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O caminho da Sicília até Assis não era fácil. Primeiro, Antônio e os demais religiosos da caravana precisaram conseguir carona com barqueiros para saltar da ilha para a costa italiana. Depois ainda havia uma longa caminhada pelas planícies, de povoado em povoado, até chegar à terra de São Francisco, na Úmbria – foram quase novecentos quilômetros pela bota italiana.
Para Antônio, a viagem também serviu para que fosse aprendendo os dialetos italianos. Ele tinha facilidade para os idiomas e cada parada lhe era oportunidade para afinar a língua de acordo com o povo.
Seguiam apressados, porque o capítulo geral tinha data marcada. Mas não ignoravam os apelos das comunidades. “Sabiam de todos os leprosos e iam até eles a cuidá-los e a consolá-los com palavras de resignação cristã. Mesmo levados na ânsia de rever o pai e fundador Frade Francisco, não sabiam correr os bons dos frades: constasse de alguém precisado de um socorro ou de um carinho, e ficavam, esquecidos, a atender”, aponta Fernando Félix Lopes.
Antônio estava feliz porque finalmente iria ver o fundador pessoalmente. Cada vez que ouvia alguma história dele, mais o admirava como modelo de pobreza, fé e amor ao próximo. Foi no trajeto que soube de seus companheiros que, certa vez, Francisco debateu com o bispo de Assis sobre a decisão de viver sem quaisquer bens materiais. “Se os tivéssemos, precisaríamos de armas para defendê-los”, teria dito o santo. Também se contava que era muito difícil manter o fundador vestido, pois ele tirava as roupas, sem pestanejar, e as dava sempre que se deparava com algum miserável em piores condições.
Aquele capítulo, aliás, seria dos mais importantes. Um ano antes, Francisco havia renunciado ao posto de vigário-geral da ordem, em franco crescimento – como fundador, seguia como ministro-geral. Seu sucessor, Pietro Cataneo, entretanto, tinha morrido em março. O vácuo no poder fora interinamente assumido por Frei Elias da Cortona (1180-1253), um líder um tanto polêmico para os franciscanos, porque não era tão rigoroso com relação à ausência de posses.
A reunião geral iria decidir não só quem seria o vigário-geral como também de que maneira ficariam as demandas de construir ou não casas menos rústicas para os religiosos e se a ordem deveria ou não aceitar os bens a ela doados. Conta-se que Francisco tinha ficado chocado quando viu que irmãos estavam morando em uma bela residência em Bolonha e acabou mandando que os frades de lá saíssem.
Aqui cabem parênteses. A tal casa havia sido doada a eles pelo então cardeal Ugolino dei Conti di Segni (1170-1241). Ex-estudante de direito da Universidade de Bolonha, o religioso tinha fortes ligações com a cidade e grande apreço pelos franciscanos. Cedeu o imóvel não apenas para que eles ali vivessem como também para que criassem nele um centro de ensino de teologia, formação de pregadores e outros estudos religiosos.
Outra questão pendente era a necessidade de oficializar um regulamento escrito para a ordem. Desde que o Papa Inocêncio III (1161-1216) havia aprovado a existência dos franciscanos, a regra seguia sendo oral. Mas segmentos do catolicismo viam com reservas essa informalidade. Francisco já havia concordado neste ponto: colocaria tudo no papel.
Por fim, o capítulo se dedicaria a instruir os irmãos sobre as condutas que deveriam ser adotadas em suas andanças. O caráter itinerante de sua vocação, combinado com as vestes puídas e o hábito de pedir esmolas, não raras vezes suscitava reações agressivas. Era comum que frades fossem zombados, agredidos e pilhados. Os franciscanos eram firmes: jamais opor resistência; ao contrário, oferecer o pouco que tivessem consigo. Em geral, surpresos com tal reação, os larápios costumavam pedir desculpas e, arrependidos, devolver a eles o que tinham antes tomado.
Na véspera de Pentecostes, Assis reunia cerca de três mil franciscanos. Eles acamparam – usando esteiras para dormir – ao redor da pequena igreja conhecida como Porziuncola, fundada no século IV e considerada lugar sagrado da ordem franciscana. Acompanhavam ainda o encontro outras duas mil pessoas, entre autoridades religiosas – cardeais e bispos –, civis e curiosos em ver Francisco.
A população oferecia comida, bebida e pouso para os tantos peregrinos. Segundo relatos de Frei Giordano da Giano (1195-1262), um dos participantes do encontro, tamanha era a voluntária colaboração dos habitantes que, “passado o sétimo dia do capítulo, os frades se viram obrigados a fechar as portas do encontro e não aceitar mais nada”. “Mesmo assim, as vitualhas6 já aceitas ainda lhes deram sustança e aconchego por mais dois dias”, completa o religioso.
Nesse contexto que lhe era completamente novo, Antônio era só mais um. Frei Basílio lembra que o português “chegou à grande assembleia como um desconhecido e o seu aspecto, mal restaurado o corpo das fadigas extenuantes que sofreu, fez com que lhe ligassem pouca importância”. “Também nisso via o santo a vontade de Deus, cujos desígnios imperscrutáveis já havia experimentado”, acrescenta o biógrafo.
Ainda bastante fraco e magro, tamanhas as dificuldades anteriores, o religioso assistiu a todo o capítulo com admiração. Compartilhava com aqueles irmãos os mesmos valores e o apreço à simplicidade e à humildade.
Mesmo sendo o fundador da ordem, Francisco dava mostras constantes de que se sentia – e queria ser tratado – como um igual. Durante o capítulo, fazia a simples função de auxiliar dos bispos. Leu o Evangelho na primeira missa e apenas na última das celebrações ousou fazer a homilia. Então, lembrou o Salmo 143 e enfatizou a importância dos valores da caridade, da castidade, da paz, da pobreza e da obediência.
Quando Frei Elias leu um relato sobre o destino dos cinco mártires do Marrocos e começou a elogiar suas virtudes, Francisco o advertiu que era melhor se conter para que aquela homenagem não se configurasse fonte de orgulho, vaidade nem arrogância.
No dia 8 de junho, com a conclusão do capítulo, Antônio se viu sem rumo mais uma vez. Como não conhecia ninguém, terminou sem convite para integrar alguma das províncias. “Tão grande foi sua reserva que na distribuição dos capitulares sobre os conventos e províncias nenhum superior o pediu para sua comunidade”, relata Frei Basílio. Decidiu ter com Frei Graziano, então provincial da Romanha, na Itália setentrional, pedindo a ele lugar em algum convento de sua região. “Por acaso, já é ordenado sacerdote?”, o superior lhe perguntou, ciente e preocupado com a falta de padres em sua ordem. “Sim, sou.”
Graziano pediu permissão ao Frei Elias, confirmado no capítulo como vigário-geral, e levou Antônio com ele. Determinou que o religioso português fosse para o mosteiro de Montepaolo, a sete quilômetros de Dovadola, onde viviam quatro ou cinco irmãos, nenhum deles padre. Ali, Antônio poderia celebrar missa, ministrar a Eucaristia e ouvir confissões.
Na região dos montes Apeninos, os franciscanos viviam de esmolas e hortaliças do campo. Todos cuidavam do casebre e saíam diariamente para mendigar e cuidar dos doentes. Conforme a regra franciscana, dois deles tinham o papel de “mães”, ou seja, zelavam também pelos demais.
Quando entrou para a comunidade, Antônio pediu para ser incumbido das tarefas de faxineiro e lavador de pratos. “Da sua boca não se ouvia alusão alguma aos conhecimentos literários, que lhe haviam sido ministrados, nenhuma jactância da sua condição eclesiástica; antes, dizia alto querer saber e desejar ardentemente abraçar toda a ciência e inteligência que a torna cativa para a levar unicamente à obediência de Cristo, e este crucificado”, afirma a Legenda assídua.
Quis ele passar os primeiros tempos dedicando-se a orações contemplativas em uma caverna, para a qual levava apenas pão e água. O retiro serviria para dar maturidade à sua vocação. Antônio teria sido tentado diversas vezes pelo demônio, que o impelia a desistir da missão religiosa. Manteve a firmeza, chamando tais ímpetos de “vampiro que bebe o sangue das almas” e “aranha que suga as almas que caem em sua teia como as moscas”.
Ao fim de uma dessas jornadas, quando voltava para o eremitério, acabou não aguentando e desabando sem sentidos. Foi encontrado e socorrido por um dos irmãos franciscanos. A partir de então, por segurança, todos os dias um deles era designado a ir buscar Antônio na gruta.
Essa rotina de rigorosa penitência durou cerca de um ano, período em que Antônio pouco abriu a boca. Havia se tornado um homem que cultivava o silêncio – assim refletia, meditava e conversava com Deus. Então ele foi designado a ir até Forli, cidade próxima, onde acompanharia a ordenação de novos padres, oriundos tanto da ordem franciscana quanto da dominicana. Como estes últimos eram mais afamados como pregadores, o bispo solicitou para um deles ser o orador da cerimônia. Hesitantes, todos pediram dispensa da empreitada, alegando que não haviam preparado nada e não se sentiam prontos para o improviso.
Aleatoriamente, o bispo determinou que Antônio assumisse a voz. Naquele meio, ninguém conhecia seu passado erudito. Ninguém poderia imaginar que aquele jovem religioso português, franciscano, maltrapilho e de raras palavras fosse dotado de uma excelente verve oratória.
Antônio começou falando em voz baixa, quase sussurrando. Estava desacostumado com o púlpito. “Mais a mais, apesar de ter de memória quantos livros lera e de andar habituado a discorrer sobre as coisas do espírito, conheciam-no os frades mais por um perito em lavar a louça da cozinha do que na exposição dos mistérios da Escritura”, diz a Legenda assídua. Aos poucos, conforme ia se sentindo mais à vontade, seu sermão azeitou-se. Era um discurso de fácil compreensão. O jeito natural e claro de explicar a palavra de Deus acabou conquistando a audiência.
O espanto foi geral, inclusive dos franciscanos. Todos perceberam estar diante de um grande orador. Sábio. Eloquente. Conhecedor das coisas. E, principalmente, portador de um dom: o da palavra.
“Frei Antônio subiu ao púlpito com a aparência de um principiante na oratória sagrada. Desceu da tribuna consagrado pregador, notabilíssimo por sua impressionante eloquência, e pelos fulgores de sua ciência teológica”, elogia o historiador José Carlos de Macedo Soares (1883-1968).
Assim, Forli se tornaria um divisor de águas na vida do santo. Se havia uma norma entre os franciscanos que só permitia que um membro da ordem se tornasse pregador com autorização do superior, no caso de Antônio a mudança de função vinha justamente do superior: Frei Graziano determinou que, a partir de então, o religioso português se tornasse um pregador itinerante. Ele não poderia ficar escondido em uma vida contemplativa. Precisava espalhar a palavra de Deus.
Antônio não conseguiu disfarçar certo constrangimento. Ele estava ficando famoso entre os colegas. Tanto que foi designado para participar de um próximo compromisso público: o capítulo regional da Romanha.
Era mais uma mudança não planejada pelo jovem religioso. Antônio já tomava gosto pela vida reclusa, pelas orações em silêncio, pela estabilidade. Mais uma vez era Deus interferindo em sua vida, pensava o religioso.
O segredo do sucesso de sua oratória estava no cerne da recomendação de Francisco: “sermões breves, pois o Senhor praticou na terra a brevidade do verbo”, pedia o fundador. Antônio não fazia aqueles discursos pomposos comuns nos tempos da Idade Média. Falava claro e simples, traduzia o complexo para que todos compreendessem. Pregava no dialeto de cada região, sendo bem entendido pelo povo.
Muito se discutia, naquele tempo, a questão da intelectualidade e dos livros dentro do dia a dia franciscano. Ele era a prova de que era possível mesclar humildade com conhecimento, simplicidade com doutrina, coração com razão. Ao mesmo tempo, sua vida demonstrava que os franciscanos deveriam estudar mais para conseguir se comunicar melhor.
A catequese de Antônio, como era praxe na época, baseava-se em passagens bíblicas e atribuía ao diabo tudo o que era contra a doutrina ou representava o mal. Não raras vezes, o demônio era metaforizado pela serpente. O vigor na pregação rendeu a Antônio o epíteto de “martelo da heresia”.
Apesar de intenso, seu discurso não era violento. O franciscano não condenava o pecador, mas sim o pecado; não combatia os heréticos, mas sim as heresias. Agia como um bom pastor, procurando trazer cada um para o rebanho, transmitindo valores de caridade e fraternidade. Sua postura era de amor. De paz. Para Antônio, o importante era conquistar o coração – só assim seria possível conseguir a alma para Deus. Ou seja, converter, em vez de combater. “A paciência é a melhor maneira de vencer”, ele costumava dizer, toda vez que usava o amor para responder as tantas grosserias com as quais se deparava.
Antônio foi destacado para fazer sermões em Rimini. A cidade estava dominada pelos cátaros, movimento cristão que foi forte na Europa dos anos 1100 e 1200 e chegou a ser visto como ameaça pela Igreja Católica. A tarefa não seria fácil. Os cátaros ali eram tão fortes que haviam conseguido expulsar o bispo Aldebrando (1164-1247) de seus domínios.
Acredita-se, contudo, que tenha sido nesse terreno árido que Antônio realizou o primeiro milagre em solo italiano. Isso porque o homem tentava pregar nas praças sem sucesso, sem audiência. Não sofria retaliações físicas, mas era zombado e ignorado pela população.
Certo dia, cansado da coleção de fracassos, decidiu ir até o rio Marecchia e pregar aos peixes: “Peixes do mar e do rio, serão vocês a ouvir a palavra de Deus, já que os homens, infiéis, a desprezam”. Nem bem Antônio havia começado, os peixes teriam colocado as cabeças para fora d’água e acotovelado suas nadadeiras para ouvi-lo. “Peixes, nossos irmãos, vocês devem dar graças ao Senhor conforme a sua possibilidade, pois Ele lhes deu como morada um elemento muito nobre: a água. Além disso, deu a vocês, nela, abrigo contra tempestades. Ele fez a água clara e transparente para que possam ver os caminhos por onde devem andar e a comida que os alimenta. O Senhor, generoso e bom, ao criá-los, abençoou-os e deu-lhes o preceito de se multiplicarem. Quando veio o dilúvio e os outros animais que não entraram na arca morreram, Deus fez que fossem vocês os únicos a escapar vivos. Por todas essas graças, vocês devem bendizer ao Senhor. Bendito seja Deus para sempre, pois é mais venerado e honrado pelos peixes do rio e do mar que pelos homens infiéis. Os seres irracionais ouvem melhor a palavra de Deus do que os homens, racionais.”
Vendo com estranhamento aquele homem pregando virado para o rio, o povo começou a se aproximar. Ao notarem o que ocorria, ficaram admirados, perplexos, encantados. Antônio, então, liberou os peixes, abençoando-os. E voltou-se para a população, que estava atenta, esperando sua palavra.
O episódio espalhou-se pela cidade, e as pregações do franciscano, em praça pública, passaram a ter audiência cada vez maior. Ao mesmo tempo, como era de se esperar, começaram a surgir desafetos.
Um homem conhecido como o principal líder dos cátaros resolveu propor um ardiloso desafio, que seria chamado de teste da mula. Consistia em deixar um animal sem comida por três dias e, no quarto, sob os olhos de toda a comunidade, oferecer ao bicho aveia fresca, de um lado, e a hóstia consagrada, de outro. “Se a mula for primeiro adorar a Eucaristia, eu me converterei, juntamente com meus seguidores”, prometeu o homem. “Aceito, com uma condição: se o animal preferir a aveia, não significa que a Eucaristia não seja Cristo, mas sim que eu não sou pregador digno o suficiente e, como tal, não mereço a graça do milagre divino.”
Acordados, Antônio também passou os três dias em jejum. Quando chegou a hora de concluírem o desafio, o animal não só foi primeiro em direção ao ostensório como também teria se ajoelhado.
Além da fama de bom pregador, Antônio começou a adquirir outra: a de santo milagreiro. Aos poucos, se tornava Il Santo. Reconhecimento este que ele nunca aceitou de bom grado. Frisava enfaticamente que era Deus quem realizava as proezas, nunca ele.
“Em verdade, sua fé me convenceu. E comigo se convertem todos os meus seguidores aos ensinamentos da Igreja”, disse o dono da mula. O líder cátaro confessou-se e recebeu a comunhão das mãos de Antônio. Atrás dele vieram muitos. Praticamente toda a Rimini havia se tornado católica e a missão do franciscano estava perto de ser concluída.
Algumas autoridades, contudo, viram nele uma potencial ameaça. Dias depois, quando o religioso pregava em um vilarejo nas proximidades da cidade, foi convidado para jantar na casa de um representante da elite. Pensou que seria uma boa oportunidade para disseminar sua fé e aceitou.
Com os pratos servidos, antes de encostar em qualquer coisa, notou que estava prestes a cair em uma armadilha.
“Senhores, de bom grado aceitei o convite, pois vejo aqui uma boa oportunidade para compartilharmos ideias e momento para que eu possa expor-lhes as verdades da fé. Mas lastimo sua conduta ao me oferecerem esta comida envenenada”, disse Antônio. “Meu bom frade, nós bem sabíamos que o protegido de Deus logo perceberia a presença de veneno em seu prato”, respondeu o anfitrião, tentando manter a naturalidade. “Na verdade, o que desejávamos era comprovar a afirmação do Evangelho, sempre tão puro e verdadeiro, que diz: ‘E se tomarem alimento fatal, este não lhes fará dano algum’. Por isso, bem sabemos que o nosso excelente pregador de sermões pode comer à vontade deste prato e de tantos outros iguais que lhe servirem, que certamente será como se tivesse comido alimento puro e igual ao de todos nós, homens comuns. Se o nosso bom frade come a refeição que lhe servimos, de bom grado abandonamos nossa crença, à qual o nosso convidado chama de heresia, e voltamos ao seio da Santa Igreja. No entanto, se o veneno lhe surtir algum efeito, poderemos ver nisso um sinal da fé fraca e, em consequência, não poderá continuar sua pregação, mesmo porque ela terá se revelado falsa.”
Antônio não pestanejou. Fez o sinal da cruz sobre o prato, louvou a Deus e prosseguiu: “Se lhes falei do veneno em meu prato foi para que vejam como Deus auxilia a quem Nele crê. Não foi por ter sentido medo nem por não acreditar na palavra de Jesus. Aliás, foi dito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’. Não o colocarei à prova, mas vou comer este prato para que os senhores também acreditem no Evangelho”.
E comeu.
Nesse período, Antônio foi enviado para pregar em muitos outros locais da região. Esteve em Ímola, Bolonha e chegou a ir mais ao norte da Itália – há registros de que tenha chegado até Vercelli, em Piemonte – onde conheceria o filósofo e teólogo francês Thomas Gallus (1190-1246), fundador e abade do Convento de Sant’Andrea.
Há duas versões para um mesmo milagre, também dessa época, que explicariam a origem dos famosos “pãezinhos de Santo Antônio”, até hoje abençoados no dia do santo, em muitas comunidades católicas. Em uma de suas paradas, conta-se que havia o costume de assarem pães em uma casa religiosa para consumo próprio – e o excedente era destinado aos pobres. Antônio tinha o hábito de encher um cesto para levar à praça, distribuindo às pessoas antes de suas pregações. Ele sabia que só a palavra não bastaria, era preciso encher o estômago dos famintos.
Certo dia, por descuido, levou para os mais pobres toda a fornada, deixando seus irmãos de convento sem alimento. Quando retornou, entretanto, notou que o mesmo cesto que ele havia esvaziado na rua tornava a estar cheio.
Uma variação dessa história afirma que estavam os religiosos todos dentro do mosteiro quando alguém bateu à porta pedindo algo para comer. O irmão que atendeu disse que não havia nada além daquilo que iriam consumir. Antônio disse que poderia dar tudo o que houvesse no cesto, que não era para se preocupar porque Deus ajudaria. O frade cumpriu a ordem e, quando retornou, o cesto estava novamente completo.
Mas um grande momento estava se aproximando, não apenas da história de Antônio, mas da história de toda a Igreja. No capítulo geral de 1223, como sempre em Pentecostes, Antônio e Francisco iriam conversar pela primeira vez. O fundador dos frades menores já sabia dos prodígios do religioso português e não deixava de demonstrar afeto pelo que ouvia.
Aquele capítulo seria fundamental para, finalmente, aprovar a regra escrita da ordem. No debate também foi levada a questão dos estudos, com argumentos de todos os tipos. Por exemplo, os livros deveriam ser considerados bens materiais e, portanto, ser evitados? Seriam os livros geradores de orgulho e arrogância?
As discussões eram profundas, mas Antônio era a prova viva de ser possível assumir essa vertente erudita sem perder o carisma da humildade. Afinal, com exceção para esse ponto, o religioso português se identificava plenamente com tudo em relação aos franciscanos, inclusive vivendo a pobreza de forma absoluta.
Do encontro pessoal, Francisco levou as melhores impressões. Chegaria a comentar com outros franciscanos sobre a sabedoria de Antônio para mesclar bem complexidade com simplicidade, explicar a escritura com cuidado e levar uma vida exemplar.
Não por coincidência, esse capítulo não só concluiu a escrita da regra – aprovada meses depois pelo Papa Honório III (1150-1227) – como trouxe novamente a escola franciscana de Bolonha, suspensa pelo próprio fundador no episódio em que ele havia condenado os irmãos de lá por viverem em uma residência superior.
Assim, Antônio tornou-se docente, no Convento de Santa Maria Della Pugliola. Justamente na Bolonha tão importante para o ensino e a pesquisa – cuja universidade, a mais antiga da Europa, foi fundada em 1088. Como era considerado o mais bem preparado dos professores, a ele cabia formar pregadores competentes, dentre os alunos já iniciados, muitos deles inclusive ordenados sacerdotes. “E foi assim desta forma”, aponta Félix Lopes, “que Santo Antônio ficou sendo o primeiro doutor ou mestre na ordem franciscana.”
Foi nessa época que Antônio começou a escrever seus sermões – comentários de trechos da Bíblia. Esses textos são o legado que restou para comprovar a retórica e a catequese do franciscano. Trata-se de um discurso de salvação, cuja essência diz que a prática do amor a Deus e ao próximo é o caminho para a vida eterna – mas, ao mesmo tempo, o religioso não economiza críticas a pecados como arrogância, luxúria, soberba, ambição e apego ao dinheiro.
“A sua linguagem, engastada em beleza e com sal condimentada, comunicava muita graça aos ouvintes. Admiravam-se os mais velhos que um mancebo, mal saído da puberdade e iletrado, ensinasse, com muita sutileza, as realidades do espírito em termos espirituais; olhavam-no com espanto os mais novos, quando punha de raiz ao sol as causas mínimas e as ocasiões do pecado e, com muita discrição, semeava os bons hábitos das virtudes. Enfim, homens de toda a condição, classe e idade, ficavam radiantes com assumirem os ensinamentos da vida que lhes convinham”, narra a Legenda assídua.
Da amizade com Francisco, ficou o respeito deste pelo erudito português. A ponto de, a partir de então, só chamá-lo de “meu bispo”, como bem atesta esta carta, enviada pelo fundador da ordem pouco tempo depois do capítulo:
A Frei Antônio, meu bispo,
Eu, Frei Francisco, envio minhas melhores saudações. É para mim fonte de satisfação que leia para os irmãos a teologia sagrada, desde que, com o estudo, não leve a extinguir o espírito da santa oração e da devoção como se encontram prescritas na regra da ordem.
Adeus.
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