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5 Trabalho e contemplação (I) | Trabalhar bem, trabalhar por amor (v2)

Trabalho e contemplação (I)

 

Quereria que hoje, na nossa meditação, nos persuadíssemos definitivamente da necessidade de nos dispormos a ser almas contemplativas, no meio da rua, do trabalho, mantendo com o nosso Deus um diálogo contínuo, que não deve decair ao longo do dia. Se pretendemos seguir lealmente os passos do Mestre, esse é o único caminho59.

Para os chamados por Deus a se santificarem no meio do mundo, converter o trabalho em oração e ter alma contemplativa é o único caminho, porque «ou sabemos encontrar o Senhor em nossa vida ordinária, ou não O encontraremos nunca»60.

Meditemos devagar essa lição capital de São Josemaria. Neste capítulo consideraremos o que é a contemplação; no seguinte veremos que a contemplação pode dar-se no trabalho e nas outras atividades da vida ordinária.

 

Como em Nazaré. Como os primeiros cristãos

 

O descobrimento de Deus no ordinário de cada dia dá plenitude de sentido às nossas tarefas. A vida oculta de Jesus em Nazaré, os «anos intensos de trabalho e de oração, em que Jesus Cristo teve uma vida normal – como a nossa, se o queremos –, divina e humana ao mesmo tempo»61, mostram que a tarefa profissional, a atenção à família e as relações sociais não são um obstáculo para rezar continuamente (cf. Lc 18, 1), mas sim ocasião e meio para uma vida intensa de trato com Deus. «Chega um momento no qual é impossível distinguir onde acaba a oração e onde começa o trabalho, porque nosso trabalho é também oração, contemplação»62.

Pela senda da contemplação na vida ordinária, seguindo os passos do Mestre, discorreu a vida dos primeiros cristãos: «Quando passeia, conversa, descansa, trabalha ou lê, o crente ora»63, escrevia um autor do século II. Anos mais tarde, São Gregório Magno atesta, como um ideal feito realidade em numerosos fiéis, que:

A graça da contemplação não se dá aos grandes e se recusa aos pequenos; senão que muitos grandes a recebem, e também muitos pequenos; e tanto entre os que vivem retirados como entre as pessoas casadas. Logo, se não há estado nenhum entre os fiéis que fique excluído da graça da contemplação, o que o coração guarda interiormente pode ser ilustrado com essa graça64.

O Magistério da Igreja, sobretudo a partir do Concílio Vaticano II, recordou várias vezes esta doutrina, tão importante para os leigos. São João Paulo escreve:

As atividades diárias se apresentam como um precioso meio de união com Cristo, podendo se converter em matéria de santificação, terreno do exercício das virtudes, diálogo de amor que se realiza em obras. O espírito de oração transforma o trabalho, e assim se torna possível estar em contemplação de Deus, ainda que permanecendo nas ocupações mais variadas65.

 

A contemplação dos filhos de Deus

 

Lemos no Catecismo que a «contemplação de Deus
em sua glória celeste é chamada pela Igreja “visão beatífica”»
66. Dessa contemplação plena de Deus, própria do Céu, podemos ter uma certa antecipação nessa terra, uma incoação imperfeita67, que, ainda que seja de ordem diversa à da visão, é já uma verdadeira contemplação de Deus, do mesmo modo que a graça santificante é uma certa participação na natureza divina e incoação da glória. Agora vemos como em um espelho, obscuramente; então veremos face a face. Agora conheço de modo imperfeito; então conhecerei como sou conhecido, escreve São Paulo (1 Cor 12, 12; cf. 2 Cor 5, 7; 1 Jo 3, 2).

Essa contemplação de Deus como em um espelho, durante a vida presente, é possível graças às virtudes teologais: à fé e à esperança vivas, informadas pela caridade. A fé, unida à esperança e vivificada pela caridade, «faz que saboreemos, como que de antemão, a alegria e a luz da visão beatífica, termo da nossa caminhada nesta Terra»68.

A contemplação é um conhecimento amoroso e gozoso de Deus e de seus desígnios manifestados nas criaturas, na Revelação Sobrenatural, e plenamente na Vida, Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo, nosso Senhor. «Ciência de amor»69, chama-a São João da Cruz. A contemplação é um claro conhecimento da verdade, alcançado não por um processo de raciocínio, mas sim por uma intensa caridade70.

A oração mental é um diálogo com Deus.

Escreveste-me: «Orar é falar com Deus. Mas de quê?» – De quê? DEle e de ti: alegrias, tristezas, êxitos e fracassos, ambições nobres, preocupações diárias..., fraquezas!; e ações de graças e pedidos; e Amor e desagravo.

Em duas palavras: conhecê-lO e conhecer-te – ganhar intimidade!71

Na vida espiritual, esse trato com Deus tende a simplificar-se à medida que o amor filial aumenta, cheio de confiança. Acontece então que, com frequência, já não são necessárias palavras para orar, nem as exteriores nem as interiores. «Sobram as palavras, porque a língua não consegue expressar-se; começa a serenar-se a inteligência. Não se raciocina, fita-se!»72.

Isso é contemplação: um modo de rezar ativo mas sem palavras, intenso e sereno, profundo e simples. Um dom que Deus concede àqueles que O buscam com sinceridade, põem toda a alma no cumprimento da vontade dEle, com obras, e procuram sempre agir na sua presença.

Primeiro uma jaculatória, e depois outra, e mais outra..., até que parece insuficiente esse fervor, porque as palavras se tornam pobres..., e se dá passagem à intimidade divina, num olhar para Deus sem descanso e sem cansaço73.

Isso pode acontecer, segundo ensina São Josemaria, não só nos tempos dedicados expressamente à oração, mas também: «enquanto realizamos com a maior perfeição possível, dentro dos nossos equívocos e limitações, as tarefas próprias da nossa condição e do nosso ofício»74.

 

Sob a ação do Espírito Santo

 

O Pai, o Filho e o Espírito Santo inabitam na alma em graça: somos templos de Deus (cf. Jo 14, 23; 1 Cor 3, 16; 2 Cor 6, 16). Faltam palavras para expressar a riqueza do mistério da Vida da Santíssima Trindade em nós: o Pai que eternamente gera o Filho, e que com o Filho expira o Espírito Santo, vínculo do Amor subsistente. Pela graça de Deus, tomamos parte nessa vida como filhos. O Paráclito nos une ao Filho, que assumiu a natureza humana para nos fazer partícipes da natureza divina: ao chegar à plenitude dos tempos, enviou Deus seu Filho, nascido de mulher [...] para que recebêssemos a adoção de filhos. E, já que sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: «Abba, Pai!» (Gal 4, 4-6).

E nessa união com o Filho não estamos sós, mas formamos um corpo, o Corpo Místico de Cristo, ao que todos os homens estão chamados a incorporar-se como membros vivos e a ser instrumento para atrair outros, participando do sacerdócio de Cristo (cf. 1 Cor 12, 12-13, 27; Ef 2, 19-22; 4, 4).

A vida contemplativa é a vida própria dos filhos de Deus, vida de intimidade com as Pessoas Divinas e transbordante de afã apostólico. O Paráclito infunde em nós a caridade, que nos permite alcançar um conhecimento de Deus que sem o amor seria impossível, pois o que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor (Cf. 1 Jo 4, 9). Quem mais O ama melhor O conhece, já que esse amor – a caridade sobrenatural – é uma participação na infinita caridade, que é o Espírito Santo75, que tudo perscruta, até as profundezas de Deus. Pois quem sabe o que há no homem, senão o espírito do homem que está nele? Assim também as coisas de Deus ninguém as conheceu senão o Espírito de Deus (1 Cor 2, 10-11).

Esse Amor, com maiúscula, instaura na alma uma estreita familiaridade com as Pessoas Divinas, e um entendimento mais agudo, mais rápido, certeiro e espontâneo, em profunda sintonia com o Coração de Cristo (cf. Mt 11, 27). Aqueles que se amam se entendem com mais facilidade. Por isso São Josemaria recorre ao exemplo do amor humano para falar da contemplação de Deus. Recordava que na sua terra se diz «Como contempla!», quando se quer expressar o olhar amoroso e atento de uma mãe com o filho nos braços, e dizia que assim temos que contemplar o Senhor.

Mas qualquer exemplo, por bonito que seja, não é mais que uma sombra da contemplação que Deus concede às almas fiéis. Se já a caridade sobrenatural supera em altura, em qualidade e força qualquer amor puramente humano, que dizer dos Dons do Espírito Santo, que nos permitem deixar-nos levar docilmente por Ele? Com o crescimento destes Dons – Sabedoria, Entendimento, Conselho, Fortaleza, Ciência, Piedade e Temor de Deus – cresce a conaturalidade ou a familiaridade com Deus e se desenvolve todo o colorido da vida contemplativa.

Especialmente pelo Dom da Sabedoria – o primeiro dos Dons do Espírito Santo76 – é-nos concedido não apenas conhecer e assentir às verdades reveladas sobre Deus e as criaturas, como é próprio da fé, mas também saborear essas verdades, conhecê-las com «certo sabor de Deus»77. A Sabedoria – sapientia – é uma saborosa ciência: uma ciência que se degusta. Graças a esse dom, não somente cremos no Amor de Deus, mas também o apreciamos de um modo novo (cf. Rom 8, 5). É um saber a que só se chega pelo crescimento em santidade, e há almas que o recebem por sua profunda humildade: Eu te glorifico, Pai, Senhor do Céu e da terra, porque encobriste essas coisas aos sábios e prudentes e as revelaste aos pequeninos (Mt 11, 25). Com o dom da sabedoria, a vida contemplativa adentra as profundezas de Deus (cf. 1 Cor 1, 10). Nesse sentido, São Josemaria nos convida a meditar:

Um texto de São Paulo em que nos é proposto todo um programa de vida contemplativa – conhecimento e amor, oração e vida – [...]: que Cristo habite pela fé em vossos corações; e que, arraigados e alicerçados na caridade, possais compreender com todos os santos qual a amplitude e a grandeza, a altura e a profundidade do mistério; e conhecer também aquele amor de Cristo que excede todo o conhecimento, para que estejais repletos de toda a plenitude de Deus (Ef 3, 17-19)78.

Para ser contemplativos no meio do mundo é necessário implorar ao Espírito Santo o Dom da Sabedoria, junto com os outros dons que constituem seu séquito inseparável. São presentes do Amor Divino, joias que o Paráclito entrega àqueles que querem amar a Deus com todo o coração, com toda a alma, com todas as forças.

 

Pela senda da contemplação

 

Quanto maior é a caridade, tanto mais intensa é a familiaridade com Deus de que a contemplação surge. Mesmo a caridade mais débil – como a de quem se limita a não pecar gravemente, mas não busca cumprir em tudo a vontade divina – estabelece uma certa conformidade com o querer de Deus. No entanto, um amor que não tem o fervor da piedade se parece mais com a cortesia formal de um estranho do que com o afeto de um filho. Quem se conformasse com isso na relação com Deus não passaria de um conhecimento insípido e passageiro das verdades reveladas, porque quem se contenta com ouvir a palavra, sem pô-la em prática, é semelhante a um homem que contempla a figura de rosto em seu espelho; olha-se e depois se vai e imediatamente se esquece de como era (Tg 1, 23-24).

Muito distinto é o caso de quem deseja sinceramente identificar em tudo a sua vontade com a de Deus e põe os meios para tanto, com a ajuda da graça: cultiva a oração mental e vocal, a participação nos sacramentos – a Confissão frequente e a Eucaristia –, esmera-se no trabalho e no cumprimento fiel dos próprios deveres, busca a presença de Deus ao longo do dia, cuida da sua formação cristã e procura em tudo servir aos outros por amor a Deus. Quem age assim está no caminho de receber o dom da contemplação na vida cotidiana.

O ambiente atual da sociedade conduz muitos a viver virados para fora, com uma ânsia permanente de possuir isto ou aquilo, de ir de aqui para acolá, de ver e olhar, de se mover, de distrair-se com futilidades, talvez com o intento de esquecer seu vazio interior e a perda do sentido transcendente da vida humana. Mas quem descobre o chamado divino à santidade e ao apostolado e se propõe a segui-lo tem de caminhar por outra senda. Quanto mais atividade interior tiver, maior há de ser sua vida para dentro, com mais recolhimento interior, buscando o diálogo com Deus presente na alma em graça, mortificando os puxões da concupiscência da carne, da concupiscência dos olhos e da soberba da vida. Para contemplar a Deus é necessário limpar o coração. Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus (Mt 5, 8).

O Espírito Santo cumulou a Virgem Maria com seus dons para que Ela sobreabundasse em vida contemplativa. Ela é modelo e mestra de contemplação na existência cotidiana. É à sua mediação materna que têm de acudir quem aspirar a receber este dom, verdadeira antecipação do Céu.

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