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Foi na condição de custódio de Limoges que Antônio participou do capítulo de 1227, aquele encontro que serviria para celebrar a memória do fundador morto há tão pouco tempo e, ao mesmo tempo, escolher o novo ministro-geral para a Ordem dos Frades Menores. Mas, em seu coração, já havia manifestado uma vontade: a de não mais retornar à França, e sim voltar a ser um pregador andarilho pelas terras italianas.
O frade chegou a Assis em 27 de maio. Reencontrou velhos conhecidos, como Elia da Cortona e Giovanni Parenti, aquele que tinha intermediado sua transferência dos agostinianos para os franciscanos uma década atrás. Ambos eram fortes candidatos à sucessão de Francisco no comando da ordem.
Nos bastidores, a escolha de Frei Elia era dada como certa. A proximidade dele com Francisco havia sido grande, sobretudo nos últimos anos de vida do fundador. Mesmo que eles divergissem em alguns pontos – sendo Elia menos radical quanto à permissão para algumas posses –, existia muita confiança na relação. Não à toa, Francisco o havia nomeado vigário-geral.
De acordo com os registros da Ordem dos Frades Menores, foi a ele que Francisco dedicou aquela que foi considerada sua última bênção, pouco antes de morrer.
“Pelas suas mãos, meu vigário, o Altíssimo multiplicou o número de meus frades, meus filhos. Dessa forma, mais uma vez abençoo a você também, pois quando abençoo a eles, é a você, meu vigário, que neles estou bendizendo. Que Deus, Nosso Senhor, rei de todas as coisas, lhe conceda todos os favores, no céu e na terra”, teria dito o fundador da ordem. “Eu lhe deixo a minha bênção. E até mais que isso, porque o Todo Poderoso lhe dará tudo aquilo que eu não tenho poder nem forças para lhe ofertar. Que o Senhor se lembre de suas canseiras e de seus trabalhos e lhe dê a recompensa que concede aos justos. Que você reencontre as bênçãos que desejar, que seja atendido em tudo o que pedir.”
Quando abriram as urnas, entretanto, revelou-se que Giovanni Parenti estava eleito. A escolha da maioria era calcada em um consenso: o de que Parenti melhor seguia os ideais franciscanos de pobreza. Ao mesmo tempo, era homem letrado, formado em Bolonha. Assim como Antônio, um intelectual – dos poucos que integravam a ordem.
Tão logo assumiu, Parenti prosseguiu o capítulo com a missão de reorganizar as províncias. A Antônio coube o cargo de ministro provincial da Romanha, região que abrangia boa parte do norte da Itália. Sediado em Milão, seria responsável por supervisionar as atividades franciscanas em um leque abrangente de cidades. Ele ainda passaria a acumular a função de reitor do centro de estudos mantido pelos franciscanos em Bolonha.
Satisfeito com os encargos, Antônio não se acomodou. Em vez de ficar despachando de Milão, preferiu perambular pelas cidades, circular, interagir com as pessoas e, claro, pregar a palavra de Deus da maneira como ele gostava de fazer. “Nalgumas terras, a notícia da sua visita chegou até hoje alumiada pelo brilho fulgente de algum sermão que, por qualquer motivo, o entusiasmo popular doirou de maravilhas, pois Santo Antônio continuou a pregar às multidões de hereges e de fiéis sempre que se lhe deparou ocasião”, afirma Fernando Félix Lopes.
Além das já citadas Bolonha e Milão, há registros de suas passagens por Veneza, Bergamo, Ferrara, Modena, Verona, Trento, Pádua, Varese, Pugliola, Oreno, Gemona, Cuneo, Florença, Udine, Trieste, Gorizia, Vicenza, Bassano e Como. Mas é de se imaginar que ele tenha conhecido muitas outras pequenas cidades, vilas e povoados pelo trajeto. Afinal, se estava em seu caminho, não teria o religioso parado para um descanso, uma oração ou até mesmo para fazer um sermão em povoados como Paderno7 ou Magenta? Ou no burgo que se formava no entorno do feudo de Desio, hoje o município de Senago? Fundou muitos conventos no norte da Itália e também abriu cursos de oratória e de alfabetização.
Todos os percursos eram realizados a pé, seguindo os preceitos de São Francisco, que recomendava que seus frades não andassem a cavalo, “a não ser em caso de necessidade clara ou de enfermidade”. Antônio atendia a doentes e pobres, escrevia sermões, celebrava missas, ouvia confissões e pregava. Tinha uma rotina ocupada: saía antes de o sol nascer e só se recolhia com a noite já escura. Lembrava-se das palavras do fundador, que atentava para a necessidade de sempre estar “disposto a se deixar importunar e aborrecer por todos, e a todos atender com a melhor das disposições e paciência”.
Cronistas antigos chegam a afirmar que ele teria caminhado até o extremo sul da Itália e, de barco, mais uma vez cruzado até a Sicília, terra onde primeiro aportou em solo italiano tanto tempo atrás. Segundo tal versão, o gesto seria não só um agradecimento pelo seu destino como também para que fundasse mosteiros na ilha. Mas não há provas e, analisando racionalmente, seria improvável que o religioso tivesse retornado ali naqueles tempos em que as distâncias eram tão maiores. De qualquer forma, o Padre Giustiniano Scrinzi escreve que “chegando o santo à Sicília edificou conventos em Cafalu, Noto e Lentini e isso é atestado pela tradição somente”.
Se a Sicília está mais para fantasia do que para fato, verdade era que Pádua constava sempre dos roteiros do franciscano. Uma carta enviada a ele, na qualidade de ministro provincial, pelo Papa Gregório IX em 20 de outubro de 1227 dava a entender que ele andava muito por ali. O sumo pontífice mencionou o papel dele no “combate às raposas que tentam destruir a vinha do Senhor” naquela área, citando especificamente a “diocese de Vicenza e regiões circunvizinhas”.
Os itinerários antonianos, porém, nem sempre eram vicejados de sucesso. Em Udine, foi vítima da ira de cátaros e, diante de vaias, ofensas e pedras, precisou interromper uma pregação e voltar para o convento. “Uma única nota de entristecida vergonha nesta corrida triunfal”, comenta Lopes. “Para que melhor o ouvissem, o santo subiu a uma árvore e foi dali que começou a pregar. Mas os cátaros hereges tiveram artes de amotinar o auditório que abriu num berreiro de chuvas e de apupos. E porque o santo, destemido, continuava o sermão, muitos pegaram pedras e à pedrada o obrigaram a descer do púlpito improvisado.”
Quanto à postura, o Antônio ministro provincial em nada diferia do Antônio do início de carreira. Sua humildade saltava aos olhos daqueles com quem se deparava. Ele fazia questão de abolir qualquer protocolo hierárquico e queria ser tratado como igual, seja nas roupas que vestia, seja nas tarefas do dia a dia. Assim, quando se hospedava em um convento, tratava ele próprio de ajudar na cozinha, na faxina e também nos cuidados aos pobres e doentes.
“Afinal, Jesus disse a Pedro que era preciso pastorear as ovelhas. Jamais ordenou que as tosquiassem”, costumava afirmar Antônio.
Para o frade, alguns valores precisavam ser inerentes à própria vocação sacerdotal. Um clérigo tinha de cultivar pureza interior, ser pleno de bondade para com os necessitados, disseminar a paz entre os povos, agir sempre com modéstia e apresentar hábitos irrepreensíveis. Ele acreditava que, exceto por aquilo necessário para viver, todos os bens à disposição de um religioso na verdade pertenciam aos mais pobres – e apossar-se deles seria um roubo, e assim um sacerdote precisava ser julgado. Antônio tinha por lema que era melhor ser amado do que temido porque, “com amor, até as coisas mais duras e pesadas se tornam doces e fáceis de carregar”, enquanto “o medo torna intolerável mesmo o que é leve”.
O período também foi rico em relatos milagrosos. Como no caso do homem que, antes da confissão, teria escrito todos os pecados em um pedaço de papel – pois, segundo ele, eram tantos que não seria capaz de enumerá-los mentalmente ao sacerdote. Antônio ouviu tudo de forma atenta e lhe deu a absolvição. Quando o fiel olhou para o papelzinho, nada mais estava escrito; o perdão havia apagado as faltas, inclusive das anotações.
Em Ferrara, conta-se que Antônio foi chamado para intervir em uma briga de casal. O marido ciumento não acreditava que o recém-nascido no colo da mulher era seu filho legítimo. O franciscano virou-se então para o bebê, pediu para interromper o choro e responder quem era seu verdadeiro pai: “Este é meu pai!”, disse o recém-nascido, apontando para o homem. “Está vendo?”, Antônio voltou-se para o pai. “Agora assuma a criança e dê todo o amor de que é capaz à sua mulher, porque ela merece mais do que ninguém.”
Também se tornou famoso o caso do menino que havia batido na própria mãe, chutando-a. Ao atendê-lo em confissão, diante da gravidade do feito, Antônio foi severo com o garoto. Lembrou a passagem bíblica que diz “se o seu olho o encandaliza, arranca-o”.
O rapaz levou a advertência ao pé da letra. Profundamente arrependido, pediu desculpas à mãe e, em seguida, pegou um machado e cortou fora a própria perna. A mãe ficou desesperada e foi ter com o sacerdote: “Padre, como o senhor me faz uma coisa dessas? Prefiro apanhar do que ver meu filho sofrendo assim!”.
O franciscano manteve a calma. Foi até a casa, pegou a perna do menino no chão e segurou-a no local cortado com a mão esquerda. Com a direita, fez o sinal da cruz e rezou. Tudo se fixou novamente, sem nenhuma marca, como se o rapaz nunca tivesse nem sequer se machucado.
Há relatos, ainda, que indicam que Pedro de Verona (1205-1252), homem nascido em família cátara e que depois iria se tornar um santo mártir católico, converteu-se depois de ter conhecido Antônio e ouvido uma de suas pregações.
Em 1230, Antônio partiu novamente para Assis. Participaria de mais um capítulo geral da ordem. Os franciscanos tinham muitos motivos para celebrar. O fundador, Francisco de Assis, havia sido canonizado santo em 16 de julho de 1228, apenas um ano e nove meses depois da sua morte, pelo Papa Gregório IX. Naquele mesmo ano, uma basílica começou a ser erguida em Assis, para abrigar seus restos mortais – o caixão do santo foi transferido para o interior dessa nova igreja em 23 de maio de 1230.
Mas o franciscano português estava cansado de suas atividades burocráticas. Sentindo que a saúde não era mais a mesma, estava pronto para aproveitar o encontro para pedir dispensa do papel de ministro provincial. Queria se dedicar de modo especial às pregações e ao trabalho pastoral – ouvindo confissões e atendendo ao povo. “Talvez sentisse já o começo da doença a que em breve sucumbiria”, afirma Frei Basílio.
De seus colegas frades menores obteve o aval de que precisava. Mas, obediente que era das hierarquias católicas, Antônio estava decidido a solicitar ao próprio papa a demissão da função. Ocasião para isso haveria: seu nome integrava uma comitiva de oito franciscanos – inclusive o ministro-geral Giovanni Parenti – que deveria se apresentar a Gregório IX para prestar esclarecimentos sobre a regra seguida pela ordem e também discutir a importância da recente canonização de Francisco.
No encontro com o sumo pontífice, Antônio voltou a impressionar a todos por sua erudição e seu manejo das palavras. À cúpula da Igreja, ele parecia saber toda a Bíblia de cabeça. Ou melhor: de coração. De acordo com a Legenda assídua, o frade destacou-se já na primeira audiência com o pontífice. “Tendo o ministro da ordem enviado o servo de Deus Antônio à Cúria pontifícia, por motivo urgente da ordem, tanto o prendou o Altíssimo de Sua graça, junto dos veneráveis príncipes da Igreja, que a sua pregação era escutada com sumo encanto pelo sumo pontífice e toda a assembleia dos cardeais”, pontua o texto. “Na verdade, proferia coisas tais e tão profundas com desusada eloquência sobre as escrituras, que pelo próprio papa seria denominado com uma prerrogativa familiar: arca do Testamento.”
Ao ouvir do franciscano o pedido de dispensa do cargo, Gregório IX rebateu oferendo-lhe o título de cardeal. E que ele ficasse em Roma, onde seus conhecimentos seriam de grande valia para a Igreja. “Mas Antônio”, conta Frei Basílio, “recusou a honra, preferindo à púrpura o pardo burel franciscano que mais condizia com seu espírito humilde.” Percebendo-o irredutível, o papa efetivou sua demissão.
Já havia uma admiração mútua entre ambos, vale ressaltar. Gregório IX era o nome assumido, quando se tornou papa, pelo cardeal Ugolino dei Conti di Segni – mesmo que havia doado uma casa para os franciscanos criarem um centro de ensino em Bolonha, justamente onde Antônio tanto ensinou.
Antes de liberar o frade, contudo, o papa pediu que ele aproveitasse a estadia para pregar na igreja de São João de Latrão. Antônio não pestanejou: discursou contra os luxos da própria Igreja e o abuso dos bens materiais – que era “verdadeira doença de muitos clérigos”.
E então houve mais um milagre. Ouviam-no na igreja autoridades católicas e peregrinos de diversas partes do mundo, gente que falava as mais diversas línguas: inglês, alemão, francês, grego, eslavo… E todos compreenderam os dizeres de Antônio, como se o religioso estivesse pregando no idioma natal de cada um.
O fenômeno lembrava aquele descrito nos Atos dos Apóstolos, livro bíblico seguinte aos quatro evangelhos. “Ao cumprir-se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente veio do céu um ruído, como que de um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. E lhes apareceram umas línguas como que de fogo, que se distribuíam, e sobre cada um deles pousou uma. E todos ficaram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que falassem. Habitavam então em Jerusalém judeus, homens piedosos, de todas as nações que há debaixo do céu. Ouvindo-se, pois, aquele ruído, ajuntou-se a multidão; e estava confusa, porque cada um os ouvia falar na sua própria língua. E todos pasmavam e se admiravam, dizendo uns aos outros: Pois quê! Não são galileus todos esses que estão falando? Como é, pois, que os ouvimos falar cada um na própria língua em que nascemos? Nós, partos, medos, e elamitas; e os que habitam na Mesopotâmia, a Judeia e a Capadócia, o Ponto e a Ásia, a Frígia e a Panfília, o Egito e as partes da Líbia próximas a Cirene, e forasteiros romanos, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes – ouvimo-los em nossas línguas, falar das grandezas de Deus”, diz o texto.
Quando esses cidadãos voltaram para seus países de origem, levaram consigo a história. E a fama de Antônio espalhou-se ainda mais.
Oficialmente dispensado do cargo de provincial, Antônio decidiu que Pádua seria sua casa. Afinal, tinha obtido liberdade de escolha para isso. E gostava de lá – era uma cidade onde sempre se sentia bem acolhido durante as viagens. No verão de 1230 já estava instalado.
A recepção lhe foi perfeita. O bispo Jacopo Corrado (?-1239) já havia providenciado a cessão de uma igrejinha para os franciscanos, a Santa Maria Mater Domini, bem como um terreno anexo para a construção de um convento. O sacerdote franciscano Luca Belludi tornou-se um companheiro fiel e auxiliar de Antônio nos últimos meses da vida – tendo inclusive ajudado o santo na redação de sermões.
Havia uma expectativa grande também por parte da população. Antônio era amado por ali e saber que a cidade tinha sido escolhida por ele para viver, inevitavelmente, enchia o povo de orgulho. Em Pádua, Antônio voltou a lecionar – deu aulas de teologia na famosa universidade inaugurada na cidade em 1222. Também se dedicou a realizar homilias e a pregar em público.
Na virada do ano 1231, Antônio estava cansado fisicamente. Parecia que seu corpo já não mais suportava a vida frugal e cheia de atividades a que ele se impunha. Mesmo assim, o sacerdote seguia seus princípios: alimentava-se pouco, apenas sopa de legumes e pão, dormia numa pequena cama, estreita e mais curta que o corpo, e exigia de si uma rotina extenuante de orações.
Talvez antevendo que aquela seria sua última Quaresma, Antônio decidiu dedicar o período pré-pascoal a sermões diários, cada dia em uma igreja diferente da cidade. “Efetivamente tão grande fervor de pregar se apossou dele, que se disporia a pregar durante quarenta dias. E é indubitável que o fez. E coisa admirável! Sendo ele um homem atormentado por uma certa obesidade natural, e com achaques contínuos, todavia, por causa do ardoroso zelo das almas, permanecia muitas vezes em jejum, pregando, ensinando e ouvindo confissões, até ao pôr do sol”, atesta a Legenda assídua.
Com a intensidade de tal rigorosa rotina, sua saúde ficava cada vez mais debilitada. O franciscano começou a travar lutas com o próprio demônio – pelo menos era assim que relatava aos mais próximos. Certa noite, quando tentava dormir, sentiu que o diabo agarrava seu pescoço. E o fazia com força, quase o estrangulando. Imaginando que era chegada sua hora, o sacerdote encomendou sua própria alma para a Virgem Maria – de quem foi devoto ardoroso durante toda a vida. E a santa teria dado forças para que ele fizesse o sinal da cruz e, assim, afastasse o inimigo.
Suas pregações da Quaresma, contudo, começaram a atrair fervorosas multidões. Milhares de pessoas. Dezenas de milhares. Viu-se obrigado a, como já havia feito na França, evangelizar em espaços abertos, ao ar livre.
Pádua era uma cidade movimentada e bastante rica. Havia ficado conhecida pelos prazeres mundanos. E também por ser local onde aproveitadores tentavam ganhar dinheiro fácil – conta-se que a agiotagem cobrada em Pádua era de 65% ao ano, contra os 25% comuns em outras paragens. Não à toa, financistas de Florença costumavam ir para lá para fazer esse tipo de negócio.
Antônio procurava cutucar as feridas sociais. Usava o púlpito para criticar e condenar tais comportamentos, da ganância à luxúria. E os relatos são de que, dado o fervor e o frenesi provocado pela maratona de fé promovida pelo sacerdote naquela Quaresma, Pádua experimentou um raro momento de paz. Ladrões pareciam em trégua: não roubavam; agiotas perdoavam velhas dívidas; inimigos davam-se as mãos. Todos os que ouviam seus sermões pareciam transformados.
“Um outro fruto da pregação, que vinha, porém, em prejuízo do santo, era a íntima comoção dos corações”, relata Giustiniano Scrinzi. “Tinha-se e despertava-se, poderosa, a necessidade de paz, de confissão, de perdão. As consciências que, até então, se tinham entorpecido no mal e na ignorância, ao avistar o bem e a lei se entrechocavam. Porém a capacidade intelectual não era, assim, tão forte, que encontrasse meios de aquietar os decompostos alvorotos do coração: a palavra que tinha suscitado as dúvidas e as angústias da continuação da má vida não chegava para acalmar as almas, com a instrução, e elas, encontrando-se incapazes para aplicar as leis gerais aos casos práticos, de segregar as circunstâncias acidentais, que modificam ou mudam a lei, sentiam a necessidade do conselho prático e adequado à pessoa, de um guia à própria consciência, de uma educação, como a uma criança. Tinha-se, em suma, necessidade da confissão.”
A Legenda assídua dedica-se bastante a contar sobre esse momento em que a fé de Antônio parecia embeber toda a comunidade. “Efetivamente, depois que Antônio, o servo de Deus, viu abrir-se-lhe a porta da pregação e o povo em multidão compacta a ele acorrer de todos os lados, qual terra sequiosa de água, resolveu que se organizassem encontros diários pelas igrejas da cidade. Mas, como em virtude da multidão dos homens e mulheres que acorriam, o recinto das igrejas não bastava para receber toda a gente, uma vez que o número crescia sempre cada vez mais, retirou-se para locais planos e espaçosos”, diz o texto.
“Das cidades, das praças fortes e aldeias, vinha uma multidão quase inumerável, de um e outro sexo, todos com suma devoção, sequiosos da palavra da vida, pondo a sua salvação com firme esperança na sua doutrina. Efetivamente, erguendo-se por volta da meia-noite, disputavam entre si qual seria o primeiro a chegar e, acesas as lanternas, corriam ansiosos, para o local, onde ele ia pregar. Cavaleiros e matronas nobres poder-se-iam ver a chegar em massa, na escuridão, e aqueles que se tinham acostumado a trabalhar grande parte do dia, despertos, acalentando os efeminados membros do corpo, no torpor, com mantas macias, como dizem, sem qualquer custo antecipavam-se à pessoa do pregador”, prossegue a narrativa.
“Compareciam os velhos, acorriam os novos, homens e mulheres simultaneamente, de toda a idade e condição; todos eles, depois de haverem deposto os vestidos de gala revestiam-se, por assim dizer, de hábito religioso. Por fim, até o venerável bispo dos paduanos seguiu com devoção à pregação do servo de Deus, Antônio, e, havendo-se tornado sinceramente modelo da grei, exortou-a a ouvir com o exemplo da humildade”, conta ainda o documento. “Todos e cada um escutavam com tão grande desejo o que dizia que, não obstante muitas vezes, como consta, assistirem à pregação 30 mil homens, nem sequer se ouvia um sinal de clamor ou murmúrio de tão grande multidão; pelo contrário, num silêncio prolongado, como se fora um só homem, todos escutavam o orador com os ouvidos da mente e do corpo atentos. Até os próprios mercadores ou proprietários de lojas de qualquer espécie, onde se vendem as mercadorias, pelo grande desejo de o ouvir, só, terminada a pregação, expunham as mercadorias aos transeuntes.”
O relato aborda também como a população tinha verdadeira adoração pelo frade. “No fim, no calor da devoção, as mulheres, de tesouras em punho, cortavam-lhe a túnica na ponta da franja e, quem pudesse ao menos tocar-lhe na franja do hábito, tinha a convicção de que haveria de ser feliz. Em vez disso, não poderia defender-se de um punhado de homens que se fizeram para ele, se não fora resguardado por um numeroso grupo de jovens alentados, ou não espreitasse solícito o local por onde fugir ou ele próprio, depois de a multidão ter debandado, não esperasse a melhor ocasião”, afirma a Legenda assídua. “Chamava os desavindos à reconciliação fraterna; prendava os cativos com a liberdade; obrigava a restituir as usuras e as rapinas violentas, e se as casas e os campos se encontrassem penhorados, fosse o preço colocado a seus pés e, por deliberação sua, todas as coisas roubadas, fosse a rogo ou ajuste de preço, fossem restituídas aos espoliados. Proibia também às meretrizes a sua vida nefanda e escandalosa e arredava os famosos ladrões e facinorosos do ilícito contato do alheio. E deste modo, havendo levado a bom termo o curso dos quarenta dias, amontoou diligentemente uma grada colheita para o Senhor.”
Houve ainda um efeito prático na legislação de Pádua. Em 15 de março de 1231, o município decretou que ficava “doravante ordenado que ninguém seja detido ou colocado em cárcere por motivo de dívida passada, presente ou futura, sob a condição de que renuncie aos seus bens”. “Tal ordenamento se aplica tanto ao devedor como a quem lhe faça as vezes de fiador”, prossegue o documento. Com um adendo importante: “esta lei se faz movida por instâncias do venerável Frei Antônio, bem-aventurado irmão da Ordem dos Frades Menores”.
Outra atividade a que o sacerdote se dedicava com especial empenho era tentar convencer pais a não fazerem mais casamentos arranjados, comuns à época por interesses financeiros. Acredita-se que esse seja um dos motivos de sua fama póstuma como santo casamenteiro – no gesto de tentar coibir os matrimônios que serviam apenas como negócio, ele promovia o amor verdadeiro dos casais.
Todos esses esforços agravaram ainda mais o quadro de saúde de Antônio. O frade estava definhando a olhos vistos. Parecia não aguentar mais. Seu plano original era tirar um mês de férias, em retiro, apenas em julho. Entretanto, no início de maio, notou que estava no limite. “Tantos dias a falar em longos sermões, as horas a fio passadas no confessionário e os incômodos da doença, que mais e mais se acentuavam, fatigaram-no demasiadamente”, aponta Frei Basílio.
Então ele decidiu escrever ao ministro provincial pedindo para repousar em uma ermida retirada. Camposampiero, a vinte quilômetros de Pádua, seria o local ideal. Havia ali uma capela simples, anexa a uma cabana que funcionaria como pouso. Antônio redigiu a solicitação e deixou sobre a mesa para remeter ao superior no dia seguinte. Mas não encontrou mais a carta.
Como era de seu feitio, preferiu acreditar nos desígnios de Deus. Por certo, se a carta se perdera, era porque não cumpria a ele interromper as atividades antes do previsto.
Mas qual não foi sua surpresa quando, dias depois, recebeu uma resposta do provincial? Milagrosamente, a carta que ele nunca remeteu foi entregue ao superior. E o mesmo concordava: era importante que Antônio se retirasse, descansasse, fosse mesmo para um refúgio em Camposampiero.
Dessa história da missiva que foi ao destino certo sem que ninguém a levasse, veio o hábito antigo, ainda cultivado por algumas pessoas, de escrever as iniciais S.A.T.G. no verso de cartas. Significa “Santo Antônio te guie”.
Em 19 de maio de 1231, Antônio partiu de Pádua. Estava bastante fraco. Tossia muito e, a cada vez, perdia um pouco de sangue – quadro conhecido como hemoptise. A hidropisia, ou seja, aquele acúmulo anormal de líquidos no corpo do qual ele sofria há anos, era sentida de maneira intensa, profundamente incômoda. Seu organismo parecia querer cobrar a conta por uma vida de tantas privações e dificuldades, jejuns severos, rotina puxada e pouco cuidado.
A igrejinha ficava nos domínios do conde Tiso VI (?-1234), conhecido como Tiso Maggiore ou Tisone. O político, oriundo de importante família feudal, nutria grande admiração por Antônio e era considerado amigo dos franciscanos de modo geral.
Antes de recolher-se na simplória cabana, o religioso decidiu visitar o nobre. Conversaram muito sobre questões cristãs e, noite já avançada, o conde insistiu: pelo menos naquela noite, que Antônio dormisse ali – já havia até mandado arrumar um aposento para ele. O franciscano dispensou a janta: comeu somente pão e água.
Apenas tempos mais tarde, Tisone relatou o que ocorreu naquele dia. Disse que, depois que todos da casa já estavam em seus quartos, ele decidiu verificar se o ilustre hóspede não precisava de algo. Então, viu uma luz forte, cuja fonte não podia ser nem vela nem tocha. Antônio estava em pé no meio do cômodo, com um menino no colo. A criança tinha uma aura celestial e fazia carinhos no rosto do frade – que retribuía os afagos com beijos em sua testa. Era o Menino Jesus.
Seria por conta desse episódio que as representações sacras de Santo Antônio comumente trazem-no com uma criança nos braços.
No dia seguinte, a caminho da capela, Antônio avistou uma nogueira imensa e, admirado, teve uma ideia: iria construir ali sua cela, um quarto de madeira para morar entre os galhos da árvore. Tisone ficou sabendo dos desejos do amigo e mandou os criados executarem a obra. Não apenas um quarto para ele, como também outros dois, em árvores próximas, para irmãos franciscanos que estivessem auxiliando o famoso sacerdote.
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