supremo e Salvador. Ele dá a quem nele crer a oportunidade de se arrepender e receber o perdão dos pecados.
Tiago e João concluíram:
– E disso somos testemunhas, nós e o Espírito Santo, que Deus concedeu àqueles que lhe obedecem.
Ao ouvir essas palavras, os membros do Sinédrio se enfureceram e decidiram que os apóstolos deveriam morrer.
1 Essas danças realizavam-se duas vezes por ano, em 15 ab (julho-agosto) e no dia da Expiação, 10 de tishri (setembro-outubro). Elas eram reminiscências dos ritos da festa do casamento de Marduc, celebrada na Babilônia, por ocasião da festa do Ano Novo (cf. Jeremias, op. cit., p. 476-477).
2 Ibidem, p. 171.
3 Este Judas não é o mesmo Judas, o Galileu, que liderou o movimento de resistência, não violento, contra a cobrança de impostos pelo Império Romano, no ano 6 d.C. (cf. cap. III, acima). Também não confundir com Judas, Iscariotes, um dos doze discípulos de Jesus, considerado o traidor.
4 Os efeitos desta dominação consumaram-se catastróficos para os judeus, a ponto de resultar na guerra entre os dois Estados em 66-70 d.C., com a subsequente destruição de Jerusalém e de toda a Judeia, pelas legiões romanas comandadas pelo general Tito.
5 Este episódio é narrado por Flávio Josefo em Guerra Judaica 1.304-13; Antiguidades 14.415-30.
6 Relativo às coisas que deverão acontecer no final dos tempos.
7 Cf. acima, nota 15, p. 33.
8 Cf. José Antônio PAGOLA, Jesus, aproximação histórica, Petrópolis, Vozes, 2010, p. 191-203.
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