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O reconhecimento póstumo de Santo Antônio vai além da fé das pessoas, uma vez que o religioso recebeu patentes militares – com direito a salários – e títulos honoríficos.
À primeira vista, é estranho imaginar como um santo cuja vida foi dedicada à paz pode se tornar membro honorário de exércitos. Justo ele que, na adolescência, negou-se a tornar-se cavaleiro como o pai. Justo ele que defendia que as Cruzadas verdadeiras fossem travadas pelo diálogo, pelo convencimento, pela argumentação – nunca pelas armas. Justo ele que abraçou a ordem franciscana, sempre associada à cultura de não violência.
Antônio era invocado informalmente por soldados portugueses, que rogavam a ele proteção em suas incursões. Entende-se que, em situações de conflitos, é natural que o santo protetor seja um conterrâneo – afinal, neste caso, contrariando o dito popular, é o santo de casa que traria o milagre da vitória, posto que ele seria capaz de compreender os mesmos anseios nacionalistas. Como Santo Antônio já gozava de imensa popularidade em Portugal, parecia natural que fosse ele o mais lembrado pelos guerreiros.
Uma boa hipótese: guerras, afinal, costumam fortalecer símbolos e ícones locais. Sendo Antônio um santo nascido em Lisboa e muito associado à cultura religiosa portuguesa, é óbvio que seu apelo junto aos soldados seria bem maior. E não importa se ele, em vida, tinha sido inveterado pacifista.
Em 1623, quando Portugal estava nas mãos da dinastia filipina, já apareciam referências ao santo como um militar do exército local. Mas, segundo os registros históricos, a carreira fardada de Antônio começou oficialmente em Portugal durante o reinado de Afonso VI (1643-1683). No período foi concluída a chamada Guerra da Restauração, entre as coroas portuguesa e de Castela – o término do conflito resultou no reconhecimento, por parte da Espanha, da independência de Portugal. Para incentivar o exército nas batalhas contra o domínio de Castela, o monarca militarizou o santo. Afonso VI determinou que ele “fosse alistado no exército, como seu patrono” e “assentasse praça como soldado” – e, claro, lhe fosse pago o salário compatível com a função.
Seus trabalhos militares tiveram início em 1665, quando foi travada a famosa Batalha de Montes Claros, entre portugueses e espanhóis. Com a vitória lusitana, Antônio ganhou a devoção da maior parte dos soldados. A presença de sua imagem nos frontes aumentava o moral dos combatentes.
O sucessor no trono português, Pedro II (1648-1706) decidiu promover o santo. Quando ele ainda era príncipe regente, integrou-o ao Regimento de Infantaria número 2 de Lagos, em 1668. Em 1733, o rei João V (1689-1750) elevou-o ao posto de capitão.
Mas curiosa mesmo é a carta escrita em 1777 pelo major Hércules António de Albuquerque e Araújo de Magalhães, comandante do Regimento de Lagos. Ele pedia à rainha Maria I (1734-1816) que promovesse mais uma vez o santo – alegava que seu desempenho militar era exemplar. “Durante todo o tempo”, diz a petição, “em que tem sido capitão, vai quase para cem anos, constantemente cumpriu seu dever com maior prazer à frente de sua companhia, em todas as ocasiões, em paz e em guerra, e tal que tem sido visto por seus soldados vezes sem-número, como eles todos estão prontos para testemunhar: e em tudo o mais tem-se comportado sempre como fidalgo e oficial.” Magalhães prosseguiu ainda dizendo que “por todos esses motivos” o capitão Antônio seria “muito digno e merecedor do posto de major” ou mesmo de “quaisquer outras honras, graças ou favores” que lhe fossem conferidos pelo reino.
Assim como ocorria em qualquer pedido de promoção do tipo, na carta sobre Santo Antônio o major frisava à rainha que não havia nos registros do Exército nada que o desabonasse, nenhuma informação relativa a “mau comportamento ou irregularidade praticada por ele: nem de ter sido em tempo algum açoitado, preso, ou de qualquer modo punido durante o tempo que serviu como soldado raso no regimento”.
Na ocasião, Maria I não concedeu a promoção e, ao que parece, ignorou o vetusto pedido de Magalhães. Em 1880, sessenta e quatro anos após a morte dela, Antônio tornou-se oficial-general do exército lusitano.
Mas a rainha portuguesa teve papel importante no reconhecimento do santo junto ao Vaticano. Foi por intermédio dela – e o registro está gravado em letreiro na lateral da Igreja de Santo Antônio, em Lisboa – que o Papa Pio VI (1717-1799) concedeu “indulgência plenária”, ou seja, perdão absoluto dos pecados, a todos os que, devidamente confessados e comungados, visitassem o local.
Antes que as histórias militares portuguesa e brasileira de Antônio se cruzem, é preciso recuar no tempo para traçar uma cronologia de sua carreira também no Brasil. Antônio entrou oficialmente para guardas brasileiras ainda antes do que na metrópole. Seu primeiro posto militar teria sido como soldado na Bahia, em 1595.
De acordo com o historiador José Carlos de Macedo Soares, quando uma frota holandesa partiu da Europa para tentar invadir o Brasil, no caminho eles passaram por fortificações erguidas por portugueses no litoral africano. Ali, na ilha de Arguim, hoje Mauritânia, teriam subtraído uma imagem de Santo Antônio, que passaram a carregar a bordo, em um dos doze navios.
No caminho, desrespeitaram e mutilaram a imagem. Por fim, lançaram-na ao mar. Macedo conta que, então, houve uma tempestade, com naufrágio de todos os navios – exceto um, justamente o que havia antes carregado o santo. Este chegou até Sergipe, onde os tripulantes acabaram presos e levados até a Bahia.
Quando os detentos estavam na altura de Itapuã, avistaram a mesma imagem antes atirada ao mar. Estava na praia, em pé. Tida como milagrosa, a estatueta foi levada para uma capela e, em 23 de agosto de 1595, para o convento franciscano de Salvador – fundado dez anos antes.
Segundo o memorialista Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva (1808-1865), desde então o santo passou a ganhar salário de soldado na Bahia. Mais tarde, Antônio seria promovido – primeiro a capitão, depois a tenente-coronel. Há indícios de que só na Bahia o santo tenha chegado a receber quatro salários simultâneos, por atuações em cargos diferentes ao mesmo tempo.
Em 1685, quando tinha acabado de assumir a então capitania de Pernambuco, João da Cunha Souto Maior determinou que se assentasse “praça de soldado a Santo Antônio de Lisboa”. De acordo com o político, os préstimos do santo seriam necessários para auxiliar os combatentes ao Quilombo dos Palmares. Souto Maior determinou que o convento dos franciscanos de Olinda – o mais antigo do país, cuja construção começou em 1585 – recebesse o salário em nome do santo. Não apenas os vencimentos, aliás, mas também o valor correspondente ao seu fardamento. Em 1717, o governador Lourenço de Almeida (1680-1750) promoveu o religioso a tenente – com proporcional aumento de salário, evidentemente.
E se o milagre mais formidável atribuído a Santo Antônio foi o da bilocação, em termos de patentes militares ele se tornou quase onipresente, atuando – e sendo remunerado – por vários exércitos de forma concomitante. Na Paraíba, o santo já tinha o posto de soldado raso quando o responsável pelo convento que ficava com os seus honorários encaminhou a João Maia da Gama – governador de 1708 a 1717 – um pedido de aumento. Para o frade, a graduação de soldado era “pequena, para tão grande santo”. Gama fez que não era com ele: retransmitiu a carta ao rei, João V. E a solução foi um tanto prosaica. A carta régia, emitida em 1709, não promovia o soldado, mas determinava que Santo Antônio vencesse “duas graças de soldados, dobrando-se-lhe a que já tinha, como auxílio aos religiosos”.
No Rio, Santo Antônio já era soldado raso em 1710 quando sua imagem participou da defesa de uma das tantas invasões francesas. Na ocasião, o corsário Jean-François Duclerc e uma tropa de 1.200 mil homens aportaram na Baía de Guanabara. Quando os invasores foram expulsos, o governador Francisco de Castro Morais (1670-1738) promoveu o santo a capitão de infantaria.
O então governador da capitania de Goiás, Marcos de Noronha e Brito (1712-1768), também recebeu um pedido para que fizesse de Santo Antônio soldado de sua capitania. Seu despacho foi favorável, mas dependia de aprovação real. Pouco antes de morrer, João V emitiu a carta régia em 1750. E, em vez de nomeá-lo soldado, determinou que Antônio já começasse a carreira ali como capitão de infantaria.
Solicitação semelhante foi feita na capitania do Espírito Santo. Frei Amaro da Conceição, guardião do convento de São Francisco da Vila de Nossa Senhora da Vitória, fez a requisição. Em 21 de fevereiro de 1752, o governador José Gomes Borges acatou o pedido. Com um adendo: enquanto tardasse a sair a aprovação da metrópole para que o valor fosse pago pela Fazenda Real, o holerite do santo seria garantido graças a vaquinha dos próprios militares – um vintém por mês de cada soldado, dois vinténs de cada oficial.
Em São Paulo, foi coronel – maior patente de sua carreira no país – conforme atesta documento manuscrito registrado na página 154 do livro 17 do Arquivo do Estado. “Faço saber aos que esta minha carta patente virem, que sendo-me presente por parte do provedor, e mais irmão da irmandade do senhor Santo Antônio, ereta na capela filial da Sé desta cidade, que para aumento da devoção do mesmo santo e à imitação do que se tem praticado nas mais capitanias deste Brasil, me pediam que lhe mandasse passar patente de coronel dos Regimentos desta capitania, atendendo a que o sobredito santo é admirável em milagres e singular protetor dos portugueses, e santo do meu nome, muito poderoso para com o senhor dos exércitos, que tem na sua mão. Hei por bem de lhe oferecer como por esta lhe ofereço, humildemente, e com toda a devoção, o posto de coronel das tropas desta capitania de São Paulo, e lhe rogo queira recebê-las debaixo de sua grande proteção”, escreveu, em 5 de janeiro de 1767, o governador Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão (1722-1798), o Morgado de Mateus. “Pelo que ordeno aos oficiais e soldados das tropas de toda esta capitania reconheçam ao glorioso e invicto santo Antônio por seu coronel, e como a tal recorrerão para os prover de remédio em todas as suas necessidades assim temporais como espirituais.”
Com tão alta patente, em São Paulo Antônio nunca precisou ser promovido.
O folclorista Câmara Cascudo ainda registra um caso de Natal, no Rio Grande do Norte. Segundo ele, na Igreja de Santo Antônio da cidade, “anterior a 1763, existe uma imagem do orago com o tratamento popular de capitão, embora desacompanhado de documentos”.
No mesmo século XVIII, o santo recebeu o bastão de comando da colônia do Sacramento, no extremo sul do país. A honraria lhe foi dada pelo governador da capitania do Rio Grande São Pedro, Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara (1742-1801).
A irmandade de Santo Antônio de Pádua de Vila Rica, então capital de Minas Gerais, também pediu e foi atendida. Citando os precedentes espalhados pelo Brasil, a rainha Maria I, em carta de 1799, fez de Santo Antônio capitão de cavalaria dali.
Mas, no início do século XIX, quando as histórias portuguesa e brasileira se entrelaçaram fortemente – com a transferência da família real ao Rio de Janeiro, em fuga das tropas napoleônicas que chegavam a Portugal –, as nomeações militares a Santo Antônio passaram a ganhar peso intercontinental.
Então príncipe regente, João VI promoveu o religioso a sargento-mor de todo o então exército luso-brasileiro. No decreto, de 1810, ele confessou “particular devoção” ao santo e ressaltou que o ato era uma gratidão pela intercessão de Antônio “em prol da monarquia portuguesa, duramente hostilizada” por Napoleão. Três anos mais tarde, uma promoção o fez tenente-coronel de infantaria. Seus procuradores eram os franciscanos do convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro, mosteiro inaugurado em 1620.
Conforme observa Câmara Cascudo, “nos dias de festa, a imagem existente no convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro usava chapéu orlado de arminho, espada, banda e dragonas de oficial superior”.
João VI ainda concederia a Santo Antônio a grã-cruz da Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo, ordem honorífica lusitana criada em 1319, destinada a reconhecer cidadãos de destaque.
A trajetória militar de Santo Antônio no Brasil, contudo, chegaria ao fim com a proclamação da República e oficial separação entre Igreja Católica e Estado. Ainda na gestão do primeiro presidente, marechal Manuel Deodoro da Fonseca (1827-1892), a legitimidade do holerite do santo foi colocada em discussão.
Então ministro da guerra, marechal Floriano Peixoto (1839-1895) emitiu um aviso, em outubro de 1890, determinando que, pelo menos até então, não fosse anulado o decreto de 1814. “Senhor diretor da Contadoria Geral da Guerra”, escreveu Peixoto, “Deferindo a reclamação pelo provincial dos franciscanos, Frei João do Amor Divino Costa, e por essa repartição informada em 24 de setembro último, vos declaro, enquanto por ato especial não for anulado o decreto de 26 de julho de 1814, que conferiu a patente de tenente-coronel de infantaria à imagem de Santo Antônio do Rio de Janeiro, deve continuar a pagar-se o soldo a que tem direito e que até agora tem sido abonado. Saúde e fraternidade.”
Em 1907, contudo, ao fazer um pente-fino nas contas estatais, o delegado fiscal do Tesouro Nacional – por ironia do destino, chamado Antônio de Pádua Mamede – impugnou a inclusão do nome de Santo Antônio nas folhas de pagamento. “Não é lícito que a nação continue a pagar aquele soldo […] concorrendo-se, assim, para conservar a crendice que teve o príncipe regente ao expedir aquelas patentes, sob o fundamento de haver o dito Santo Antônio influído para salvar a monarquia portuguesa da grande crise que então atravessava”, considerou.
O processo foi aprovado apenas cinco anos depois, pelo ministro da Fazenda Francisco Antônio de Sales (1863-1933) – cujo nome, aliás, também é mais um capricho do deus das coincidências. A extinção do salário foi registrada na folha 21 do livro 486 da então diretoria de contabilidade da guerra.
Contudo, não houve ato oficial que revogasse suas patentes. E, mesmo sem salário, o santo seguia como integrante do Exército brasileiro. Em 1924, o presidente Artur Bernardes (1875-1955) despachou ao ministro da guerra, Fernando Setembrino de Carvalho (1861-1947), cobrando providências a respeito. “O coronel Antônio de Pádua vai quase em três séculos de serviço. Nomeie-o general e ponha-o na reserva”, disse, na carta. Reformado, desde então passou a figurar no Anuário Brasileiro, na lista dos oficiais da reserva do Exército. Merecido descanso.
Mas além das fardas, o famoso santo também teve reconhecimentos póstumos na política religiosa do Vaticano. Isso já começou com seu contemporâneo – e canonizador – Papa Gregório IX. “Ninguém na Igreja conhece melhor a Bíblia do que Frei Antônio. Ele é a arca do Testamento e o tesouro da Sagrada Escritura”, afirmou o sumo pontífice.
O Papa Sisto IV (1414-1484), também ele um franciscano da Ordem dos Frades Menores, elogiou a profundidade intelectual de Antônio na carta apostólica Immensa, de 12 de março de 1472. “O bem-aventurado Antônio de Pádua, como astro luminoso que surge do alto, com as excelentes prerrogativas de seus méritos, com a profunda sabedoria e doutrina das coisas santas e com a sua fervorosíssima pregação, ilustrou, adornou e consolidou a nossa fé ortodoxa e a Igreja Católica”, enfatizou no texto.
Outro franciscano, Papa Sisto V (1521-1590) afirmou que “Santo Antônio, pela eminência de seus méritos e das suas virtudes, pela profundeza da sua inteligência, como pelo brilho de sua pregação, fez resplandecer as belezas da Igreja Católica”. “Ele cobriu-a de glória, fortalecendo-lhes as bases e consolidou-lhe o poder”, definiu.
Reconhecendo suas duas denominações – Santo Antônio de Lisboa e Santo Antônio de Pádua – e, ao mesmo tempo, o caráter universal de sua devoção, o Papa Leão XIII (1810-1903) declarou-o “santo de todo o mundo”.
Durante as celebrações dos setecentos anos da morte de Santo Antônio, em 1931, Pio XI (1857-1939) publicou a carta apostólica Antoniana Sollemnia. “O taumaturgo de Pádua levou à sociedade do seu proceloso tempo, contaminada por maus costumes, os esplendores da sua sabedoria cristã e o suave perfume das suas virtudes”, afirmou ele, na epístola. “O vigor do seu apostolado manifestou-se de modo especial na Itália. Foi esse o campo das suas extraordinárias fadigas. Com isso, porém, não se quer excluir outras muitas regiões da França, porque Antônio, sem distinção de raças ou de nações, a todos abençoava no âmbito da sua atividade apostólica: portugueses, africanos, italianos e franceses, a todos, enfim, a quem reconhecesse necessitados do ensinamento católico.”
Pio XII (1876-1958) dedicou ao santo a carta apostólica Exulta Lusitania Felix, de 16 de janeiro de 1946. É esse documento que reconheceu Antônio como “doutor da Igreja universal”, por reunir três fatores considerados essenciais para tal: “santidade insigne, eminente doutrina celeste e declaração pontifícia”, conforme pontuou a epístola.
“Ademais, como Antônio costumava confirmar as suas palavras com passos e sentenças do Evangelho, com pleno direito merece o título de ‘doutor evangélico’”, ressaltou o papa. “De fato, de seus escritos, como de fonte perene de água límpida, não poucos doutores e teólogos e oradores sacros têm extraído, e podem continuar a extrair, a sã doutrina, precisamente porque veem em Antônio o mestre e o doutor da santa mãe Igreja.”
No documento, o sumo pontífice reconheceu que sua festa nunca deixou de ser celebrada “em todas as famílias franciscanas e nos cleros das dioceses de Pádua, de Portugal e do Brasil”.
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