Santo Antônio

No alto de uma das sete colinas de Lisboa, local onde cruzados que morreram lutando contra os mouros pela reconquista da cidade foram enterrados, Afonso I prometeu erguer uma casa religiosa. Foi assim que, no século XII, o primeiro rei de Portugal construiu o Mosteiro de São Vicente de Fora. Conforme informações do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, o convento foi inaugurado em 1147 – mas sua construção só ficou pronta em 1162.

Pertencia aos cônegos regrantes de Santo Agostinho, ordem religiosa que surgiu após as exortações do Concílio de Latrão, realizado em 1059. Segundo os registros da Torre do Tombo, a jurisdição dada ao prior do Mosteiro de São Vicente de Fora era “quase episcopal”. Ou seja, o grande reconhecimento da importância do local fazia com que a autoridade monástica fosse tratada de modo equivalente a um bispo, “tendo autorização para usar báculo, mitra e anel4 em cerimônias solenes, em que não participasse o bispo de Lisboa”, registra a crônica histórica.

Na Europa medieval, os monges de Santo Agostinho representavam uma das duas grandes tradições monásticas do cristianismo – a outra era vivida pelos de São Bento. De modo simplificado, a regra dos agostinianos consistia em uma adaptação relativa à tradição dos beneditinos, conjunto de preceitos para a vida monástica escrito por Bento de Núrsia (480-547 d.C.) e que até hoje norteia a maior parte das ordens religiosas católicas.

Naquela época, contudo, enquanto os beneditinos adotavam hábitos mais reclusos, fiéis ao lema “ora et labora” – a oração combinada ao trabalho –, os agostinianos tinham uma vida mais aberta ao entorno, prestando serviços de assistência social aos pobres e, atividade preferida do jovem Fernando, seguindo zelosos ao estudo. Havia inclusive uma determinação papal de que os agostinianos contribuíssem para a melhoria do mundo, em vez de se fecharem no claustro.

Em 1173, a casa religiosa acolheu as relíquias de São Vicente, mártir cristão que provavelmente morreu em 304 d.C., em Valência, atual Espanha. Isso tornou o local destino de peregrinações – ao mesmo tempo, propiciou que obras de ampliação dotassem o complexo de hospital e um albergue. Ali também funcionava uma escola de primeiras letras, aberta à comunidade. A biblioteca monástica, com livros escritos à mão, contava com 116 volumes – número considerável para aqueles tempos.

Mas, para nossa história, a linha mais importante dos registros do Tombo sobre tal mosteiro é esta: “Em 1210, professou em São Vicente aquele que viria a ser Santo Antônio de Lisboa”.

Se considerarmos a data de nascimento da tradição popular, Fernando tinha de 14 para 15 anos. Se considerarmos a estimativa histórica que faz mais sentido, ele já era um jovem de 21 ou 22 anos quando tomou a decisão de ingressar para a casa religiosa.

Fernando abdicava, portanto, da vida mundana. Não iria procurar uma moça casadoira para com ela viver e ter filhos. Não iria se tornar cavaleiro como o pai. Ele havia escolhido: sua família seria a Igreja; suas batalhas seriam com as armas da fé.

Uma decisão desse quilate, como não podia deixar de ser, não foi tomada da noite para o dia. Também não ocorreu sem resistência familiar. Durante a adolescência, foram muitas as tentações vividas por Fernando. Conta-se, inclusive, que criadas que trabalhavam em sua casa faziam apostas entre si para ver quem conseguiria seduzir primeiro o patrãozinho. Perturbado, ele teria resistido a todas as investidas.

Quando Fernando comunicou sua decisão aos pais, Martim foi contra: “Por que não se torna cavaleiro e leva a vida de fidalgo que lhe é de direito? Pode entrar, quem sabe, para o serviço da corte… Por que não se casar e constituir uma família?”, interpelava-o.

A mãe, por outro lado, devota da Virgem Maria, emocionava-se com a vocação do filho e, aos poucos, tratava de convencer Martim a aceitar a situação. Fernando contava ainda com os conselhos e o carinho do tio homônimo, aquele que era cônego.

“Supere a sua fragilidade e prenda suas rédeas quando a concupiscência da carne se puser a mover-se”, dizia o sacerdote, preocupado com os hormônios à flor da pele do menino. “Os pés que ainda não pisaram totalmente nos desvãos do mundo, esses mesmos pés o levarão pelo caminho de Deus. Evite sujá-los no barro dos prazeres mundanos, retraia as pernas e se dirija ao sagrado.”

Passaram-se cerca de cinco anos para Fernando digerir suas dúvidas. Ele pensou e repensou. Rezou sempre pedindo ajuda dos Céus para que tomasse a melhor decisão. No período, era comum subir até a colina onde estava o Mosteiro de São Vicente de Fora. Dali podia contemplar o horizonte, apreciar a cidade. Gastava horas meditando, orando e se familiarizando com a vida religiosa.

Assim que finalmente ingressou na ordem religiosa, foi recebido pelo prior Pedro Mendes. Seu acompanhamento foi delegado a Gonçalo Mendes, diretor espiritual dos noviços. A administração da comunidade monástica acolheu o jovem com alegria e indisfarçável orgulho – o fato de ser de família nobre de Lisboa e ter sólidos conhecimentos de base o deixavam em uma condição promissora dentre os futuros religiosos.

No convento, Fernando mergulhou nos estudos. Na maior parte do tempo preferia ficar sozinho, recolhido em sua cela ou em caminhadas solitárias pelo claustro. Meditava e rezava. Estudava religião e história. Aproveitava o convívio dos mais velhos para aprender mais. Pela primeira vez, passou a ter contato com gente vinda de outros centros importantes da Europa, como Paris, Bolonha e Roma. Essa interação contribuía de modo especial para sua formação. Fernando entendia que o mundo era muito mais do que aquilo que sempre vira em Lisboa. Passou a ter acesso a culturas de outros lugares e isso também o fascinava.

Após um ano, tendo cumprido com disciplina e louvor as regras da vida religiosa, Fernando fez a profissão solene. Foi quando firmou, para Deus e para a comunidade, os votos de pobreza, castidade, obediência e estabilidade – este último, característica de vida monástica, é o compromisso de residir na mesma casa religiosa até a morte.

Entretanto, nem tudo lhe era agradável em São Vicente de Fora. A localização do mosteiro, tão perto de sua vida anterior mundana, perturbava-o. Eram comuns as visitas de amigos e parentes, que traziam preocupações, anedotas e histórias que pareciam, ao jovem religioso, miragens de uma vida que não mais lhe pertencia.

Diante de tal situação, viu-se pronto para desrespeitar o quarto voto, o da estabilidade. Percebeu que, se quisesse mesmo a tranquilidade que julgava necessária para sua vida de santidade, era preciso mudar para longe dali. Na Legenda assídua, escrita por um frade anônimo um ano depois da morte do santo, em 1232, e tida como a mais antiga biografia de Antônio, a informação é de que ele permaneceu por “quase dois anos” em São Vicente de Fora, tendo “aturado um sem-número de amigos, importunos para os espíritos piedosos”. “Com o fim de acabar com toda a ocasião de perturbação desta natureza”, prossegue o texto, “decidiu deixar a terra natal, e aferrar em porto mais sossegado e seguro, onde sem empecilhos pudesse entregar-se a Deus e em paz cultivar a perfeição.”

A transferência, no entanto, não foi tão simples assim. Gonçalo Mendes não queria perder aquela joia tão importante cujo processo de lapidação lhe havia sido confiado. Argumentou sobre a importância do voto de estabilidade, usou toda a retórica para convencer o jovem religioso. De nada adiantou. Fernando estava convencido de que precisava de novos ares.

Conseguiu a sonhada mudança em algum momento entre o fim de 1211 e início de 1212. Seguiria sendo um agostiniano, contudo em Coimbra – duzentos quilômetros ao norte de Lisboa. Foi para o Mosteiro de Santa Cruz, mais antiga instituição da ordem dos regrantes em Portugal, fundado em 1131, conforme atestam os registros da Torre do Tombo. Na época, cerca de sessenta religiosos viviam no convento – em virtude do nome, eram conhecidos como crúzios.

Tudo conspirava para Fernando se tornar ainda mais intelectualizado. Coimbra era a capital do país. O mosteiro tinha uma importância gigantesca para a sociedade portuguesa da época. Para se ter uma ideia, eram os monges que escreviam a correspondência real – uma vez que o rei, como a maior parte da população de então, era analfabeto – e isso conferia ao local um poder administrativo. Em Santa Cruz ficava arquivado o tesouro régio e ali foram enterrados o primeiro rei de Portugal, Afonso I, e sua mulher, Mafalda de Saboia (1125-1157).

Lá, Fernando deparou-se com uma biblioteca ainda mais completa do que a anterior. Santa Cruz era considerado o mais importante centro de estudos sagrados e profanos de Portugal. Havia muitos livros religiosos, mas também obras fundamentais de história, astronomia, medicina, matemática, retórica, gramática, letras jurídicas. Títulos de Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), Solino (que provavelmente viveu no século IV) Cícero (106-43 a.C.), Varrão (116-27 a.C.), Lucrécio (99-55 a.C.), Horácio (65-8 a.C.), Terêncio (185-159 a.C.), Virgílio (70-19 a.C.), Lucano (39-65 d.C.), Plínio (23-79 d.C.) e, claro, a filosofia e a teologia do patrono Santo Agostinho (354-430 d.C.).

Os crúzios atuavam como copistas e encadernadores. Não era raro que viajassem para outros países em busca de novas obras para a coleção. Todo esse contexto contribuiu para a formação de Fernando, principalmente quanto ao aprofundamento filosófico e teológico. Conforme bem comentou o Papa Gregório IX (1170-1241) na canonização de Santo Antônio: ele se mudou para Coimbra com o objetivo de se tornar sacerdote; contudo, sairia de lá como um verdadeiro doutor.

“Cultivava sempre com grande empenho o engenho e exercitava o espírito com a meditação; e, nem de dia nem de noite, segundo a disponibilidade do tempo, negligenciava a ‘lectio divina’.5 E se por um lado, ao ler o texto da verdade histórica robustecia a fé pela comparação alegórica; por outro, aplicando a si mesmo a Escritura, por ela afeiçoava os usos e costumes”, afirma a Legenda assídua, sobre seu período coimbrense. “Se por um lado, pesquisando com afortunada curiosidade a profundeza das sentenças de Deus, fortificou a inteligência com os testemunhos da Escritura, face às insídias do erro; por outro, examinou com aprimorada investigação as sentenças dos Santos. Por último, confiava o que lia à memória com tanta segurança, que conseguia revelar a todos prontamente os segredos das Sagradas Escrituras.”

Foi durante os anos em Coimbra que, pela primeira vez, alguns começavam a enxergar santidade no comportamento de Fernando. Principalmente pelo fato de que ele jamais se queixava ou demonstrava raiva, mesmo quando fortemente contrariado. Mas também pela sua vida de retidão, integridade e devoção. Fernando era um homem focado. E, ali, longe da vida pregressa, longe de família e amigos, nada parecia desconcentrá-lo dos estudos e das orações.

Não há registros nem consenso entre pesquisadores sobre quando exatamente teria sido sua ordenação sacerdotal. O mais provável é que a cerimônia tenha ocorrido entre o fim de 1218 e o início de 1220. Como era praxe na época, a solenidade foi na catedral da cidade, hoje conhecida como Sé Velha de Coimbra, em missa presidida pelo bispo – posto ocupado por Pedro Soares (1193-1232), segundo registros da Diocese de Coimbra. Levantamento realizado por Fernando Félix Lopes, considerando as datas em que ordenações sacerdotais ocorreram na diocese, apontam para seis dias possíveis a investidura de Fernando: 21 de setembro ou 21 de dezembro de 1219; 15 de fevereiro, 14 de março, 28 de março ou 23 de maio de 1220.

Mas se o ordenamento clerical representou a coroação de sua dedicação e afinco aos estudos, foi também em Coimbra que se acendeu de vez nele a vontade de deixar a vida ascética para trás e interagir de modo mais intenso com o mundo.

A chama teve a ver com outro importante religioso que depois se tornaria santo: Francisco de Assis. Nascido Giovanni di Pietro di Bernardone (1182-1226), o italiano filho de uma bem-sucedida família burguesa de Assis teve uma juventude de extravagâncias, algazarras e prazeres mundanos. Quando se converteu, decidiu abdicar de toda a riqueza e, em um dia a dia de pobreza, dedicar sua vida a Deus. Fundou a Ordem dos Frades Menores em 1209 e, desde então, passou a congregar religiosos em vestes simples, praticamente em farrapos, descalços, prestando auxílio aos mais pobres, sobrevivendo da mendicância e em contato com a natureza.

Fernando estava desempenhando a função de porteiro da hospedaria do mosteiro quando acolheu um numeroso grupo de missionários franciscanos, liderados pelo Frade Giovanni Parenti (?-1250) – designado ministro provincial da ordem para a Península Ibérica. Por meio deles, soube das histórias de Francisco de Assis, do trabalho realizado pelos frades menores e da vida de pobreza que eles levavam.

Tornou-se imediatamente admirador dos franciscanos, aqueles homens que se entregavam a Deus de modo pleno, em absoluta pobreza, e não deixavam de assistir necessitados e doentes. Mais que isso: não se fechavam em conventos; andavam o mundo. Inquieto, começou a refletir se tal caminho não seria mais compatível com suas aspirações. Sobretudo pela missão que eles tão bem pareciam desempenhar: converter os não cristãos pela força da fé e da palavra, e não por meio das armas.

A Cruzada dos franciscanos era pela conversa, e não pela guerra. Eles acreditavam na reconquista como a conversão das almas, e não na tomada de terras. Exatamente como pensava Fernando, avesso a qualquer comportamento bélico. Afinal, ele não queria conquistar a Terra Santa; mas, sim, trazer os não cristãos ao catolicismo.

No fim do mesmo ano, Santa Cruz recebeu mais um grupo de franciscanos. Dessa vez, três religiosos e dois irmãos ainda não ordenados, enviados pelo próprio Francisco de Assis: eram eles os frades Bernardo, Oton e Pedro, e os irmãos leigos Adjuto e Acúrsio. A estadia em Coimbra serviria apenas como escala para a missão, que consistia em ir até Marrocos para pregar o Evangelho no meio dos muçulmanos.

Fernando ofereceu a eles alojamento e não economizou perguntas para conhecer ainda mais sobre a trajetória, o trabalho e o carisma dos franciscanos. Apesar das dificuldades da vida errante, eles pareciam felizes. Com suas túnicas grosseiras, pés nus, vivendo só de esmolas – da chamada providência divina –, os cinco cantavam o tempo todo. Festejavam a existência. Celebravam a natureza. Acreditavam no amor.

Depois da escala em Coimbra, os franciscanos foram para Sevilha, Espanha. A cidade estava dominada pelos mouros e eles lá chegaram disfarçados, como se fossem camponeses. Descobertos, foram presos e torturados. Quando recuperaram a liberdade, seguiram o caminho. Fingindo ser comerciantes, conseguiram atravessar o estreito de Gibraltar e, finalmente, atingiram o destino planejado: a cidade de Marraquexe, no Marrocos.

Nessa cidade, o quinteto enfrentou uma série de dissabores, insistentes que foram na pregação da fé cristã. Eles evangelizavam em praça pública quando acabaram presos pela primeira vez em solo africano. Seus julgadores concordaram em libertá-los, sob a condição de que não tornassem a propagar o catolicismo por ali.

Desrespeitaram o combinado e novamente foram detidos. Dessa vez, sofreram consequências mais fortes: condenados, apanharam muito, primeiro com chicotes, depois amarrados com cordas e, por fim, tiveram alguns ossos quebrados.

Libertados mais uma vez, os cinco franciscanos foram levados para Ceuta, 640 quilômetros ao norte. Dali, o plano marroquino era que terminassem sendo repatriados. Mas os teimosos religiosos conseguiram ludibriar de novo as forças de segurança e, de quebra, retornaram a Marraquexe.

Os inveterados pregadores não desistiam. Em outra tentativa de difundir a fé cristã em praça pública, foram detidos como anteriormente. Em 16 de janeiro de 1220, o caso foi levado para a cúpula do governo local que decidiu pela execução do quinteto, em cerimônia aberta.

Antes, Bernardo, Oton, Pedro, Adjuto e Acúrsio passaram por um longo suplício. Açoitados, tiveram mãos e pés atados e, amarrados a cavalos, foram arrastados de um lado para o outro. Em seus corpos feridos derramaram azeite fervente. Novamente os arrastaram pelo chão, desta vez sobre cacos de vidro. Conta-se que o quinteto seguia rezando e anunciando o Evangelho durante toda a tortura.

Só foram calados com a cimitarra – a espada de lâmina curva, típica dos guerreiros muçulmanos – que os decapitou.

Depois de uma árdua negociação, com participação de um cônego de Santa Cruz e na qual possivelmente houve suborno, os restos mortais dos cinco acabaram devolvidos para “solo cristão”.

Ciente da importância do episódio, o rei Afonso II (1185-1223) ordenou que os cinco mártires fossem sepultados na catedral da cidade, a Sé Velha. Quando os restos mortais chegaram, entretanto, a mula que conduzia os caixões mudou a rota e, sem que ninguém conseguisse fazê-la seguir o caminho previsto, encaminhou-se diretamente para o Mosteiro de Santa Cruz.

O povo viu nisso um sinal dos Céus. A cerimônia fúnebre ocorreria junto aos agostinianos que, na figura de Fernando, tão bem haviam acolhido os franciscanos.

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