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    • Tempestades e Calmarias: a História de Tiago e João
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Capítulo 8

O PODER COMO SERVIÇO

Enquanto estavam em Jerusalém, Tiago e João, juntamente com os outros apóstolos, foram informados das queixas das viúvas dos cristãos helenistas.1 Elas diziam que estavam sendo negligenciadas na distribuição dos bens que a comunidade destinava aos pobres. Nesse serviço, as viúvas dos cristãos hebreus eram assistidas, enquanto as dos helenistas eram deixadas de lado (cf. At 6,1-7). Nessa ocasião, os membros da comunidade de Jerusalém viviam muito unidos, e tudo o que possuíam era colocado em comum (cf. At 2,42-47). Os doze apóstolos2 estavam encarregados da gestão desses bens. Eles costumavam realizar esse serviço de distribuição deles, durante as refeições que aconteciam nas casas, juntamente com a celebração da Eucaristia e, por isso, ele era chamado de “serviço das mesas” (At 6,2).

Devido ao grande crescimento no número de fiéis, os doze apóstolos, como tinham outros encargos mais importantes, entre eles o da pregação da Palavra, não conseguiam mais atender a todos os pobres. Sendo os Doze, todos eles, do grupo dos hebreus, priorizavam as viúvas do seu grupo, deixando de lado as dos helenistas. Ao tomar conhecimento desse fato, os apóstolos convocaram a assembleia dos discípulos e discípulas para resolverem, todos juntos, o problema que se criara no interior da comunidade. Todos julgavam que não seria bom que os Doze assumissem mais esse encargo, sacrificando a sua missão primordial que era a de presidir às orações e de anunciar a Palavra de Deus. Os Doze, então, sugeriram que a assembleia escolhesse sete homens, que seriam encarregados por eles, de realizar esse serviço. Assim foi formado o grupo dos Sete servidores.

Depois da reunião, enquanto Tiago e João se dirigiam ao local onde deveriam fazer uma pregação, recordaram o dia em que Jesus havia escolhido doze, dentre os seus discípulos, para ficarem com ele e serem enviados em missão (cf. Mc 3,13-19 par).

Naquela ocasião, Jesus exercia um poder de atração muito grande sobre as pessoas. Uma numerosa multidão o acompanhava. Ele suscitava esperança e entusiasmo entre aqueles que ouviam a sua pregação. Muitos levavam a ele seus familiares enfermos ou lhe pediam que fosse às suas casas para curar algum ente querido. Jesus mobilizava as pessoas e provocava admiração e entusiasmo. Sua popularidade nunca diminuiu e permaneceu florescente até os últimos dias de sua vida. Havia, porém, pessoas, homens e mulheres, que abandonavam sua casa e sua família, para acompanhá-lo em sua vida itinerante, colaborando com ele de diversas maneiras. Esses discípulos e discípulas o seguiam por toda parte, e aderiam à pessoa de Jesus, participando da sua vida e missão. Outros eram discípulos sedentários, pois não abandonavam sua casa e família, mas constituíam “grupos de apoio”, oferecendo a Jesus, e aos seus seguidores e seguidoras, alojamento, comida, informações e todo tipo de ajuda, quando estes chegavam às suas aldeias (cf. Lc 10,38-42). Finalmente havia o grupo dos Doze. Esse número “doze” significa que Jesus tinha a intenção de criar o novo Povo de Deus constituído sobre o primeiro Povo de Deus, fundado sobre as doze tribos de Israel.

Naquele dia, Jesus, como costumava fazer de vez em quando, retirou-se a uma montanha, e ali passou a noite inteira em oração. Ele havia dito aos seus discípulos e discípulas que fossem ao seu encontro logo que o dia amanhecesse. Bem cedo, cerca de pouco mais de cinquenta pessoas se reuniram em torno dele. Era uma manhã amena de primavera e a vista que se descortinava do alto do monte era deslumbrante. Nos vales de Jezrael e Bet Netofa, as plantações de trigo e cevada, repletas de espigas amadurecidas para a colheita, dardejavam ao sol. As figueiras e romãzeiras estavam carregadas de frutos, e uma grande quantidade de vinhedos florescia nas encostas escarpadas. Centenas de anêmonas vermelhas, ou flores do campo, cobriam a montanha e um manancial de águas cristalinas jorrava abundante, fertilizando a terra.

– Entre os que estavam reunidos – disse Tiago –, encontravam-se Matias, José Barsabás, a quem chamamos de “o Justo”,3 Jonas, a quem Jesus havia curado de uma paralisia (cf. Mc 2,1-12 par), Samuel, o homem da mão seca, curado por Jesus na sinagoga de Cafarnaum (cf. Mc 3,1-6 par) e muitos outros discípulos.

– O grupo das mulheres discípulas, que seguiam a Jesus, encontrava-se ali em peso, acrescentou João. Maria Madalena, Joana, Susana (cf. Lc 8,1-3); nossa mãe, Salomé; Sara, a sogra de Simão Pedro; Maria, mulher de Clopas (cf. Jo 19,25); Dina e várias outras. Logo pensei que aquele deveria ser um acontecimento muito importante, pois a mãe de Jesus também ali se encontrava. Ela sempre estava presente nos momentos mais importantes da vida dele.

– Jesus, então, disse que tinha decidido escolher doze discípulos para formarem um grupo especial – continuou Tiago. Eles representariam os doze filhos de Jacó; por isso, as mulheres não participariam desse grupo. Os doze escolhidos fariam parte de um círculo mais íntimo e o acompanhariam em todos os momentos. Naquela ocasião eu não compreendi toda a extensão do significado desse grupo, mas desejei ardentemente fazer parte dele.

– Eu fiquei muito ansioso quando Jesus começou a nomear os nomes dos Doze, um a um, disse João, pois também desejei ser um dos escolhidos. O primeiro a quem ele chamou foi Judas Iscariotes. Jesus admirava Judas pelo seu zelo e coragem. Ele parecia demonstrar grande apreço por aqueles que fossem capazes de arriscar a própria vida por uma causa justa, como Judas havia feito. Em seguida, ele nomeou Simão Pedro e seu irmão André. Depois escolheu Natanael, Tomé e Tadeu.

– Quando Jesus escolheu Levi, o cobrador de impostos, todos ficaram admirados; mas logo em seguida ele chamou Simão, o Zelota. Acho que ele queria nos mostrar que, no Reino de Deus, deve ser possível a convivência entre pessoas muito diferentes. Ele sempre acolhia pessoas indesejáveis como os pecadores, publicanos e prostitutas. Quando ele chamou Tiago, filho de Alfeu, Maria, a esposa de Clopas, certamente deve ter desejado que ele escolhesse um de seus filhos, Tiago, o menor, e Joset (cf. Jo 19,35; Mc 15,40).4 Mas, em vez disso, ele escolheu nosso companheiro Filipe, pescador de Betsaida.

– Finalmente, faltavam apenas dois nomes. Respiramos aliviados quando ele anunciou: “Tiago e João, os filhos de Zebedeu”. Assim o número dos Doze estava completo. Penso que ele nos deixou para o final, a fim de testar a nossa paciência. Sabia muito bem o quanto éramos apressados e impulsivos – concluiu João, esboçando um leve sorriso.

Os dois irmãos, também, recordaram que, ao terminar de nomear os doze discípulos, Maria, a Mãe de Jesus, aproximou-se dele para saudá-lo. Jesus beijou-lhe as duas mãos dizendo:

Paz sobre as tuas mãos, mãe.

Maria replicou:

Fizeste uma boa escolha, meu filho.5

Jesus, então, abraçou-a com carinho. Todos estavam contentes.

Tiago e João conversaram, então, sobre as orientações que Jesus costumava dar a respeito de liderança. Para Jesus, os líderes da comunidade deveriam estar sempre a serviço uns dos outros. Eles deveriam exercer a liderança não como dominação, mas como serviço, isto é, como renúncia ao querer ser grande e a dominar.6

– Você lembra – perguntou Tiago a João –, da última viagem que fizemos a Jerusalém? Pensávamos que Jesus haveria de inaugurar o reino messiânico. Não sabíamos muito bem como isso iria acontecer, mas certamente acreditávamos que ele era o Ungido de Deus. Os romanos seriam expulsos e Jesus fundaria o reino da glória.

– Penso que todos nós tínhamos, mais ou menos, a mesma ideia em relação a isso – disse João. Lembro-me que nossa mãe, Salomé, ficou orgulhosa com a possibilidade de ter dois dos seus filhos ocupando lugares de destaque no reino inaugurado por Jesus (cf. Mt 20,20-28).

– Mas a ideia de fazer o pedido a Jesus não partiu dela (cf. Mc 10,35-45) – acrescentou Tiago. Ela dizia que seria melhor deixarmos a escolha a critério de Jesus.

– Nós, porém, achávamos que, se fizéssemos esse pedido a Jesus, ele haveria de nos atender. Por isso, um dia, nos aproximamos dele e pedimos para sentarmos um à sua direita e o outro à sua esquerda, quando ele tivesse restaurado o reino em Israel.

– A resposta de Jesus nos deixou desconsertados. Não dependia dele conceder o lugar à sua direita ou esquerda, mas Deus é quem daria esses lugares àqueles para os quais ele havia preparado.

– Lembro-me que o nosso pedido suscitou discórdia e competição entre nós. Os nossos companheiros ficaram indignados contra nós, disse João. Certamente todos nós, naquela ocasião, sonhávamos com poder e honrarias.

– Jesus, então, chamou todos os seus discípulos e discípulas e lhes disse:

Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não será assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor, e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir (Mc 10, 42-45a par).

– Com essas palavras, Jesus estava dizendo que o verdadeiro líder não é aquele que domina, mas aquele que serve, concluiu João. Ele também denunciava todo poder que oprime e escraviza, incluindo o dos romanos que dominam nosso país. Ele propunha para nós, seus seguidores e seguidoras, outro tipo de poder: um poder que é serviço e que promove e liberta. Dessa maneira, ele se opunha a qualquer tipo de dominação e tirania, e pregava a formação de uma sociedade livre, fraterna e igualitária.

Os filhos de Zebedeu conversaram também sobre a ocasião em que Jesus entrou em Jerusalém, montado num jumento.

– Através daquele gesto simbólico – disse João –, ele anunciava um reino de paz e justiça para todos, e não um império construído com violência e opressão (cf. Mc 11,1-11 par). E como pretendente messiânico, ele entrava em Jerusalém; pois sabemos que qualquer movimento messiânico tem como fito alcançar Jerusalém, o centro do poder político e religioso da nossa nação.

– Jesus tinha consciência de ser o plenipotenciário do Reino de Deus – acrescentou Tiago. Através daquela ação profética, ele anunciava que estava sendo enviado por Deus, para proclamar o Reino de Deus, cumprindo assim a missão que Deus lhe confiara. Agora compreendemos por que ele veio montado num jumento. Ele queria mostrar que entrava em Jerusalém, não como um messias guerreiro, o rei davídico de Israel, mas como um mensageiro de paz, o Ungido de Deus, aquele que cumpria a profecia de Zacarias: “Eis que vem a ti teu Rei, manso e humilde, montado num jumento e num potro, filho de animal de carga” (9,9).

– Aquele gesto profético de Jesus – concluiu João –, era uma crítica a Pilatos, que poucos dias antes havia entrado na cidade montado em seu poderoso cavalo, adornado com todos os símbolos do seu poder imperial. Jesus, porém, era o portador de uma ordem nova e diferente, oposta à ordem imposta pelos generais romanos, que entram nas cidades montados em seus cavalos de guerra.7

Quando mais tarde Jesus lavou os pés dos seus discípulos (cf. Jo 13,1-15), os dois irmãos compreenderam melhor o quanto ele desejava que seus seguidores e seguidoras exercessem o poder como serviço, e não como dominação. João jamais esqueceu esse gesto simbólico e as palavras de Jesus:

Compreendeis o que vos fiz? Vós me chamais de Mestre e Senhor e dizeis bem, pois eu o sou. Se, portanto, eu, o Mestre e o Senhor, vos lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais (Jo 13,12-15).



1 De acordo com a maneira como viviam o Judaísmo, os judeus se dividiam em duas categorias: os helenistas e os hebreus. Em geral, os helenistas eram judeus da Diáspora e, por isso, bastante influenciados pela cultura grega. Aprendiam a falar o grego e, nas sinagogas, usavam a tradução da Bíblia em grego, conhecida como Septuaginta, que significa 70 em latim, porque, de acordo com uma lenda, havia sido traduzida do hebraico para o grego por 72 eruditos. Estes realizaram seu trabalho na ilha de Faros, situada perto de Alexandria. Os hebreus haviam nascido na Palestina, falavam o aramaico e liam a Bíblia em hebraico. Porém, esse critério do local do nascimento, embora determinante, não era indispensável, pois havia judeus que haviam nascido fora da Palestina, como o apóstolo Paulo, que, antes da sua conversão ao Cristianismo, se considerava “hebreu” (cf 2Cor 11,22; Fl 3,5). Por outro lado, havia também judeus que tinham nascido na Palestina e que eram considerados helenistas, por causa da sua abertura em relação à cultura grega. Parece, portanto, que o critério fundamental para se distinguirem as duas categorias era a maneira de compreender e viver o Judaísmo, sendo os helenistas, em geral, muito mais abertos do que os hebreus.

2 Nessa ocasião, Matias já havia sido escolhido para ficar no lugar de Judas (cf. At 1,15-26).

3 Mais tarde, José Barsabás e Matias foram apresentados para substituir Judas Iscariotes no grupo dos Doze (cf. At 1,23).

4 Cf. John Paul MEIER, Um Judeu Marginal, volume 3, livro 1, p. 201. “Não há nenhum fundamento para se identificar Tiago, filho de Alfeu – como a tradição da Igreja tem feito – com Tiago, o menor”.

5 De fato, Jesus, ao escolher os seus doze discípulos, havia feito uma boa escolha. Como veremos mais adiante, Judas foi um discípulo fiel e dedicado. A sua traição não passou de um mal-entendido.

6 No grego profano, a palavra diakoneo (servir) era usada em sentido negativo e significava o trabalho de servir à mesa, realizado pelos escravos e escravas. Tinha, portanto, uma conotação de sujeição pessoal considerada indigna e desonrosa para uma pessoa livre. Jesus inverteu o significado de servir como algo desprezível, indigno e opressivo, e o serviço passou a ser a atitude do discípulo e discípula do Mestre que “não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10,45). Essa atitude de Jesus em relação à dignidade do servir é, portanto, revolucionária e constitui um aspecto importante de todo e qualquer seguimento dele.

7 O imperador romano Adriano, em conhecida visita imperial pelas províncias orientais nos anos 120-130 d.C., entrava em cidades como Filadélfia, Petra, Gerasa, Citópolis e Cesareia, montado num cavalo ritual de cor branca e com armadura cerimonial, a fim de ser recebido com hinos e discursos pelos dignitários do lugar.

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