- A+
- A-
Santo Antônio de Pádua, o homem que tomou para si o nome da cidade e rendeu a ela fama mundial, não nasceu Antônio, muito menos paduano. Por batismo, Santo Antônio se chamava Fernando. E nasceu em Lisboa, que na época ainda não era capital de Portugal.
Naqueles tempos, com a maioria do povo iletrada, o mais comum era que nomes próprios fossem só um. Ou, no máximo, o nome e o patronímico – para indicar filho de quem era a pessoa, afinal. Claro que no caso de famílias ilustres, por orgulho, tradição e conveniência, existia o hábito de herdar sobrenomes. E essa era a situação da casa onde nasceu o santo.
De modo que quando veio ao mundo, em 15 de agosto de 1195, o menino foi chamado de Fernando Martins de Bulhões e Taveira de Azevedo. Era filho de Martim de Bulhões, daí o Martins que carregaria como patronímico, com Maria Thereza Taveira de Azevedo – ambos de famílias importantes na sociedade lisboeta da época.
Fernando recebeu o mesmo nome de um tio, que era padre e mestre-escola1 na Sé de Lisboa. A catedral, chamada oficialmente de Basílica de Santa Maria Maior, já funcionava quando ele nasceu, mas sua construção, iniciada em 1147, só terminaria nos primeiros anos do século seguinte. Foi lá, aliás, que o menino recebeu o batismo oito dias após o nascimento – e a pia batismal, preservada, tornou-se objeto de veneração. Presume-se que o tio homônimo tenha sido o padrinho de Fernando.
A nobreza de sua família tinha lastros tanto paterno quanto materno. Os Bulhões ostentavam o fato de que eram herdeiros de Godofredo (1058-1100), um dos líderes da Primeira Cruzada – como ficaram conhecidos movimentos militares de motivação cristã que, ao longo da Idade Média, partiram da Europa para Jerusalém com o objetivo de conquistar, ocupar e manter sob domínio católico a região considerada sagrada.
Quando a Terra Santa foi tomada pelos cavaleiros europeus, Godofredo de Bulhões foi aclamado o primeiro soberano do Reino Latino de Jerusalém – acabou recusando o título de rei, por julgar inoportuna a coroa no mesmo local onde Cristo teria sido flagelado e coroado de espinhos. Acredita-se que o menino Fernando era neto do sobrinho de Godofredo.
Do lado materno, conforme contam hagiógrafos antigos, os Taveiras descendiam de um antigo monarca asturiano, região hoje pertencente à Espanha: Fruela I (722-768 d.C.), conhecido como “O Cruel” pela sua rígida disciplina.
Assim, era mesmo de se supor que o futuro santo tivesse ganhado nome e sobrenomes. Também era de se imaginar que ele vivia com certo conforto para a época, tendo pelo menos uma ama que ajudava a mãe com os afazeres domésticos e com a criação dos filhos. Além de Fernando, o casal teve outros três: Vasco da Veiga, Egídio e Maria – os dois últimos também se tornariam religiosos, respectivamente no mosteiro de São Vicente e no convento de São Miguel das Damas. Registros ainda apontam que a casa dos Bulhões ficava na frente da porta oeste da catedral de Lisboa – não à toa, o endereço hoje abriga a Igreja de Santo Antônio de Lisboa.
O Reino de Portugal era um conceito novo. Havia sido criado em 1139 e estava no segundo monarca da primeira dinastia, a casa de Borgonha. Depois de Afonso I (1109-1185), o cetro estava com seu filho Sancho I (1154-1211). Naquela época, a capital de Portugal era Coimbra. A família real iria se mudar para Lisboa apenas em 1255.
Embora não haja um consenso entre historiadores, muitos acreditam que Martim, o pai de Fernando, era mais do que um fidalgo; era o prefeito de Lisboa, uma cidade em reconstrução depois da retomada dos trezentos anos de dominação moura. Um exemplo que ilustra bem o momento de reconquista ibérica é a própria catedral, que por ordens do primeiro rei de Portugal, Afonso I, fora erguida no mesmo local onde os muçulmanos haviam se aproveitado da existência de uma velha igreja para transformá-la em mesquita.
O que se sabe com certeza é que Martim era um homem de posses. Além da casa na região central de Lisboa, contava também com uma quinta, onde cultivava trigo, parreiras e outros insumos e mantinha alguns cavalos. Nesse contexto, o menino Fernando era um privilegiado, uma criança da elite portuguesa.
Mas voltemos ao seu nascimento. A data de 15 de agosto de 1195 pode não ser real. Em um tempo de parcos registros, há quem acredite que a tradição acabou inventando o dia em alusão à comemoração católica da festa da Assunção de Nossa Senhora.
O alemão Hugo Röwer (1877-1958), nome civil do religioso franciscano Frei Basílio, um dos mais importantes hagiógrafos a escrever sobre Antônio, afirma que “para usar as palavras da Sagrada Escritura, Deus preveniu a criança com magníficas bênçãos”. “A circunstância de ter nascido no dia festivo da Assunção de Nossa Senhora foi o presságio de sua terna devoção à Maria Santíssima, cuja Assunção gloriosa ao céu iria mais tarde pregar nos seus sermões e com cujo hino nos lábios iria transpor o limiar da eternidade”, escreve o frade.
Em contrapartida, o frade franciscano português Fernando Félix Lopes, outro importante biógrafo do santo, parece não ter tanta certeza assim. “Eu diria que foi o povo quem imaginou a data de modo tão preciso”, crava. “Nos seus cálculos para nada entrou a erudição, está de ver. A devoção e piedade, sozinhas, encarregaram-se de fazer a conta.”
“E pode ter sido assim: durante toda a vida consagrou Santo Antônio à Mãe de Deus afeto terno e quente, e em paga sempre a Mãe de Deus lhe dispensou desvelada proteção. Até parece, pensaria o povo que às vezes mistura a sua fé com reminiscências poéticas de velhas astrologias, até parece que a ‘stella matutina’, a Senhora Santa Maria, foi a estrela que logo à nascença o bem-fadou. E talvez daí partisse para lhe marcar o nascimento no dia grande da sua festa de agosto”, completa.
Em 1981, quando exames antropométricos foram realizados em sua ossada, concluiu-se que se tratavam de restos compatíveis com um homem de mais de 40 anos. Como se sabe que Antônio morreu em 13 de junho de 1231, talvez ele tenha nascido um pouco antes de 1190. Estudiosos de sua vida e obra creem que o mais correto seja acreditar no ano de 1188 – o que eliminaria diversas contradições de sua biografia. Com três salas dedicadas ao culto e à história do religioso, o Museu de Lisboa: Santo Antônio, inaugurado em 2014 no centro da capital portuguesa, crava em seu site o ano de 1195 – mas ressalta que o 15 de agosto remonta a uma tradição possivelmente inaugurada no século XVII. Em letreiro afixado no local, contudo, a mesma instituição dá como certo o nascimento do mesmo em 1191.
Aos domingos, Martim costumava levar a família para passear. Tinha uma carruagem, puxada por cavalos. Visitavam quintas da região e passavam horas admirando o vaivém dos barcos no porto. Na época, o burburinho de Lisboa se devia à agitação de marinheiros e pescadores.
Nessas jornadas com os pais, um destino comum era o Mosteiro de São Vicente, da ordem dos agostinianos, no alto de um morro não muito longe da casa dos Bulhões. Ali costumavam assistir a missas.
O menino admirava a liturgia, encantava-se com as batinas brancas cobertas por cogulas2 escuras dos monges e a maneira como eles entoavam os cânticos. Acredita-se que aos 5 anos, fascinado pela vida religiosa, ele próprio teria se consagrado a Deus, prometendo que se tornaria sacerdote. A mãe, Maria Thereza, incutia a religiosidade no filho. Em casa, costumava contar para ele histórias de santos e ensinava-lhe orações e cânticos cristãos.
É da infância a narrativa considerada o primeiro milagre do santo. Conta-se que certa vez ele foi com o pai, apenas os dois, para a quinta da família. Chegando lá, Martim notou que havia um número grande de aves devorando as sementes nas bagas de trigo e, assim, ameaçando a futura colheita. Preocupado, pediu para Fernando tentar espantar os bichos enquanto ia chamar ajuda para dar um jeito na situação. O garoto correu o mais que pôde, mas não vencia; tocava os pássaros de um lado, eles iam para o outro. Então, decidiu conversar com eles. Chamou-os todos para o estábulo, pediu para se aquietarem lá. Os animais teriam obedecido. Quando o pai retornou e presenciou a cena, todas as aves aguardando em silêncio, ficou boquiaberto.
Dizem também que, certa vez, Fernando caminhava pela rua e encontrou uma mulher chorando. Perguntou o motivo e ouviu dela a lamúria de que estava indo apanhar água no poço e que uns meninos a atrapalharam, fazendo-a derrubar e quebrar o cântaro em pedacinhos. O garoto foi até o entorno do poço, recolheu os cacos, juntou-os e entregou de volta o cântaro, intacto, para a mulher.
Outra história que se tornou famosa sobre a infância do menino foi que ele teria sido tentado pelo demônio, que lhe aparecera na forma de cão. Para afastá-lo, fez o sinal da cruz, com a ponta dos dedos, em um degrau de mármore da igreja. O crucifixo, em baixo relevo, imprimiu-se na pedra – e o cachorro não tornou mais a incomodá-lo. Coisas estranhas ocorriam com aquele garotinho.
Uma pequena oração, atribuída a ele, teria sido criada ainda pelo Fernando menino. É conhecida como “bênção de Santo Antônio” e costuma ser usada para repelir forças do mal.
Eis a Cruz do Senhor:
Presenças inimigas fugi!
Venceu o Leão da Tribo Judá,
Filho de Davi! Aleluia!
Tanto Leão de Judá quanto Filho de Davi são denominações proféticas para Jesus Cristo.
A erudição perceptível nos sermões e ensinamentos do religioso tem suas bases na infância e na adolescência. Fernando, como filho de origem abastada, pôde estudar na escola episcopal, instalada na Sé e mantida pelos religiosos da Ordem dos Cônegos Regrantes de Santo Agostinho. Foi ali, possivelmente tendo seu tio como um dos professores, que o menino aprendeu a ler e a escrever o latim aos 7 anos de idade. Alternava os estudos com as orações – era um dos mais assíduos coroinhas a auxiliar nas celebrações da catedral. É por isso, para lembrar de seus serviços como ajudante de missa, que existem imagens sacras de Santo Antônio nas feições de criança, vestido com a sobrepeliz3 de coroinha.
Na escola, aprendeu o trivium, ainda pequeno, e o quadrivium, na adolescência. Era por meio desses dois conjuntos que se organizavam as disciplinas básicas nas poucas e restritas escolas da época. O trivium eram as chamadas três artes liberais: gramática, retórica e dialética. Denominados os “três caminhos que levavam ao saber”, os ensinamentos eram conduzidos pelo professor a partir de comentários aos compêndios de Priscianus Caesariensis (480-530 d.C.), gramático autor de Institutiones Grammaticae, e Aelius Donatus (320-380 d.C.), autor de Ars Grammatica, entre outros ícones da educação medieval.
Só mais tarde vinham as quatro artes tidas como complementares: aritmética, geometria, astronomia e música. Obedecendo ao pai, que naturalmente possuía cavalos, quando Fernando completou 15 anos também foi estudar cavalaria.
Fazia sentido. Os mouros vinham novamente atacando e tentando retomar Portugal. Em um tempo permeado por conflitos bélicos, era de bom tom que fidalgos dominassem essa arte, ou seja, estivessem prontos para atuar como soldados a serviço do Reino.
Mais que isso, tornar-se cavaleiro era também uma maneira de suceder o pai. Assim, Martim contratou instrutores para preparar o filho nas artes marciais, na equitação e na esgrima.
Fernando era aplicado aprendiz de tudo o que lhe ensinavam. Porém, não parecia ter predileção nem aptidão natural para a guerra. Mesmo que na infância, como todo menino, brincasse com simulações bélicas – usando frutas como alvo, por exemplo –, não era algo que ultrapassasse nele o lúdico a ponto de poder ser encarado como profissão de vida, trabalho ou meta. Em suma, para Fernando a ideia de lutar contra alguém parecia ferir seus princípios.
O moço crescia e tornava-se um daqueles que reunia as melhores características da época: estirpe familiar, boas condições financeiras, estudos sólidos. Era o retrato de um bom futuro, o que, naturalmente, despertava interesse de outras famílias que vislumbravam casar uma filha com ele.
Do contato com meninas, conta-se que tinha grande apreço por uma prima, mais ou menos da mesma idade. Era particularmente atraído pelos belos cabelos da garota e, sempre que visitava os tios, demorava-se acariciando as madeixas dela, deslizando as mãos com suavidade por sua cabeça. O pai da moça não escondia o desagrado por tal gesto.
Diz-se então que, certa vez, quando Fernando foi até a casa dos parentes, encontrou a prima prostrada, chorando aos soluços. “O que foi que aconteceu?”, perguntou o jovem. E ela lhe disse que, por causa do comportamento dos dois, o pai havia mandado cortar seus longos cabelos. Fernando não pareceu preocupado. Perguntou para a menina onde estavam as mechas. Ela tinha guardado em uma caixa e foi lá buscar. Ele então pegou os fios, encostou-os novamente na cabeça da prima e, para o encanto dela, a cabeleira voltou ao devido lugar.
Contudo, fosse porque se lembrasse dos tais votos feitos ainda aos 5 anos, fosse porque realmente identificasse em si uma vocação clerical, Fernando parecia não se interessar por flertes, namoricos, acertos de casamento. Para o Frade Fernando Félix Lopes isso não ocorria naturalmente; mas, sim, os hormônios da adolescência eram enfrentados com vigor pelo jovem Fernando – que, de acordo com o frade, não queria ceder aos apelos da carne pelo comprometimento firmado com Deus.
“Descuidoso e feliz passou Fernando a sua infância entre a escola e a casa de seus pais, e em simpleza de costumes lhe correu a vida até completar os 15 anos”, escreve ele. “Eis senão quando – é o velho legendista quem afirma – ao entrar na adolescência se lhe desencadeou na alma tormenta rija: o acicate da carne, abrupto e violento, começou de o esporear e aos empurrões arremaçava com ele para as concupiscências ilícitas.”
Lopes prossegue dizendo que o moço, “muito embora atrapalhado com a surpresa, nem por isso cedeu largando rédeas a más inclinações e apetites”. “Antes, sobrepondo-se à fragilidade da natureza humana, resoluto se atirou aos trabalhos de sofrear os ímpetos desordenados e as ousadias da carne.”
Foi nesse contexto que o jovem Fernando começou a se cansar do mundo – ao menos do mundo secular e laico, do mundo dos homens e das coisas passageiras. Lembrava-se da colina onde ficava o Mosteiro de São Vicente, dos monges com suas túnicas, daqueles momentos que lhe eram tão agradáveis nos passeios dominicais com a família. Talvez já fosse chegada a hora de começar sua missão, de trocar a morada dos pais pela casa religiosa. De certa forma, cumprir de fato a consagração que havia feito aos 5 anos de idade.
Ou, como Antônio falaria mais tarde em um de seus famosos sermões, Fernando não se sentia à vontade na busca da fortuna individual, tampouco cultivava vaidade ou orgulho. Seu destino seria outro.
Receba a Liturgia Diária no seu WhatsApp
Deixe um Comentário
Comentários
Nenhum comentário ainda.