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Santo Antônio

Em 1263, as obras de construção da basílica de Santo Antônio, em Pádua, iniciadas mais de trinta anos antes, já haviam progredido um bocado. Foi quando decidiu-se fazer a transferência dos restos mortais do santo para um mausoléu erguido especialmente para ele.

A solene cerimônia ocorreu em 8 de abril. Participou da operação o teólogo e filósofo Giovanni di Fidanza (122110-1274), conhecido pelo nome religioso de Boaventura – com o qual se tornaria São Boaventura, aliás. Naquele ano, ele já era o superior geral da Ordem dos Frades Menores.

Quando abriram o sarcófago de mármore onde havia sido sepultado Antônio, observaram atônitos que parte dos despojos estavam preservados. “Encontraram as carnes do corpo desfeitas em cinza, à semelhança de areia fina”, relata Frei Basílio. “Mas ó milagre! Na boca da caveira estava a língua conservada, mole, rubicunda como de um homem vivo.”

“Ó língua bendita, que sempre louvaste o teu Senhor e o fizeste louvar pelos outros”, teria exclamado Boaventura. “Agora aparece claramente quanto merecimento tens diante de Deus.”

A língua foi colocada em um relicário e exibida aos fiéis. Coube a Luca Belludi, velho amigo de Antônio, a honra de fazer a homilia daquela missa.

Em 1310, com a nave central da basílica finalmente concluída, os despojos do santo foram mais uma vez trasladados. A tumba, porém, só seria aberta novamente por completo em 15 de fevereiro de 1350.

Na ocasião, sua mandíbula também foi separada e deixada exposta em um relicário. Retiraram ainda da ossada alguns ossos como o antebraço e a mão esquerda – tais espaças acabariam espalhadas, como relíquias, por algumas igrejas europeias. A exumação foi presidida pelo cardeal francês Guido de Bolonha (1313-1373), que fez questão de mandar alguns fragmentos para sua terra natal. Nessa operação, o corpo do santo foi sepultado na capela definitiva, onde se encontra até hoje.

Quando o mundo católico celebrava os setecentos e cinquenta anos da morte de Frei Antônio, em 1981, o Vaticano autorizou uma nova exumação de seus restos mortais. Dessa vez, tudo com anuência do Papa João Paulo II (1920-2005), uma equipe multidisciplinar de cientistas – dez professores da Universidade de Pádua – realizou exames antropométricos na ossada.

Constataram que ele era um homem de ombros largos e consideravelmente alto para a época. Media 1,70 metro de altura, quando a média da população europeia no século XIII era de 1,62 metro. Seus ossos das pernas eram muito desenvolvidos, resultado dos constantes exercícios que ele fazia ao andarilhar pregando por tantos lugares.

Conforme laudo do médico ortopedista Antonio Novello, um dos integrantes da equipe, os ossos indicavam que o frade tinha calosidade nas pernas, logo abaixo dos joelhos, devido “a repetidos microtraumas” – a interpretação mais provável é que fosse consequência do rotineiro ato de se ajoelhar para rezar, horas e horas diárias de oração e penitência.

A análise de sua arcada dentária concluiu que sua alimentação era pobre em ferro – o que corresponde aos relatos da época, segundo os quais o franciscano costumava comer apenas uma rala sopa de vegetais com pão. Os exames também confirmaram fortes indícios de que realmente ele tenha sofrido de hidropisia, doença que deve ter precipitado sua morte.

Os órgãos e cartilagens do aparelho vocal estavam completamente conservados. Para a Igreja, isso é um milagre. Para a fé das pessoas, é mais um sinal da importância de tudo o que o frade franciscano falou durante a vida.

Mas certamente a grande revelação dessas análises científicas tenha sido que o frade franciscano não morreu com 35 para 36 anos, como se acreditava – os relatos antigos sempre o apresentavam como alguém que nasceu em 15 de agosto de 1195 e morreu em 13 de junho de 1231. O homem sepultado ali em Pádua tinha pelo menos 40 anos quando partiu desta vida, atestaram os pesquisadores.

Como a data da morte é extensamente registrada e comprovada, a hipótese mais aceita é de que ele tenha nascido alguns anos antes, muito provavelmente no fim dos anos 1180. Esse retrocesso cronológico torna muito mais verossímeis as outras passagens consideradas corretas de sua biografia – como sua idade quando havia ingressado na vida religiosa, quando tentou pregar no Marrocos, quando chegou à Itália e quando viveu na França.

A partir da verificação de que a ossada de Santo Antônio estava praticamente completa – com as notórias exceções da mandíbula, exposta em Pádua, e do antebraço e da mão esquerda, retirados no século XIV –, os pesquisadores concluíram também que a maior parte das relíquias atribuídas a ele espalhadas por igrejas da Europa não passam de falsificações. O escultor italiano Roberto Cremesini participou dos trabalhos. Ele ficou encarregado de fazer uma réplica idêntica do crânio.

Encerrada a análise, os restos foram recompostos e reorganizados cuidadosamente em um colchão forrado de seda, dentro de uma urna de cristal. E, assim, o santo ficou exposto aos fiéis na catedral ao longo de vinte e nove dias em 1981. De acordo com os administradores da basílica, quinhentas mil pessoas enfrentaram as filas para ver o esqueleto.

Colocado em um caixão de cipreste, Antônio de Pádua foi sepultado novamente no santuário. Por determinação do Papa João Paulo II, uma nova exumação para análises deve ocorrer apenas em 2231, nas festas do milésimo aniversário da morte do santo.

Cremesini utilizou a réplica do crânio, as imagens e os dados resultantes da ossada para construir um busto em bronze do frade. A obra ficou pronta em 1995.

Os despojos antonianos, no entanto, não teriam completo sossego. Em outubro de 1991, três homens armados e mascarados conseguiram violar o esquema de segurança da basílica e roubaram o osso da boca exposto como relíquia. Eles telefonaram para a polícia e pediram dinheiro para não lançarem o fragmento santo em um rio.

Talvez por intercessão daquele que é considerado um grande ajudante na hora de encontrar coisas perdidas, não foi preciso pagar resgate. Dois meses depois, a mandíbula de Antônio foi encontrada nas proximidades do Aeroporto Leonardo da Vinci di Fiumicino, o Aeroporto Internacional de Roma, o mais movimentado de toda a Itália.

Em 2010, os restos mortais de Antônio seriam exibidos mais uma vez para os devotos. Isso porque a capela que funciona como seu túmulo passou por completas obras de restauro e seu caixão precisou ser removido durante os trabalhos, que duraram vinte meses. Antes de devolvê-lo, a Igreja decidiu expor o esqueleto, em uma redoma de vidro, ao público católico.

Quatro anos mais tarde, um novo grupo de pesquisadores da Universidade de Pádua – do Museu de Antropologia da instituição – resolveu fazer novos estudos a partir de imagens do santo, utilizando as tecnologias mais atuais disponíveis. A réplica do crânio, feita em 1981, também foi utilizada. A missão do projeto era fazer uma reconstituição tridimensional facial mais fidedigna de Antônio.

Na Itália, as análises foram feitas em parceria com o Centro de Estudos Antonianos e o grupo de pesquisas Arc-Team Open Research. Especialistas brasileiros também foram envolvidos: o Laboratório de Antropologia e Odontologia Forense da Universidade de São Paulo (OFLab/USP), o Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI), além da artista plástica Mari Bueno e do designer brasileiro Cícero Moraes – encarregado este de fazer, por computação gráfica, a reconstituição tridimensional.

Moraes providenciou duas versões para o santo. A considerada oficial, na qual ele aparece mais rechonchudo, leva em conta o seu quadro de hidropisia – e provavelmente mostra de modo fidedigno como ele estava no fim da vida. A outra versão, com Antônio de contornos faciais esbeltos, é sua verossímil aparência saudável.

Produzida em impressora 3D e pintada pela artista Mari Bueno, a face verdadeira de Santo Antônio foi apresentada ao público no dia 10 de junho de 2014, em evento ocorrido na cidade de Pádua. Existem quatro cópias do busto: uma no Centro de Estudos Antonianos, em Pádua; outra na Catedral do Sagrado Coração de Jesus, em Sinop, cidade onde vive Moraes; uma terceira na Basílica Menor Santo Antônio do Embaré, em Santos; a última na Catedral Santo Antônio, em Chapecó.

Para os devotos, o teor da representação é o que menos importa. Pode ser o Antônio pintado com talento e esmero das obras de arte de Giotto. Pode ser o Antônio esculpido com maestria pelo grande artista brasileiro Aleijadinho (1738-1814), cujo nome verdadeiro, aliás, era Antônio Francisco Lisboa. Pode ser o Antônio singelo dos desenhos de traços icônicos daqueles santinhos e folhetos distribuídos em igrejas. Pode ser o Antônio quase naif das estatuetas vendidas em lojas de artigos sacros. Pode ser o Antônio hiper-realista da escultura digital feita por Cicero Moraes.

Para os devotos, a grandeza de Antônio não está em sua fama universal, não está no fato de que ele é o português mais conhecido do mundo, o santo mais amado do Brasil, o franciscano cujo apreço popular ultrapassa até mesmo a obtida pelo fundador da ordem, São Francisco de Assis. Para os devotos, tudo isso não é a causa da devoção, mas a consequência.

Antônio é o santo popular por excelência, o milagreiro das pequenas e das grandes causas, o participante dos festejos singelos da quermesse, o chantageado pelas simpatias, o homenageado com toda sorte de lendas, canções, rezas, novenas, trezenas. Ao mesmo tempo, Antônio foi uma das pessoas mais eruditas da Idade Média, foi um dos católicos que mais estudaram a Bíblia, foi um dos maiores oradores que já existiram. Suas simplicidade franciscana está nisto: Antônio andava descalço – e, assim, era como se estivesse despido da pose de intelectual para ficar próximo ao povo.

Antônio é uma grande metáfora do amor de Deus pela humanidade. Simboliza algumas impossibilidades. É a prova de que o gigantismo infinito pode estar contido dentro das pequenezas do dia a dia. É um testemunho de que os superlativos cabem na humildade.

Santo Antônio de Lisboa. Santo Antônio de Pádua. Santo Antônio do Brasil. Santo Antônio de todos os lugares, de todas as pessoas, de todas as causas.

Santo Antônio de tudo.

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