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Santo Antônio

Seria muita ilusão acreditar que alguém com a fama de Antônio conseguisse descansar em pleno sossego. Mesmo longe da cidade e em um pretenso refúgio, o sacerdote continuava sendo procurado por gente precisando de orações, querendo se confessar, carente de uma conversa franca, sedenta por milagres.

O frade jamais se negava a atender quem o buscava, mesmo que a energia e o vigor parecessem lhe faltar. Combalido, fraco e cansado, trazia um sorriso nos lábios quando conversava com as pessoas, sempre com carinho e paciência. É desses dias em Camposampiero o relato de que ele teria curado uma menina paralítica, por exemplo.

Frei Basílio conta que a rotina do franciscano era dedicada a estudos, meditações e orações e que ele só descia do cubículo feito no alto da árvore quando alguém o chamava – ou quando o sino convocava para as atividades na capela e as refeições, que ocorriam em recinto improvisado. Nos outros dois alojamentos anexos, outros religiosos estavam hospedados, entre eles o fiel escudeiro de Antônio, Luca Belludi.

Em 13 de junho, uma sexta-feira, o religioso acordou como em todos os outros dias, desceu as escadas de sua cabana e foi até a capela. Lá já era aguardado pelos outros irmãos para a primeira oração da manhã. Em seguida, foram tomar o desjejum.

Mas Antônio sequer conseguiu colocar um pedaço de pão na boca. Desmaiou. Ele andava muito fraco e com o quadro de hidropisia cada vez mais grave.

Os religiosos o acomodaram em uma rudimentar cama, praticamente uma maca, feita de palha. Alguns minutos depois, recobrando a consciência, Antônio pediu que o levassem para Pádua. Ao notar que estava sendo ignorado pelos irmãos, tornou a insistir: queria ir para Pádua, voltar para a igreja de Santa Maria Mater Domini, para sua cela, seu conventinho ao lado da igreja.

Os irmãos decidiram que não era hora de atendê-lo. Antônio estava muito frágil para suportar a viagem. Mas ele insistia: “Quero voltar para Pádua… Por favor, me levem até lá”.

O pedido não era apenas um capricho de quem queria retornar para a cidade que havia escolhido para ser sua. Em meio aos delírios da doença, mesmo agonizando, o sacerdote não queria ser um fardo para aqueles irmãos queridos ali no meio do mato, praticamente isolados – via que em Camposampiero ele significava um trabalho desmedido para a pequena comunidade. No convento de Pádua teria mais assistência e estrutura.

Foi sob protestos – e argumentos de que ele jamais seria um peso – que os irmãos acabaram vencidos pela insistência de Antônio. Prepararam, então, um carro de boi, colocaram-no deitado e devidamente enrolado em um manto, e partiram com destino a Santa Maria Mater Domini.

Próximos da entrada da cidade, encontraram-se com um irmão franciscano que estava saindo de Pádua para visitá-los em Camposampiero. Quando ele viu o estado de Antônio, convenceu os religiosos a não irem até Santa Maria: “Primeiramente, porque a viagem é mais longa. Vendo-o assim, pressinto que ele não aguentaria”, disse. “E aqui perto tem um convento pequeno, onde certamente haverá mais tranquilidade para o Frei Antônio descansar e se restabelecer.”

“Alegava o referido irmão que na residência dos frades havia de ocorrer grande agitação, e não menos perturbação, sobretudo porque, situados dentro da cidade, estariam expostos à concentração inoportuna das pessoas do século”, confirma a Legenda assídua. “Ao ouvir estas palavras, o servo de Deus Antônio anuiu aos rogos do suplicante.”

Estavam, então, muito próximos de um burgo chamado Capo di Ponte – hoje, o bairro de Arcella, no subúrbio de Pádua. Ali havia uma capela dedicada a Santa Maria della Cella, conhecida como Arcella, e uma casa religiosa anexa.

Foram acolhidos. Logo providenciaram um quarto para o religioso. Mas nada de ele melhorar.

A tosse era cada vez mais forte, renitente, infinita.

E seu corpo tremia em calafrios.

Tinha febre alta.

Antônio pediu para se confessar. Em seguida, começou a cantar louvores à Nossa Senhora: “O gloriosa Domina, excelsa super sidera – que, em português, seria algo como “Ó, gloriosa Senhora, sublimada acima das estrelas”.

O olhar de Antônio era distante, parecia enxergar além das paredes. De repente, ele exclamou: “Vidi Dominum”, ou seja, “Vi o Senhor”.

O mesmo sacerdote que o havia ouvido em confissão concluiu que era hora de providenciar a derradeira bênção. “Quando os irmãos, ali presentes, viram que o seu feliz êxito estava iminente, decidiram ungir o santo de Deus com o óleo da sagrada unção”, narra a Legenda assídua. “Tendo-se acercado dele um irmão para lhe conferir a sagrada unção, como é costume, fixando-o, o bem-aventurado Antônio diz: ‘Irmão, não é necessário que me faças isso; eu já tenho esta unção dentro de mim; em todo o caso, é para mim um bem e agrada-me’.”

Então, Fernando Martins de Bulhões e Taveira de Azevedo, o filho de Martim e de Maria Thereza, o frade franciscano, o Antônio de Lisboa, de Coimbra, de Pádua – de tantos outros lugares por onde passou, pregou, viveu – respirou fundo, tomou ar profundamente.

E suspirou.

Pela última vez.

“Eclipsou-se o astro fulgurante que tanta luz espargiu na cristandade. Fechou-se a boca que com tanto ardor e arroubos de eloquência anunciou o evangelho da salvação. Cerraram-se os olhos que em doce enlevo contemplaram o divino infante e ainda, antes de se apagar a sua luz, viram a Deus na glória. Deixou de bater o coração que outra coisa não amou senão o Criador e por seu amor as almas imortais”, nas palavras de Frei Basílio. “Santo Antônio entrou no gozo de seu Senhor porque sempre foi o servo bom e fiel.”

Naquele mesmo dia – obviamente sem ter como saber da notícia, dado que eram tempos de precária comunicação –, seu amigo Thomas Gallus, abade de Vercelli, 540 quilômetros distante de Pádua, recebeu uma estranha visita de Antônio, conforme relataria depois.

Depois de saudar o velho companheiro, o religioso franciscano teria dito: “Meu abade e senhor, deixei meu burrinho em Pádua e volto com pressa à minha pátria”.

Deu-lhe um abraço afetuoso e saiu. Gallus tentou reencontrá-lo, mas não conseguiu. Ficou sem entender: o burrinho era o próprio corpo do religioso, obviamente deixado aqui na Terra.

Há ainda uma lenda que, no instante exato de sua partida, todos os sinos de todas as igrejas de sua Lisboa natal repicaram, em uníssono, sem que ninguém os tocasse.

Com a morte de Antônio confirmada, os irmãos franciscanos que testemunharam sua agonia final decidiram que era melhor esperar o anoitecer para levá-lo à igreja de Santa Maria – ou haveria muito tumulto pelas ruas. Mesmo com tal zelo, misteriosamente a notícia começou a se espalhar entre o povo. De modo que logo era possível ouvir crianças gritando pela cidade: “O santo morreu! Frei Antônio morreu! O santo morreu!”.

Não demorou muito para uma verdadeira multidão aglomerar-se na frente do convento de Arcella. Mas o que era para ser uma manifestação de respeito, de fé e, de certa forma, de despedida daquele homem que tanto fizera pelas pessoas, acabou se transformando em confusão. A vizinhança começou a exigir que o corpo não fosse levado para Pádua. Eles argumentavam que se o frade havia “escolhido” Capo di Ponte para morrer, era porque deveria ali ser sepultado. Vislumbravam um santo para o pequeno burgo.

Não havia jeito de furarem o bloqueio para levá-lo até Santa Maria Mater Domini.

Temendo que o princípio de motim acarretasse consequências mais graves, os franciscanos organizaram-se para fazer um revezamento vinte e quatro horas por dia na guarda do convento. Foi oportuno; afinal, não só não conseguiam sair dali com o corpo de Antônio como, no dia seguinte, a situação piorou.

“Pela manhã, da cidade, das vilas e povoações, chega o povo fiel para ver o corpo do bem-aventurado Antônio; e, quem pudesse tocá-lo uma vez que fosse, convencia-se de que havia de necessariamente ser feliz. E se, por causa da multidão, alguns não podiam aproximar-se dele, bastas vezes atiravam, através das janelas e portas, cintos e cordões, anéis e colares e outros adornos; outros, pendurando estas coisas em varas compridas, apresentavam-nas para serem introduzidas e as receberem já santificadas pelo contato do sacratíssimo corpo”, conta a Legenda assídua.

Sim, todos davam seu jeito para arrancar uma relíquia sagrada, ter para si – ou para outrem, negociando depois, geralmente por vias tortas – algo que tivesse tocado o cadáver do futuro santo. Era um tempo, vale ressaltar, que o catolicismo andava movimentado – ou seria melhor dizer contaminado? – pelas tais relíquias. De pregos que supostamente haviam crucificado Jesus a ossos de mártires, essas coisas eram exibidas em igrejas, consideradas objetos milagrosos e, inevitável, alimentavam um escuso mercado de abusos da fé alheia.

Com o impasse travado, a demora em definir o destino dos restos mortais de Antônio deixou os frades franciscanos muito preocupados. Primeiro porque o risco era grande de que, desesperadas e enfurecidas, aquelas pessoas ousassem remexer no corpo, rasgando em pedaços as vestes ou mutilando o cadáver – tudo em nome da obtenção de relíquias. Depois, porque era junho e o calor era muito intenso, de modo que ou enterravam logo o homem ou o corpo iria começar a se deteriorar.

Decidiram sepultá-lo ali mesmo, no pátio do mosteiro, ainda que de maneira provisória. Diante da notícia, começou o tumulto de fato: armados com paus, pedras, espadas, punhais e facas, pessoas cercaram o local. Ameaçavam. Queriam que o enterro fosse definitivo. Não admitiriam um túmulo provisório para o santo.

Foram solicitados pareceres de autoridades. O ministro provincial dos franciscanos decidiu: deveria ser cumprida a vontade de Antônio, ou seja, o sepultamento em Santa Maria Mater Domini. O bispo, Jacopo Corrado, concordou: era preciso respeitar os desejos de Antônio. Uma comitiva de frades foi designada a ir buscar o corpo em Arcella. Mas os religiosos foram impedidos de chegar até o convento – os revoltados moradores não permitiram que eles furassem o bloqueio.

As autoridades e os franciscanos deliberaram então uma nova tática: anunciar para a população que, diante dos apelos, havia ficado decidido que o enterro ali ocorrido seria, sim, definitivo.

Não deu certo. Em vez de acalmar o povo, a notícia foi mal interpretada. E gerou um boato que só aumentou a confusão: o de que o corpo de Antônio tinha sido roubado da sepultura e, por isso, para ocultar o fato, eles resolveram não mais transportar a arca até Santa Maria.

“O santo desapareceu!”, ouvia-se nas ruas.

O único jeito de desmentir a história foi exumar Antônio da cova provisória, abrir novamente o caixão e mostrar que estava tudo ali.

O tempo passava sem que nenhuma solução surgisse para o impasse. Então alguém teve uma ideia genial: o governo municipal poderia intervir. Bastava publicar um decreto convocando todos os moradores adultos para uma assembleia geral. Os que não comparecessem teriam seus bens confiscados.

Obviamente que os membros do clero estavam dispensados da obrigação. Então foi assim que conseguiram levar o santo para Pádua – com a cidade completamente vazia.

Quando a população se deu conta, já era tarde demais. Mas, ao mesmo tempo, começaram a ser espalhados relatos de que bastara o desfecho da questão para que muitos milagres passassem a ocorrer por intercessão de Santo Antônio. Isso não só acalmou o povo como fez os revoltosos perceberem que tal destino era mesmo o melhor. Por fim, houve uma festa digna, com procissão pelas ruas, bandeiras coloridas, tochas acesas. O entorno de Santa Maria Mater Domini ficou em polvorosa.

“Logo no mesmo dia, foram trazidos muitíssimos doentes, com enfermidades várias, que, pelos merecimentos do bem-aventurado Antônio, foram de imediato restituídos à saúde primitiva. No mesmo instante em que o doente, fosse ele quem fosse, tocava a urna, após a sua sepultura, experimentava a alegria de se ver liberto de toda a espécie de enfermidade. Mas aqueles que, em virtude da multidão, não podiam permanecer diante da urna, quando transportados para fora das portas da igreja saravam, na praça pública, à vista de toda a gente. Aí, na realidade, abriram-se os olhos aos cegos; aí, o coxo saltou como o veado; aí, aos surdos abriram-se-lhes os ouvidos; aí, a língua dos mudos, solta, proclamava, rápida e com perfeição, os louvores de Deus. Aí, desarticulada a paralisia, consolidavam-se os membros do corpo na sua primitiva função; aí, o corcunda, a gota, a febre e várias outras enfermidades pestíferas são postas em fuga como por encanto. Aí, enfim, prestam-se aos fiéis todos os benefícios desejados; aí, alcançam os homens e as mulheres das diversas regiões do mundo o efeito salutar da oração”, diz a Legenda assídua.

No dia 17 de junho de 1231, finalmente seria sepultado Antônio de Pádua. Em Santa Maria, conforme sua vontade manifestada em vida, e com direito à missa solene celebrada pelo bispo.

A partir de então, Pádua começou a ficar pequena. Relatos de milagres se tornaram ininterruptos. Peregrinos chegavam de todas as partes da Itália e, depois, do mundo – gradualmente, conforme a notícia se espalhava. “Acorrem os venezianos, apressam-se os trevisinos, apresentam-se os vicentinos, os lombardos, os eslovenos, os aquilenses, os teutões, os húngaros: todos estes, ao verem que se renovavam os milagres e se sucediam os prodígios, louvavam e glorificavam a onipotência do Criador”, atesta a Legenda assídua.

Menos de um mês após a morte de Antônio, o bispo Corrado solicitou ao Papa Gregório IX que se iniciasse o processo de canonização do frade, porque ele já era venerado como santo. Esse pedido foi tratado com carinho e prioridade pelo sumo pontífice, que havia conhecido pessoalmente Francisco e Antônio e era admirador dos franciscanos.

Entretanto, o assunto enfrentou resistência de setores do cardinalato. Preocupações políticas pertinentes: com a recente canonização de Francisco, o reconhecimento da santidade de Antônio em pouquíssimo espaço de tempo poderia causar ciumeira em outras ordens. Era preciso intercalar, ao menos. Para os purpurados, também preocupava o gesto de nomear dois santos de uma ordem fundada há tão pouco tempo – mais precisamente vinte e um anos antes. Era necessário, no entanto, reconhecer também o apelo da Ordem dos Frades Menores, instituição que tinha conseguido arrebanhar cinco mil membros antes mesmo de completar a primeira década de existência.

Além disso, a enxurrada de relatos milagrosos que chegava à cúpula da Igreja pesava contra os resistentes – que precisaram ceder. Para abrir o processo de canonização, Gregório nomeou duas comissões: em Pádua, caberiam ao bispo, ao prior dos dominicanos e ao abade dos beneditinos a função de analisar os casos considerados impossíveis e examinar as pessoas que se diziam curadas; em Roma, um grupo de cardeais iria se deter sobre os relatórios. Dois outros cardeais, que haviam visitado a região da Lombardia, no norte da Itália, para uma missão anterior, atuaram como testemunhas. Eles relataram um sem-número de histórias ouvidas em suas andanças, cheias de milagres atribuídos a Antônio.

Consolidou-se o equivalente a 53 milagres indubitáveis. Entre eles, enumera Frei Basílio, “ressurreição de uma criança, cura de completa cegueira, de grandes deformidades físicas e de outras moléstias”, sendo os beneficiados “gente de todas as classes”. “Coisa admirável!”, pontua. “Não sabemos se já se viu coisa igual de outro santo em tão pouco tempo depois da morte.”

Em 30 de maio de 1232, menos de um ano após a morte de Antônio, Gregório IX anunciou sua santificação. O papa estava em Spoleto, a quarenta quilômetros da Assis de Francisco, quando tornou pública a decisão. Com a notícia, a igreja da cidade se viu lotada para a missa. Na ocasião, Gregório não apenas leu os relatos dos principais milagres como também recordou seu contato com Antônio – dizendo que tinha se “certificado pessoalmente da santidade da vida admirável” do frade.

“Em honra e louvor à Santíssima Trindade e para exaltação da santa Igreja, inscrevemos o servo de Deus, Frei Antônio, confessor da Ordem dos Frades Menores, no catálogo dos santos, e ordenamos que a sua festa seja celebrada todos os anos em 13 de junho”, proclamou o sumo pontífice.

Concluiu, ainda, com a seguinte oração: “Ó exímio doutor, luz da santa Igreja, bem-aventurado Antônio, amante da divina lei, rogai por nós ao Filho de Deus”.

Conta-se que, no momento do anúncio, mais uma vez os sinos de Lisboa tocaram sozinhos.

No dia seguinte, Papa Gregório escreveu ao bispo Corrado informando que Antônio já constava do rol dos santos, “para confusão da pravidade herética e confirmação da fé católica”. No dia 13 de junho, Pádua celebraria o aniversário da morte do ilustre cidadão, pela primeira vez festejando o santo.

Na data, foi lançada a pedra fundamental da construção do santuário a ele dedicado, onde seria seu túmulo definitivo. Trata-se da mesma construção atual, oficialmente chamada Pontifícia Basílica Menor de Santo Antônio de Pádua. “Levou mais de um século até o templo estar acabado nas partes essenciais”, afirma Basílio. Na verdade, a igreja seria concluída em 1310.

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