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Trabalho de Deus
São Josemaria costumava falar da «velha novidade» da mensagem que recebeu de Deus: «velha como o Evangelho e como o Evangelho nova»88. Velho, porque era o que haviam vivido os primeiros cristãos, que se sabiam chamados à santidade e ao apostolado sem o afastamento do mundo, em suas ocupações e tarefas diárias. Por isso São Josemaria afirmava que «a maneira mais fácil de entender o Opus Dei é pensar na vida dos primeiros cristãos. Eles viviam a fundo a sua vocação cristã; buscavam seriamente a perfeição a que estavam chamados pelo fato, simples e sublime, do Batismo»89.
Enchia-lhe de alegria encontrar nos escritos dos Padres da Igreja os traços fundamentais da sua mensagem. Bem claras a esse respeito são as palavras que São João Crisóstomo dirige aos fiéis no século IV e que São Josemaria recolhe em uma de suas cartas:
Não vos digo: abandonai a cidade e apartai-vos dos negócios civis. Não. Permanecei onde estais, mas praticai a virtude. Eu preferiria, de verdade, que brilhassem por sua virtude mais aqueles que vivem no meio das cidades do que os que foram viver nos montes. Porque disso adviria um bem imenso, já que ninguém acende uma luz e a põe debaixo do alqueire... E não me venhas com: «Tenho filhos, tenho mulher, tenho que atender a casa e não posso cumprir o que me dizes». Se nada disso tivesses e fosses tíbio, tudo estaria perdido; mesmo quando tudo isso te rodeia, se és fervoroso, praticarás a virtude. Só uma coisa é necessária: uma generosa disposição. Se existe isso, nem a pobreza, nem os negócios, nem outra coisa qualquer pode ser um obstáculo contra a virtude. E, verdadeiramente, velhos e jovens, casados e pais de família, artesãos e soldados cumpriram já quanto foi mandado pelo Senhor. Jovem era Davi; José, escravo; Áquila exercia uma profissão manual; a vendedora de púrpura estava à frente de uma oficina; outro era sentinela de uma prisão; outro, centurião como Cornélio; outro estava doente como Timóteo; outro era um escravo fugitivo como Onésimo e, no entanto, nada disso foi obstáculo para nenhum deles, e todos brilharam por sua virtude: homens e mulheres, jovens e velhos, escravos, livres, soldados e camponeses90.
As circunstâncias da vida ordinária não são obstáculo, mas sim matéria e caminho de santificação. Com as debilidades e defeitos próprios de cada um, os discípulos de Cristo têm de ser hoje como aqueles primeiros: «cidadãos cristãos que querem corresponder cabalmente às exigências da sua fé»91. O ensinamento de São Josemaria se dirige aos homens e mulheres que não precisam sair do próprio lugar para encontrar e amar a Deus, precisamente porque – como recordou João Paulo II glosando a lição de
São Josemaria – «o Senhor quer entrar em comunhão
de amor com cada um de seus filhos, na trama das ocupações de cada dia, no contexto ordinário no qual se desenvolve a existência»92.
O fundador do Opus Dei estava convencido de que o Senhor, ao confiar-lhe a mensagem que havia de difundir, «quis que nunca mais se desconhecesse ou se esquecesse a verdade de que todos os homens devem santificar-se, e de que cabe à maioria dos cristãos santificarem-se no mundo, no trabalho ordinário [...]: que haja pessoas de todas as profissões e ofícios que procurem a santidade no seu estado, nessa sua profissão ou ofício, sendo almas contemplativas no meio da rua»93.
Santidade e crescimento em santidade, no trabalho
Com seu trabalho, «o homem não só transforma as coisas e a sociedade, mas também se aperfeiçoa a si mesmo»94. Se isto é verdade já no plano humano, não o é menos no sobrenatural. O aperfeiçoamento da pessoa por meio do trabalho não é outra coisa que o crescimento em santidade de quem o realiza. Mas isso somente acontece quando quem trabalha é já «santo», ou seja, quando está em graça de Deus: do contrário, não poderia crescer em santidade através do seu trabalho. Ou seja, somente quem já é «santo» pode santificar o seu trabalho e crescer então em santidade se santifica o trabalho.
Com a graça de Deus, dais a vosso trabalho profissional no meio do mundo seu sentido mais profundo e mais pleno, ao orientá-lo para a salvação das almas, ao pô-lo em relação com a missão redentora de Cristo [...]. Mas é necessário que Jesus e, com Ele, o Pai e o Espírito Santo, habitem realmente em nós. Por isso, santificaremos o trabalho se formos santos, se nos esforçarmos verdadeiramente por ser santos. [...] Se não tivesses vida interior, ao dedicar-vos ao trabalho, ao invés de divinizá-lo, poder-vos-ia acontecer o mesmo que ao ferro quando está vermelho e se mete na água fria: destempera-se e se apaga. Haveis de ter fogo que venha de dentro, que não se apague, que incendeie tudo o que toque95.
O processo de santificação de um cristão não é outra coisa que seu crescimento como filho de Deus, desde o Batismo até a plenitude da filiação divina na glória. Por isso, a ideia de que «santificaremos o trabalho se formos santos», contida nas palavras anteriores, pode-se expressar também em termos de filiação divina. O cristão está chamado a crescer em identificação com Jesus Cristo por meio do trabalho, e isso só é possível se já é filho adotivo de Deus pela graça.
Assim como Jesus crescia em sabedoria, em idade e em graça durante os anos de Nazaré, analogamente o cristão, vivendo vida sobrenatural, deve crescer como filho de Deus, identificando-se progressivamente com Cristo por meio de seus deveres ordinários e, concretamente, do trabalho profissional. «Santificar-se no trabalho» significa procurar crescer como filhos de Deus no trabalho: avançar na identificação com Cristo pela ação do Espírito Santo, mediante o trabalho.
No entanto, também é preciso dizer que não basta ser filho de Deus para trabalhar como filho de Deus e crescer em identificação com Cristo. Muitos são filhos de Deus pela graça, mas realizam seu trabalho à margem dessa magnífica realidade. Por isso São Josemaria aconselha a cultivar o sentido da filiação divina no trabalho: ser conscientes, enquanto se trabalha, de que Cristo vive em mim (Gal 2, 20).
O trabalho profissional de um cristão pode ser trabalho de Deus, operatio Dei, porque somos filhos adotivos de Deus e formamos uma só coisa com Cristo. O Filho Unigênito se fez Homem para nos unir a si – como os membros de um corpo estão unidos à cabeça – e operar através de nós. Verdadeiramente, somos de Cristo como Cristo é de Deus. Ele vive e age no cristão através da graça. «Eleva-se assim o trabalho à ordem da graça, santifica-se, converte-se em obra de Deus, operatio Dei, opus Dei»96.
Saber-se filho de Deus no trabalho conduz a realizá-lo como um encargo divino:
Tu e eu temos de recordar-nos e de recordar aos outros que somos filhos de Deus, a quem o Pai, como àqueles personagens da parábola evangélica, dirigiu idêntico convite: Filho, vai trabalhar na minha vinha (Mt 21, 28)97.
A consciência da filiação divina leva-nos a fixar a mirada no Filho de Deus feito homem, especialmente durante aqueles «anos intensos de trabalho e de oração, em que Jesus Cristo teve uma vida normal [...]. Naquela simples e ignorada oficina de artesão, como mais tarde diante das multidões, cumpriu tudo com perfeição»98. O convencimento de viver a vida de Cristo proporciona a quem se sabe filho de Deus a certeza de que é possível converter o trabalho em oração.
Plenamente mergulhado no seu trabalho diário entre os demais homens, seus iguais, atarefado, ocupado, em tensão, o cristão tem de estar ao mesmo tempo totalmente mergulhado em Deus, porque é filho de Deus99.
A dignidade de todo o trabalho
Por esta razão São Josemaria pregou incansavelmente que qualquer trabalho honesto pode ser santificado – ser feito santo –, converter-se em obra de Deus. E o trabalho assim santificado nos identifica com Cristo – perfeito Deus e perfeito Homem –, santifica-nos e nos aperfeiçoa, fazendo-nos imagem dEle. Em qualquer trabalho honesto o homem pode desenvolver a sua vocação para o amor. Por isso São Josemaria repete que «não faz nenhum sentido dividir os homens em diferentes categorias, conforme os tipos de trabalho, considerando umas ocupações mais nobres do que as
outras»100, porque «a categoria do ofício depende de quem o exercita»101. Para São Josemaria, «todo o trabalho» – incluindo certamente o trabalho manual – «é testemunho da dignidade do homem [...], é meio de desenvolvimento da personalidade [...], meio de contribuir para o progresso da sociedade em que se vive e para o progresso de toda a humanidade»102. «É hora de que todos nós, cristãos, anunciemos bem alto que o trabalho é um dom de Deus»103, não um castigo ou uma maldição, mas sim uma realidade querida e bendita pelo Criador antes do pecado original (Gen 2, 15), uma realidade que o filho de Deus encarnado assumiu em Nazaré, onde levou uma vida de longos anos de trabalho cotidiano em companhia de Santa Maria e de São José, sem brilho humano, mas com esplendor divino. «Nas mãos de Jesus, o trabalho, e um trabalho profissional semelhante àquele que desenvolvem milhões de homens no mundo, converte-se em tarefa divina, em trabalho redentor, em caminho de salvação»104.
O próprio esforço que exige o trabalho foi elevado por Cristo a instrumento de libertação do pecado, de redenção e de santificação105. Não existe trabalho humano limpo que não possa «transformar-se em âmbito e matéria de santificação, em terreno de exercício das virtudes e em diálogo de amor»106.
Deus havia formado o homem do barro da terra e o havia feito partícipe do seu poder criador para que aperfeiçoasse o mundo com seu engenho (Gen 2, 7.15). No entanto, depois do pecado, ao invés de elevar as realidades terrenas à glória de Deus com seu trabalho, frequentemente o homem se cega e se degrada. Uns não querem trabalhar; outros o fazem somente para conseguir os meios econômicos de que precisam, ou com outros horizontes meramente humanos; outros veem no trabalho um instrumento para a própria afirmação sobre os demais... Mas Jesus, que converteu o barro em colírio para devolver a vista a um cego (cf. Jo 7, 7), emprega o trabalho para curar a nossa cegueira, devolvendo-lhe a sua dignidade de meio para a santidade e o apostolado. Quando descobrimos que é possível santificar o trabalho, tudo se ilumina com um sentido novo, e começamos a ver e amar a Deus – a ser contemplativos – nas situações que antes pareciam monótonas e vulgares, e que então adquirem um alcance eterno e sobrenatural.
Um esplêndido panorama se apresenta diante de nós: «santificar o trabalho, santificar-se no trabalho, santificar com o trabalho»107. Somos protagonistas do desígnio divino de pôr a Cristo no cume de todas as atividades humanas. Desígnio que Deus quis que São Josemaria compreendesse com a visão clarividente que o levava a escrever, cheio de fé na graça e de confiança naqueles que receberiam a sua mensagem:
Contemplo já, ao longo dos tempos, até o último de meus filhos – porque somos filhos de Deus, repito – agir profissionalmente, com sabedoria de artista, com felicidade de poeta, com segurança de maestro e com um pudor mais persuasivo que a eloquência, buscando – ao ir atrás da perfeição cristã na sua profissão e em seu estado no mundo – o bem de toda a humanidade108.
Como é preciosa a vossa bondade, ó Deus! À sombra de vossas asas se refugiam os filhos dos homens [...]. Em vós está a fonte da vida, e é na vossa luz que vemos a luz (Sal
35, 8.10). A Santíssima Trindade concedeu a São Josemaria a sua luz para que contemplasse profundamente o mistério de Jesus Cristo, luz dos homens (Jo 1, 4): outorgou-lhe:
Uma vivíssima contemplação do mistério do Verbo Encarnado, graças ao qual compreendeu com profundidade que a estrutura das realidades humanas se compenetra intimamente, no coração do homem renascido em Cristo, com a economia da vida sobrenatural, convertendo-se assim em lugar e meio de santificação109.
O magistério de São Josemaria já iluminou a vida de uma multidão de homens e mulheres das mais diversas condições e culturas, que empreenderam a aventura de ser santos na naturalidade da vida ordinária.
Uma aventura de amor abnegado e forte, que cumula de felicidade a alma e semeia no mundo a paz de Cristo (cf. Ef 1, 10).
São João Paulo II fez o convite a seguir fielmente o exemplo de São Josemaria: «Seguindo as pegadas de vosso Fundador, prossegui com zelo e fidelidade vossa missão. Mostrai com vosso esforço diário que o amor de Cristo pode animar todo o arco da existência»110.
Contamos sobretudo com a intercessão de Nossa Mãe. A ela pedimos que nos prepare diariamente o caminho da santidade na vida ordinária e no-lo conserve sempre.
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