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Santo Antônio

Uma das missões desempenhadas por Giovanni Parenti em terras portuguesas foi a criação de um convento da Ordem dos Frades Menores em Coimbra. Em algum momento entre 1217 e 1219, portanto, foi fundado o eremitério de Santo Antão – atualmente, o local é ocupado pela Igreja de Santo Antônio dos Olivais.

Santo Antão do Deserto (251-356 d.C.), conhecido pelo epíteto de “pai de todos os monges”, foi um religioso que viveu no Egito. De acordo com informações do Vaticano, sua vida “foi repleta de solidão, jejum e trabalho”. “Ao ficar órfão aos 20 anos de idade, distribuiu todos os seus bens aos pobres e retirou-se para o deserto”, relata a Santa Sé. “Ali, lutou contra as tentações do demônio e dedicou a sua vida à ascese e à oração. A ele deve-se a criação de famílias monacais, que, sob a sua direção espiritual, consagram-se ao serviço de Deus.” Antão acabou reunindo seguidores em uma comunidade que muito se assemelhava a uma ordem monástica.

Fernando sabia, evidentemente, que um grupo de franciscanos estava instalado nas proximidades. Ele, afinal, havia hospedado alguns deles e, com frequência, era quem os recebia na portaria do mosteiro quando estes vinham pedir esmolas para seu sustento. E, cada vez mais, em seu interior, cultivava o desejo de mudar de ordem, de trocar o bonito manto branco dos agostinianos pelas puídas vestes rústicas dos franciscanos.

O religioso, no entanto, tinha consciência de que não seria nada fácil. Havia o voto da estabilidade – que ele já tinha conseguido driblar uma vez, é verdade, mudando de Lisboa para Coimbra. Contudo, transferir-se de uma instituição para outra seria ainda mais complicado. Ele precisaria de anuência de seus superiores.

Depois de muito refletir, e certamente pedir que Deus o norteasse na tomada de decisão, Fernando confidenciou aos franciscanos o desejo de se tornar um deles. “Irmãos caríssimos! Desejo receber, do fundo de minha alma, o hábito da sua Ordem”, dizia o agostiniano.

Ao longo dessas conversas, muito mais teria dito: manifestou o desejo de ser enviado também em missão para a “terra dos sarracenos”, porque queria ele “merecer partilhar da coroa dos mártires”, conforme relata a Legenda assídua. Os frades menores não disfarçavam; a ideia lhes parecia muito interessante. Sabiam do caráter de Fernando e já cultivavam com ele uma amizade fraterna.

De acordo com o regulamento dos agostinianos, entretanto, uma autorização dessas só seria expedida se o religioso migrasse para uma ordem mais rigorosa. Objetivamente é difícil julgar. De qualquer forma, enquanto a instituição fundada por Santo Agostinho era tradicional e consolidada – além do mais, calcada em sólidas bases filosóficas e teológicas, anos e anos de estudo –, a de São Francisco mal havia sido oficializada – para se ter uma ideia, a própria regra ainda era oral. Ou seja, a argumentação perante os trâmites burocráticos e hierárquicos seria das mais difíceis.

Fernando teve um verdadeiro advogado na empreitada: Giovanni Parenti. O franciscano negociou pessoalmente o passe do jovem religioso com a cúpula de Santa Cruz e fê-los ver que ele era “um franciscano entre os agostinianos”. Formado em Direito na Universidade de Bolonha, Parenti desempenhava a função de juiz em Civita Castellana, na região de Roma, quando se converteu e trocou a toga pela batina. Era, portanto, um homem versado – e dotado de boa capacidade argumentativa para dialogar com os agostinianos.

Deu certo e, em algum dia entre junho e agosto de 1220, ainda de manhãzinha, um grupo de franciscanos chegou ao mosteiro de Santa Cruz. Vinham buscar o novo companheiro. Exultavam de felicidade.

Compartilhando do mesmo sentimento, Fernando parecia leve. Resoluto, imediatamente trocou o traje branco dos cônegos pelos trapos simples que usaria a partir de então. Amarrou uma corda na cintura e dispensou os calçados. Quando saía, ouviu de um agostiniano: “Vá em paz! Pode ir, que ainda vai se tornar santo!”. Não soube se o ex-colega disse isso como desejo de boa sorte, como pressentimento ou apenas para tirar um sarro. Mas, de bate-pronto, Fernando respondeu: “Obrigado, meu caro. Quando lhe contarem que me tornei um deles, louve a Deus!”.

Fernando Martins de Bulhões e Taveira de Azevedo deixou para trás a vida de Santa Cruz, a ordem de Santo Agostinho e o seu passado como Fernando Martins de Bulhões e Taveira de Azevedo. A partir daquele momento, ele assumiria um novo nome: Antônio.

A prática de mudar de nome quando ingressa para uma ordem religiosa ainda não era tão comum naquela época. Ocorria de vez em quando. Mesmo no caso dos papas eleitos, costume tão arraigado hoje em dia, a nova identidade não havia se tornado praxe. Quando se tornou sumo pontífice, Mercúrio (470-535 d.C.) julgou que um nome pagão não cairia bem para o líder máximo da Igreja e decidiu se tornar Papa João II. Quatro séculos mais tarde, Pedro Canepanova (940-984 d.C.) virou João XIV – e desde então quase sempre um papa muda de nome.

Entre os religiosos que se tornam monges ou frades, a ideia de um novo batismo é justamente para simbolizar o desejo de mudar radicalmente de vida. Fernando escolheu Antônio como forma de aludir a Santo Antão – Antonius, na forma latina. Assim, homenageava a casa que o estava acolhendo. Mas, ao mesmo tempo, fazia referência a tudo o que havia aprendido junto aos agostinianos: afinal, a história de Santo Antão foi uma das grandes inspirações para Agostinho criar sua ordem religiosa.

A Legenda assídua é mais poética ao explicar isso. “Assim foi o próprio Antônio em pessoa, que, substituído o vocábulo, se impôs o nome e com ele, por um feliz presságio, designou qual havia de ser o arauto da palavra de Deus”, diz o texto. “Antônio, pois, significa por assim dizer aquele que atroa os ares. E na realidade a sua voz, qual trombeta portentosa, quando expressava entre os doutos a Sabedoria oculta no mistério de Deus, proclamava com ênfase tais e tão profundas verdades das Escrituras, que mesmo, e nem sempre, o exegeta poderia compreender a eloquência da sua pregação.”

Para o padre italiano Giustiniano Scrinzi, que biografou o santo no fim do século XIX, a nova identidade assumida era “um sinal do seu ardor em abandonar o século, tanto mais que ele pertencia à ilustre prosápia, e imitar a austeridade do antigo eremita”.

Se Parenti fez questão de mostrar que Antônio – a partir daqui, iremos chamá-lo sempre assim – era um “franciscano entre os agostinianos”, afinal, é certo que ele seria também um “agostiniano entre os franciscanos”. O recém-ingresso religioso trouxe uma contribuição inestimável para os frades menores, cuja instituição ainda estava no início: o gosto rigoroso pelos estudos, o culto às letras e ao conhecimento.

Antônio assumiu uma rotina completamente diferente. Os franciscanos viviam em pequenas cabanas em um morro e passavam o dia ajudando camponeses pobres a plantar e a colher. Não pediam nada em troca e jamais aceitavam dinheiro – alimentavam-se do que ganhavam, se lhes fosse ofertado algo para comer e beber. Não era raro que, depois de uma longa jornada de trabalho, acabassem tendo de ir dormir de estômago vazio.

Outra tarefa que exigia bastante era o cuidado com os doentes. Bastava que soubessem de um leproso na região, por exemplo, e já iam lá, geralmente em duplas, limpar suas feridas e rezar por ele. Preparavam unguentos e também limpavam suas casas e cozinhavam para eles.

Ao contrário dos agostinianos, não havia espaço para orações longas e elaboradas, muito menos cantos complexos. Na sua nova comunidade, as rezas eram coloquiais e espontâneas; a música, sem requintes, servia para celebrar a natureza e louvar a Deus. Outra diferença estava nos estudos: os frades menores sequer tinham livros. Antônio precisava aprender a se tornar um homem mais simples.

Conforme o relato de Fernando Félix Lopes, “a vida corria-lhes muito fervorosa e singela”. “Ali, no devoto retiro, viviam os frades, contentes e alegres, aquela vida de oração e trabalho que São Francisco ensinara. Com teres e haveres não se apoquentavam. Tudo haviam deixado pela santa liberdade que não sente as amarras nem do eido, nem dos campos, nem da casa ou da família”, afirma o biógrafo. “Descansavam seus cuidados no Pai celeste que veste de galas os lírios dos campos e sustenta as avezinhas do céu. Desconfortos da pobreza não sentiam. Não os sente quem não sonha cômodos e todo se contenta, ou se contém, no que dá a Providência.”

Disciplinado como sempre, passou sem dificuldades o estágio probatório e, três ou quatro meses depois, já parecia completamente enraizado nos rigores da nova ordem. Foi quando Giovanni Parenti liberou-o para seguir adiante na missão que ele tanto ansiava. Chamou-o e informou-lhe que havia sido ele um dos escolhidos para seguir ao Marrocos.

Na companhia de outro jovem frade, provavelmente chamado Filipe ou Filipino, Antônio foi até Lisboa. Despediu-se de seus pais. No porto, encontrou um navio mercante cujo capitão, compadecido da causa dos dois – a pregação do Evangelho em terras muçulmanas –, topou lhes dar carona até a cidade de Ceuta. Era ele próprio um homem de fé, devoto principalmente de seu onomástico, São João – conforme alguns relatos apontam. Acreditava que ter uma dupla de frades a bordo seria útil para que os Céus ajudassem no sucesso da viagem.

Aportaram em Ceuta, como estava previsto. O plano dos dois religiosos era pregar em Marraquexe. Mas, antes, passariam alguns dias em casas de cristãos no norte do país. Com eles, aprenderiam mais sobre os costumes e mesmo como deveriam fazer para viajar até o destino final – uma rota bastante difícil, à época.

O idioma árabe não configurava problema para Antônio. O fato de ter nascido e morado até a adolescência em uma cidade que havia sido ocupada pelos mouros fez dele um conhecedor da língua – que até então seguia sendo falada nas ruas por muitos que acabaram se instalando em Portugal.

As coisas, no entanto, não ocorreram de acordo com o planejado. Antônio começou a se sentir mal. Uma febre que não passava, vômitos, mal-estar. Não havia nada que o recuperasse.

Antônio insistiu. Mesmo doente viajou até Marraquexe, imaginando que a melhora chegaria, que seria apenas alguma intoxicação alimentar, algo que não havia lhe caído bem durante a viagem ou nos primeiros dias em solo africano. Que nada. A situação só piorou. Era uma febre sezão, intermitente, que parecia não se extinguir. Tudo indicava que ele tivesse contraído malária. Futuramente, alguns cronistas conjecturaram que Antônio talvez tivesse hidropisia – um acúmulo anormal de líquidos nas cavidades naturais do corpo. Foram três ou quatro meses de temperaturas altas, compressas e cuidados. Padre Scrinzi diz que o seu estado, tão grave, deixou-o “impotente para qualquer trabalho”. Naquele estado era impossível pregar o Evangelho.

Enxergando no fato um desígnio divino, o religioso decidiu que o melhor a fazer era retornar para Portugal. Talvez Deus quisesse seu trabalho lá – melhor concordar e buscar um navio que desse carona de volta. “Mas, conhecendo o Altíssimo a natureza do homem, resistiu-lhe frontalmente com a grave doença que o açoitou duramente durante todo o inverno”, diz a Legenda assídua. “E assim aconteceu que, não vendo nada do seu propósito concretizado de modo favorável, voltaria obrigado à sua terra natal para recuperar ao menos a saúde do corpo.”

Esperou um momento em que se sentia menos ruim da doença e encarou a longa jornada por terra até Ceuta. Os mais de seiscentos quilômetros, sob forte sol, eram vencidos parte a pé, parte em caronas obtidas de carroceiros – Francisco de Assis recomendava que o peregrino sempre caminhasse, mas que utilizasse outros meios em caso de extrema necessidade. Foi uma viagem extenuante. Convalescente, Antônio precisava ser carregado por companheiros em diversos momentos da jornada. Filipe seguiu sendo o companheiro prestativo.

Não foi difícil conseguir, no mesmo porto, uma embarcação com lugar para ele. Era um pequeno barco mercante. Como Antônio parecia melhor e já estava encaminhado, Filipe achou por bem ficar e cumprir a missão de pregar o catolicismo em terras dominadas pelos muçulmanos. Não há registros sobre o que teria lhe acontecido – se foi bem-sucedido na empreitada, se acabou retornando à Europa, se foi morto, ninguém sabe.

Para Antônio, voltar sozinho possibilitaria meditar mais, ficar mais em silêncio, ouvir Deus. Naquele momento, era tudo o que ele mais desejava. Em seu íntimo, rezava. Pedia para uma mensagem divina lhe apontar o caminho. Entendia que tinha sido obra da Vontade Suprema o fato de ele não ter conseguido empreender sua Cruzada – então que a Providência tratasse de mostrar o que queria dele.

Ele estava imerso em suas orações quando percebeu que algo não andava muito bem. Se a viagem de ida havia sido por mares tranquilos, agora a maré estava brava. Sob forte tempestade, o barco desgovernou. A tripulação já antevia o pior: estariam condenados a um naufrágio no Mediterrâneo? “Incessantemente sopravam os furacões do oeste, ameaçando submergir a nau”, afirma Frei Basílio.

Foram dias enfrentando a ferocidade dos ventos e dos mares. O capitão decidiu que melhor do que enfrentar as forças contrárias era ceder, assumir uma direção inversa de navegação e, se houvesse sucesso, aportar ao primeiro sinal de terra firme. Ideia oportuna, vale dizer: o barco já apresentava avarias e qualquer insistência poderia mesmo resultar no pior, em naufrágio.

Os mares tortuosos fizeram com que o navio aportasse não em Lisboa, mas na Sicília, a maior ilha do Mediterrâneo. Antônio hospedou-se por ali, não se sabe se em Taormina, cidade perto do vulcão Etna, ou em Messina. Não se sabe exatamente onde ele encontrou abrigo, mas tudo indica que, se apresentando como frade, tenha obtido ajuda de camponeses ou pescadores. Uma das versões, inclusive, aponta para a existência de uma pequena comunidade franciscana em Messina – e, portanto, pode ser que Antônio tenha se instalado ali.

Se isso realmente ocorreu, é de se esperar que o religioso português tenha sido muito bem acolhido pelos irmãos italianos. Afinal, o próprio São Francisco determinava que “cada um dos frades ame e cuide de seu irmão com o mesmo amor e ternura com que a mãe estremece aos seus filhinhos, e se algum dos irmãos cair enfermo, seja onde for, os demais irmãos os sirvam como queiram eles mesmos ser servidos”.

Apesar de longe dos centros italianos mais importantes da época, como Roma e as então cidades-estado de Milão, Gênova, Veneza e Florença, a ilha siciliana sempre teve papel econômico importante, sobretudo pela sua localização estratégica no Mediterrâneo.

O religioso procurou restabelecer-se. “Santo Antônio estava exausto. Extenuado pelas febres, castigado pela tempestade no mar, que levou muitos dias, o seu corpo necessitava de repouso”, prossegue Frei Basílio. De acordo com o biógrafo anônimo que escreveu a Legenda assídua, o frade retirou “forças da própria fraqueza”.

“Encontramos, em Antônio, tudo quanto dissemos. Ele vai, com irresistível desejo, ao martírio, age de acordo com o desejo que o preocupa e encontra-se ao revés da natureza, que o afasta, atirando-o para onde jamais tinha pensado ir e abre-lhe uma nova direção na vida”, comenta o Padre Scrinzi. “As causas imediatas agiram sobre ele, mas o que foi servido foi o plano de Deus, que desejava-o como um apóstolo na Itália.”

Não era hora de lamentar. O frade ressentia-se por não ter conseguido pregar no Marrocos e, assim, realizar sua Cruzada. Contudo, agradecia aos Céus – pela vida, pela natureza, pelos rumos novos que se lhe eram apresentados. Já que estava ali, entendia que Deus o havia mandado ali. Já que estava na Itália, sentia-se convocado para participar do capítulo geral dos franciscanos, marcado para começar dia 29 de maio, véspera de Pentecostes, em Assis.

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