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Santificação do trabalho e cristianização da sociedade
As luzes e sombras da época em que vivemos estão presentes aos olhos de todos. O desenvolvimento humano e as pragas que o infectam; o progresso civil em muitos aspectos e a barbárie noutros... São contrastes que tanto João Paulo II como seus sucessores têm assinalado repetidas vezes229, animando os cristãos a iluminar a sociedade com a luz do Evangelho.
Todavia, ainda que todos estejamos chamados a transformar a sociedade segundo o querer de Deus, muitos não sabem como fazê-lo. Pensam que essa tarefa depende quase exclusivamente daqueles que governam ou têm capacidade de influir através de sua posição social ou econômica e que eles, cristãos comuns, só podem agir como espectadores: aplaudir ou vaiar, mas sem entrar no campo de jogo, sem intervir na partida.
Essa não precisa ser a atitude do cristão, porque não corresponde à realidade de sua vocação.
Quer o Senhor que sejamos nós, os cristãos – porque temos a responsabilidade sobrenatural de cooperar com o poder de Deus, já que Ele assim dispôs na sua misericórdia infinita –, que procuremos restabelecer a ordem quebrantada e devolver às estruturas temporais, em todas as nações, sua função natural
de instrumento para o progresso da humanidade, e sua função sobrenatural de meio para chegar a Deus, à Redenção230.
Não somos espectadores. Ao contrário, é missão específica dos leigos santificar o mundo «a partir de dentro»231: «orientar com sentido cristão as profissões, as instituições e as estruturas humanas»232. Como ensina o Concílio Vaticano II, os leigos têm de «iluminar e ordenar de tal modo as realidades temporais, a que estão estreitamente ligados, que elas sejam sempre feitas segundo Cristo e progridam e glorifiquem o Criador e Redentor»233. Ou seja: «cristianizar o mundo inteiro a partir de dentro, mostrando que Jesus Cristo redimiu toda a humanidade – essa é a missão do cristão»234.
E para isso nós, cristãos, temos o poder necessário, ainda que não seja o poder humano. Nossa força é a oração e as obras convertidas em oração. «A oração é a arma mais poderosa do cristão. A oração faz-nos eficazes. A oração faz-nos felizes. A oração dá-nos toda a força necessária para cumprirmos os preceitos de Deus»235. Concretamente, a arma específica da maioria dos cristãos para transformar a sociedade é o trabalho convertido em oração. Não simplesmente o trabalho, mas sim o trabalho santificado.
Deus fez São Josemaria compreender isso num momento preciso: no 7 de agosto de 1931, durante a Santa Missa. Ao chegar à elevação, trouxe à sua alma com força extraordinária as palavras de Jesus: E quando eu for levantado da terra, atrairei todos os homens a mim (Jo 12, 32).
Entendi-o perfeitamente. O Senhor nos dizia: se vós me colocais na entranha de todas as atividades da terra, cumprindo o dever de cada momento, sendo meu testemunho no que parece grande e no que parece pequeno..., então omnia traham ad meipsum! Meu reino entre vós será uma realidade!236
Cristianizar a sociedade
Deus confiou ao homem a tarefa de edificar a sociedade ao serviço do seu bem temporal e eterno, de acordo com sua dignidade237: uma sociedade em que as leis, os costumes e as instituições que a conformam e estruturam favoreçam o bem integral das pessoas com todas as suas exigências; uma sociedade em que cada um se aperfeiçoe buscando o bem dos outros, já que o homem «não se pode encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo»238.
No entanto, tudo foi transtornado por conta do pecado do primeiro homem e da sucessiva proliferação dos pecados que – como ensina o Catecismo da Igreja – fazem «reinar entre eles [os homens] a concupiscência, a violência e a injustiça. Os pecados provocam situações sociais e instituições contrárias à Bondade divina; as “estruturas de pecado” são expressão e efeito dos pecados pessoais»239.
O Filho de Deus feito homem, Jesus Cristo Nosso Senhor, veio ao mundo para nos redimir do pecado e das suas consequências. Cristianizar a sociedade não é outra coisa que livrá-la dessas sequelas que o Catecismo resume com as palavras que acabamos de ler. É, de um lado, livrá-la das estruturas de pecado – por exemplo, das leis injustas e dos costumes contrários à moral – e de outro, mais profundamente, buscar que as relações humanas sejam presididas pelo amor de Cristo, e não viciadas pelo egoísmo da concupiscência, violência e injustiça.
Esta é a tua tarefa de cidadão cristão: contribuir para que o amor e a liberdade de Cristo presidam a todas as manifestações da vida moderna – a cultura e a economia, o trabalho e o descanso, a vida de família e o convívio social240.
Cristianizar a sociedade não é impor à força a fé verdadeira. O espírito cristão reclama precisamente o respeito do direito à liberdade social e civil em matéria religiosa, de modo que não se deve impedir a ninguém que pratique a sua religião, segundo a sua consciência, ainda quando esteja em erro, sempre que respeite as exigências da ordem, da paz e da moralidade públicas, que o Estado tem a obrigação de tutelar241. É necessário ajudar aos que estão no erro a conhecer a verdade, que só se encontra plenamente na fé católica, ensinando-os com o exemplo e com a palavra, nunca com coação. O ato de fé somente pode ser autêntico se for livre.
Mas quando um cristão procura fazer com que a lei civil promova o respeito pela vida humana desde a concepção, a estabilidade da família por meio do reconhecimento da indissolubilidade do matrimônio, os direitos dos pais na educação dos filhos nas escolas públicas e também nas particulares, a verdade na informação, a moralidade pública, a justiça nas relações laborais, etc., não pretende impor sua fé aos outros, mas sim cumprir seu dever de cidadão e contribuir, tanto quanto possa, na edificação de uma sociedade conforme à dignidade da pessoa humana. Certamente, o cristão, graças à Revelação divina, possui uma especial certeza sobre a importância que esses princípios e verdades possuem na construção de uma sociedade mais justa; mas seu conhecimento está ao alcance da razão humana e qualquer pessoa, independentemente de sua atitude religiosa, pode descobri-los e partilhá-los.
Esforça-te para que as instituições e as estruturas humanas, em que trabalhas e te moves com pleno direito de cidadão, se ajustem aos princípios que regem uma concepção cristã da vida.
Assim – não tenhas dúvida –, asseguras aos homens os meios necessários para viverem de acordo com a sua dignidade, e dás ensejo a que muitas almas, com a graça de Deus, possam corresponder pessoalmente à vocação cristã242.
«Devem os leigos sanear as estruturas e condições do mundo [...] de tal modo [...] que antes ajudem o exercício das virtudes do que o estorvem»243. A fé cristã faz sentir profundamente a aspiração, própria de todo cidadão, de buscar o bem comum da sociedade. Um bem comum que não se reduz ao desenvolvimento econômico, ainda que certamente o inclua. Inclui também, e antes – em sentido qualitativo, não sempre de urgência temporal –, as melhores condições possíveis de liberdade, de justiça, de vida moral – em todos os seus aspectos –, e de paz, que correspondem à dignidade da pessoa humana.
Quando um cristão faz o possível para configurar desse modo a sociedade, mobiliza a virtude da sua fé, não em nome de uma ideologia opinável, de partido político.
Age como «agiram os primeiros cristãos. Não tinham, por razão de sua vocação sobrenatural, programas sociais nem humanos que cumprir; mas estavam penetrados dum espírito, duma concepção de vida e do mundo, que não podia deixar de ter consequências na sociedade em que se moviam»244.
A tarefa apostólica, que Cristo confiou a todos os seus discípulos, produz, portanto, resultados concretos na esfera social. Não é admissível pensar que, para sermos cristãos, seja preciso voltarmos as costas ao mundo, sermos uns derrotistas da natureza humana245.
É necessário buscar sanear as estruturas da sociedade para empapá-las de espírito cristão, mas isso não basta. Ainda que pareça uma meta alta, não é mais que uma exigência básica. É preciso muito mais: procurar sobretudo que as pessoas sejam cristãs, que cada um irradie ao seu redor, na conduta diária, a luz e o amor de Cristo, o bom odor de Jesus Cristo (cf. 2 Cor 2, 15). A finalidade não são estruturas sãs, mas sim pessoas santas. Seria errado não cuidar de que as leis e os costumes da sociedade sejam conformes ao espírito cristão, mas seria tão errado quanto contentar-se apenas com isso. Mesmo porque, assim que se perdesse de vista as pessoas, as próprias estruturas sãs periclitariam perder-se. Sempre é necessário recomeçar. «Não há humanidade nova, se antes não há homens novos, com a novidade do batismo e da vida do Evangelho»246.
Por meio do trabalho
«De que tu e eu nos portemos como Deus quer – não o esqueças – dependem muitas coisas grandes»247. Se queremos cristianizar a sociedade, o primeiro dever é a santidade pessoal, nossa união com Deus.
Temos que ser, cada um de nós, alter Christus, ipse Christus: outro Cristo, o próprio Cristo. Só assim poderemos empreender essa tarefa grande, imensa, interminável: santificar por dentro todas as estruturas temporais, levando até elas o fermento da Redenção248.
É necessário que não percamos o sal, a luz e o fogo que Deus pôs dentro de nós para transformar o ambiente que nos rodeia. São João Paulo II assinalou que «é uma tarefa que exige coragem e paciência»249: coragem porque não podemos ter medo de chocar com o ambiente quando for necessário; e paciência, porque mudar a sociedade a partir de dentro requer tempo, e enquanto isso não se completa não devemos nos acostumar à presença do mal cristalizado na sociedade, porque acostumar-se com uma doença mortal é o mesmo que sucumbir.
O cristão deve estar sempre disposto a santificar a sociedade a partir de dentro, permanecendo plenamente no mundo, mas sem ser do mundo naquilo que o mundo encerra – não por ser característica real, mas por deficiência voluntária, pelo pecado – de negação de Deus, de oposição à sua amável vontade salvífica250.
Deus quer que infundamos o espírito cristão na sociedade através da santificação do trabalho profissional, já que «pelo trabalho, o cristão submete a criação e a ordena a Cristo Jesus, centro em que todas as coisas estão destinadas a recapitularem-se»251. O trabalho profissional é, concretamente, «meio imprescindível para o progresso da sociedade e o ordenamento cada vez mais justo das relações entre os homens»252.
Cada um há de se propor a tarefa de cristianizar a sociedade por meio do seu trabalho: primeiro mediante o desejo de aproximar de Deus os colegas e as pessoas com quem entra em contato profissional, para que também eles cheguem a santificar seu trabalho e a dar tom cristão à sociedade; depois, e inseparavelmente, mediante o empenho por cristianizar as estruturas do próprio ambiente profissional. Quem se dedica à empresa, à farmácia, à advocacia, à informação ou à publicidade... pode influir cristãmente no seu ambiente: nas relações das instituições profissionais e laborais. Não é suficiente não se manchar com práticas imorais: é preciso se propor a limpar o próprio âmbito profissional, torná-lo conforme à dignidade humana e cristã.
Para tudo isso:
Devemos receber uma formação tal que suscite em nossas almas, na hora de enfrentar o trabalho profissional de cada um, o instinto e a sã inquietude de conformar essa tarefa às exigências da consciência cristã, aos imperativos divinos que devem reger a sociedade e as atividades dos homens253.
As possibilidades de contribuir para a cristianização da sociedade em virtude do trabalho profissional vão além do que se pode realizar no estrito ambiente de trabalho. A condição de cidadão que exerce uma profissão na sociedade é um título para empreender ou colaborar em iniciativas educativas da juventude – escolas onde se dê formação humana e cristã, tão necessárias e urgentes em nosso tempo –, iniciativas assistenciais, associações para promover o respeito à vida ou à verdade nas informações, ou o direito a um ambiente moral saudável... Tudo realizado com a mentalidade profissional de filhos de Deus chamados a se santificar no meio do mundo.
Que entreguemos plenamente as nossas vidas ao Senhor Deus, trabalhando com perfeição, cada um na sua tarefa profissional e no seu estado, sem esquecer que devemos ter uma só aspiração, em todas as nossas obras: pôr Cristo no cume de todas as atividades dos homens254.
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