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Santo Antônio

Se na tenra juventude, quando ainda era chamado de Fernando, Antônio sonhava lutar nas Cruzadas, esta oportunidade, de uma forma um tanto diferente, batia à sua porta. Não como uma missão à Terra Santa, mas ao sul da França.

Nos séculos XII e XIII, a região estava dominada por seitas cristãs tidas como heréticas, como os cátaros que Antônio tão bem havia conhecido – e convertido – em Rimini. Esses movimentos expandiam-se principalmente nas terras no entorno do rio Ródano, mais especificamente na Provença, de um lado, e em Languedoque, do outro. A ocupação dos hereges era intensa em cidades como Albi e Toulouse.

Havia um clima de guerra, com animosidades e verdadeiras batalhas entre católicos e não católicos. Para os cátaros, a organização católica estava corrompida, dando mais valor ao mundo material e às riquezas mundanas do que às questões espirituais. Por outro lado, a Igreja também aumentava o tom bélico, tratando os concorrentes como inimigos a serem combatidos.

Em carta endereçada ao rei francês Luís VIII (1187-1226) em 1223, o Papa Honório III reclamou da abundância de não católicos na região. “Nesse reino, os hereges escarnecem da fé católica às claras e com insolência! Até de Nosso Senhor e Salvador escarnecem e zombam”, escreveu o sumo pontífice, conforme atestam registros do Vaticano.

Esse contexto era pano de fundo de uma disputa política. Alguns nobres influentes, espertamente, estavam se aliando aos cátaros. Não por qualquer vocação para uma vida avessa às posses, mas porque, se estivessem livres da influência da Igreja Católica, decerto teriam mais terras à disposição. A cúpula da Igreja, por outro lado, temia perder poder – portanto, era hora de lançar-se a uma Cruzada, não até a Terra Santa, mas para recuperar para o catolicismo os pontos heréticos que vicejavam fortemente em territórios cristãos.

Antônio já havia dado provas de que era hábil na arte de converter pagãos. Quando o papa pediu ajuda aos franciscanos, seu nome foi lembrado de imediato. Há quem acredite que a decisão de enviá-lo também fosse uma tentativa de minar sua crescente influência no âmago da ordem, criando para ele um caminho diverso que não o permitiria ascender hierarquicamente no mundo franciscano.

Mas seus biógrafos parecem não acreditar nisso. “Querem alguns descobrir, no fato, desígnios sombrios e sinistro de Frei Elia, vigário de São Francisco: arrumava com ele para longe, a fim de se livrar de um rival importuno”, comenta Fernando Félix Lopes, para depois emendar que “o silêncio dos documentos e mais ainda o ambiente histórico tornam impossíveis as suspeitas”. “Por mais que se rebusque, não há modo de descobrir um vestígio sequer de que, por então Frei Elia se temesse de Santo Antônio”, crava.

Conspirações tramadas ou não, certo é que Antônio foi em paz, como era de seu feitio. Não queria violência. Faria como em Rimini: lutaria pela conversão pelos argumentos e pela fé, com debate de ideias e muita conversa. Buscava ele, como sempre, a religiosidade – nunca o sangue derramado. Para Antônio, não havia inimigos do outro lado: mas seres humanos, irmãos amados por Deus.

Sua primeira parada foi em Montpellier. A cidade, então com cerca de 40 mil habitantes, era a segunda ou terceira mais importante da França. Assim como Bolonha, o local atraía estudantes – em 1220 havia sido inaugurado ali um centro de formação de medicina e letras jurídicas.

Com sua natural facilidade para o aprendizado de idiomas, Antônio rapidamente estava falando o dialeto da região. Ele fundou uma escola para pregadores e passou a ensinar teologia a jovens religiosos. Ficou ali cerca de um ano. Nesse período, dedicou-se basicamente à docência, ao estudo e às orações. Pouco pregou – apenas quando era sua vez de encarar o púlpito nos sermões das missas.

A fama de milagreiro, contudo, parecia tê-lo acompanhado. Há uma passagem anedótica quanto a isso. Conta-se que o coaxar de sapos costumava atrapalhar suas aulas, no lago vizinho à sala utilizada para isso. Certa vez, Antônio mandou os bichos se calarem. Desde então os sapos nunca mais tiveram voz nas águas do convento franciscano de Montpellier. Dizem que não tornaram a coaxar porque o frade e professor esqueceu-se de dar-lhes a permissão para, terminada a aula, voltarem a fazer barulho.

Também se tornou icônica a história do seu saltério, o livro de orações com os salmos que era de estimação do religioso. Antônio deu a obra por perdida de sua biblioteca e isso muito o chateou. Ele rezou pedindo para que tornasse a encontrar o livro.

No dia seguinte, um noviço veio procurá-lo, afobado e nervoso, com o saltério na mão. Começou pedindo desculpas. Disse que estava decidido a abandonar a vida religiosa porque não se via apto ao rigor franciscano. E, por pura maldade, havia afanado o livro de predileção do padre. Durante a fuga, entretanto, um animal estranho, em chamas, o impedira de cruzar a ponte. E o teria ameaçado: ele seria arremessado no rio, caso não devolvesse o saltério a Antônio.

O religioso perdoou o jovem e o readmitiu ao noviciado. Feliz pelo livro recuperado. Dizem que é por causa disso que também se tem o costume de rezar para Santo Antônio pedindo ajuda para recuperar coisas perdidas.

E aquele que acabaria se tornando o milagre mais sensacional de Antônio também ocorreu durante sua estadia em Montpellier. A bilocação que, segundo algumas versões, deu origem à expressão “tirar o pai da forca”.

Antônio estava realizando um sermão em Montpellier quando teria aparecido em sua terra natal para salvar o pai. Martim era responsável pela guarda de alguns itens do tesouro real. Certa feita, o rei mandou buscar o material em sua casa. O fidalgo entregou tudo de boa-fé aos guardas – não pediu recibo.

Dias depois, novamente funcionários vieram apanhar os bens. Ele ficou nervoso. Já os havia entregue, mas não tinha comprovante para apresentar. Convocado a prestar esclarecimentos ao rei, percebeu-se em maus lençóis. Ao entrar no castelo, notou que os mesmos homens que tinham ido buscar os tesouros na primeira vez compunham a guarda real. Notou o golpe.

Gaguejou à frente do rei, no entanto não conseguiu convencê-lo. Foi condenado à forca. Então Antônio em pessoa apareceu, para a surpresa de todos. Disse ao rei que mandasse vasculhar na casa dos seus funcionários e acharia os pertences. Salvou o pai da morte imerecida e, missão cumprida, saiu novamente pela mesma porta. Foi seguido pelo pai e por algumas outras pessoas – mas não pôde ser encontrado pelas ruas.

As pessoas que estavam na missa em Montpellier notaram apenas que, por longos minutos, o padre interrompeu o sermão, abaixou a cabeça e ficou em silêncio. Parecia imerso em uma profunda oração, quase desmaiado em pé. Em seguida, retomou a homilia como se nada tivesse ocorrido.

Em 1225, Antônio mudou-se para Toulouse, centro político dessa França dominada por cátaros. Nos poucos meses em que viveu ali, participou de muitos debates com os hereges, converteu gente e também se dedicou à formação de pregadores.

Alguns meses depois, em 29 de setembro do mesmo ano, o sacerdote seria transferido de novo, desta vez para Le Puy-en-Velay, onde assumiu como guardião do convento franciscano.

Ficaria ali tempo suficiente para que alguns milagres entrassem para o imaginário popular. Um deles envolveu um notário conhecido na cidade pelo seu comportamento desregrado. Toda vez que Antônio cruzava com ele pelas ruas, cumprimentava-o com profunda reverência. Incomodado com essa postura e imaginando que o sacerdote estava debochando dele, certa vez o homem perguntou o motivo de tal gesto: “Não se trata de desrespeito, muito pelo contrário”, explicou o franciscano. “Ocorre que, sabendo que um dia você vai se tornar um mártir na Terra Santa, é pela sua dignidade futura que eu lhe presto homenagem. De minha parte, só espero que se lembre deste humilde religioso quando estiver à beira da morte.”

O notário riu. Para ele, isso jamais poderia ocorrer, visto que não tinha qualquer apreço à fé católica.

Desnecessário dizer, contudo, que houve uma conversão futura e o homem seguiria para as Cruzadas, de onde não regressaria com vida.

Também em Puy, Antônio profetizou outro martírio. Foi quando uma mulher grávida veio lhe pedir para abençoar o bebê em seu ventre. O franciscano rezou por ele, disse que o menino seria frade e acabaria morto pela fé.

Isso realmente aconteceria, anos depois.

Em novembro de 1225, a Igreja convocou um sínodo para a cidade francesa de Burges, da qual participaram uma comitiva de Roma, seis arcebispos, pelo menos uma centena de bispos e superiores de várias ordens religiosas. Antônio representou os franciscanos.

No cerne da discussão estava justamente o papel de ordens mendicantes, como a dele, bem como o combate aos cátaros. A palavra foi reservada a Antônio no dia 30 de novembro. E ele a usou não para condenar os hereges, e sim para criticar os desvios de comportamento do próprio clero católico.

Pediu expressamente que a hierarquia da Igreja reconhecesse seus erros e se esforçasse para melhorar na prática evangélica. Ressaltou que era preciso uma reforma na própria instituição a partir de seus membros. E não hesitou em nomear e qualificar o arcebispo que presidia o encontro, Simon de Sully (?-1232), como um mau exemplo.

Todos ficaram boquiabertos com a ousadia do franciscano. Simon chorou, desculpou-se publicamente, fez uma autocrítica e ainda se confessou com Antônio.

Os feitos de Antônio foram tornando-o mais e mais conhecido também na França. “A fama e a atração do pregador, que operava milagres, crescia, dia a dia, cada vez mais entre a multidão, que ia ouvi-lo e, não mais chegando às igrejas, ele prontificou-se a pregar nas praças públicas”, conta o biógrafo Giustiniano Scrinzi.

Na Quinta-feira Santa de 1226, Antônio teria realizado mais um milagre de bilocação. Ele fazia a homilia na igreja principal de Le Puy-en-Velay quando se lembrou de que havia prometido dar uma palestra aos irmãos do convento. Ficou em silêncio por alguns minutos, como se fizesse compenetrada oração; ao mesmo tempo, apareceu aos seus colegas franciscanos, conversou com eles e cumpriu o combinado. Em seguida, voltou de seu transe e retomou a missa de onde havia parado.

Em 29 de setembro, todos os franciscanos da região estavam em Arles para o capítulo provincial. Era dia de São Miguel Arcanjo. Antônio fazia uma pregação sobre Jesus Cristo e, quando falava sobre a presença viva dele entre aqueles que creem e se reúnem em seu Santo Nome, um dos irmãos viu o próprio fundador Francisco de Assis acima do portão, em um gesto como que abençoando cada um dos membros do encontro – quatro dias depois, em 3 de outubro, Francisco morreria.

Entre outras coisas, a reunião decidiu que Antônio não retornaria para Le Puy. Ele assumiria uma nova missão: a custódia, ou seja, a direção espiritual, de todos os estabelecimentos franciscanos da região de Limoges. “Aí foi recebido muito bem, com oito companheiros e pelos moradores que se julgaram felizes por poderem ouvir as pregações de quem a fama se espalhara por toda a parte”, relata Frei Basílio.

Logo em sua primeira fala, na catedral da cidade, uma verdadeira multidão o aguardava. “Vivemos aos prantos à noite, mas acordamos de manhã na alegria” era o tema da homilia. O sucesso foi tanto que ele começou a receber convites para pregar em outras igrejas da região. “E andou Santo Antônio numa roda viva por aquelas redondezas de Limoges, a semear a palavra santa de Jesus”, narra Lopes.

Conta-se que esse foi o seu auge como evangelizador. Os mais antigos biógrafos relatam que Antônio chegava a reunir 30 mil pessoas em praça pública, quantidade impossível para qualquer igreja. Por isso, o franciscano começou a pregar nas ruínas da antiga arena romana de Limoges – local adequado para multidões. Muitos fiéis chegavam de madrugada, em busca dos melhores lugares.

A cada aparição pública do sacerdote, novos milagres eram registrados e somados ao imaginário popular. Como quando ele estava pregando e uma tempestade se aproximava. Antônio pediu para que o povo não dispersasse. A chuva molhou toda a cidade, exceto a praça onde as pessoas estavam ouvindo-o.

Foi nessa fase que ele descobriu uma gruta, em Brive-la-Gaillarde, para onde se retirava para meditar, rezar e jejuar. Ali também adotou uma rotina de mortificações – hábito que não era comum em outros períodos de sua vida, quando usava apenas o cilício de crina de cavalo, prática esta então muito disseminada entre os clérigos. Na solidão da pequena caverna, Antônio autoflagelava-se com correntes no corpo, apertando-as contra sua carne. Dedicava o sofrimento a Jesus. Foi a maneira que encontrou para que a fama de orador não o perturbasse com a vaidade, o orgulho e a arrogância. Antônio queria e precisava sempre se lembrar da fragilidade do corpo para, diante da pequenez humana, manter sua humildade.

“Dobrava então os rigores da penitência a firmar bem o espírito nos trilhos da salvação, pois sempre, como São Paulo, castigava o seu corpo e o reduzia à servidão, não fosse acontecer que, depois de aos outros pregar, viesse ele a cair em reprovação. Passava ali os dias a pão e água, e macerava a carne com cadeias de ferro”, diz Lopes. “E foi dessa forma, na frequente penitência e oração, que Santo Antônio pôde trazer sempre a carne sujeita ao espírito, e atravessou, incólume, os perigos do mundo.”

A época registrou o surgimento de diversos eremitérios franciscanos na região, muito possivelmente inspirados pelo carisma de Antônio. Quando o religioso aparecia nos conventos para exercer seu papel, o de custódio, o fazia com as mesmas roupas simples do seu dia a dia. Não era raro ser confundido, portanto, com um frade qualquer, em vez de tratado como superior hierárquico. Ele não se importava. Segundo registros antigos, Antônio governava os frades com “ternura de mãe”.

Mas naqueles tempos de precária e lenta comunicação, foi no fim do ano de 1226 que Antônio recebeu uma triste carta assinada por Frei Elia. “Antes de falar, deixem-me, em suspiros, desabafar a minha dor. Como as águas que transbordam o leito do rio e rumorejam nos campos ao redor, assim as dores me soluçam na alma toda”, escreveu o religioso.

“A desgraça que eu temia, caiu sobre mim e sobre todos vocês. Partiu quem era ao nosso consolo. Partiu para o Além aquele que, como se fôssemos cordeirinhos, carregava-nos todos nós em seu colo. Nosso pai e irmão, Frei Francisco, morreu ao anoitecer de 3 de outubro”, prosseguia a carta. “Chorem comigo a sua morte com tantas lágrimas como as que choraram os israelitas quando seus mestres e guias Moisés e Aarão se foram.”

“Nosso consolo são as maravilhas que operou o Senhor por meio de seu servo Frei Francisco, nosso pai. Se por um lado podemos nos alegrar com o fato de que Frei Francisco partiu para a mansão celeste, levando com ele a grande riqueza de sua santidade, por outro nossa alma é afligida pelo pranto e pelo sofrimento por ter ele se ausentado de nós. Generosamente ele nos oferecia as riquezas de seu tesouro, consolando-nos nesta época tão atribulada”, comentou o vigário-geral. “Agora que foi levado de junto de nós, estamos órfãos, sem pai. Assim, como está escrito: ‘aos seus cuidados deixo o pobre e o órfão’, peçam a Deus, meus irmãos, que nos envie um outro semelhante a Ele, que, a exemplo dos Macabeus na Bíblia, conduza os seus pelo caminho da glória e da salvação.”

O mandato de Frei Elia à frente dos franciscanos duraria até o capítulo seguinte, marcado para 30 de maio de 1227. Antônio estava decidido: abreviaria sua temporada francesa. No início do ano, em pleno inverno, partiria de Limoges em uma longa peregrinação – a tempo de chegar a Assis na primavera, para tomar parte do importante encontro anual da ordem.

Foi uma caravana, já que outros irmãos também fariam a mesma rota. Todos descalços, sem bagagem, sem dinheiro, sem nada – conforme orientava Francisco. No meio do caminho, ainda na França, em uma das paradas para esmolar um prato de comida foram especialmente bem atendidos por uma senhora. Emocionada com os religiosos à porta, ela fez questão de procurar suas melhores louças para servi-los com uma boa refeição e uma dose de vinho.

Entretanto, um tanto afoita, acabou derrubando e quebrando um dos copos. Nervosa, foi para o armário em busca de outro. Antônio percebeu a tristeza da mulher e rezou. Quando ela retornou à mesa, o mesmo copo estava intacto. Entretanto, no meio da confusão, ela notou que havia deixado a torneira do barril de vinho aberta – e toda a bebida já estava perdida, no chão da despensa.

O franciscano rezou mais uma vez. Quando, alimentados, todos foram embora, a dona da casa foi limpar o quartinho e, surpresa, notou: o tonel estava cheio novamente.

A caravana franciscana caminhou até o porto de Marselha. Lá conseguiram carona em um barco que os levaria à costa italiana.

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