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O eixo da nossa santificação
Entre todas as atividades temporais que são matéria de santificação, o trabalho profissional ocupa um lugar primordial nos ensinamentos de São Josemaria. De palavra e por escrito, afirma constantemente que a santificação do trabalho é «como que o eixo da verdadeira espiritualidade para os que – imersos nas realidades temporais – estão decididos a ter uma vida de intimidade com Deus»137.
Dentro da espiritualidade laical, a peculiar fisionomia espiritual e ascética da Obra aporta uma ideia, meus filhos, que é importante destacar. Disse-vos uma infinidade de vezes, desde 1928, que o trabalho é para nós o eixo ao redor do qual há de girar todo o nosso empenho para conseguir a perfeição cristã. [...] E, ao mesmo tempo, esse trabalho profissional é o eixo ao redor do qual gira todo nosso empenho apostólico138.
Este ensinamento é um traço peculiar do espírito que Deus fez ver a São Josemaria em 2 de outubro de 1928. Não é o único modo de orientar a santificação das realidades temporais, mas sim o modo específico e próprio do espírito do Opus Dei.
A vocação sobrenatural à santidade e ao apostolado segundo o espírito do Opus Dei confirma a vocação humana ao trabalho [...]. Um dos sinais essenciais dessa vocação é precisamente viver no mundo e desempenhar ali um trabalho – contando, volto a dizê-lo, com as próprias imperfeições pessoais – da maneira mais perfeita possível, tanto do ponto de vista humano como do sobrenatural139.
Trabalho profissional
A atividade ordinária não é um pormenor de pouca importância, mas o eixo da nossa santificação, oportunidade contínua de nos encontrarmos com Deus, de louvá-lo e glorificá-lo com a obra da nossa inteligência ou das nossas mãos140.
Nesses textos e em outras muitas ocasiões, São Josemaria se refere, com a expressão «eixo da nossa santificação», umas vezes ao trabalho e outras à santificação do trabalho. Ao trabalho, porque é a própria matéria com que se constrói o eixo; e à santificação do trabalho, porque não basta trabalhar: se o trabalho não é santificado, não serve de eixo para a busca da santidade.
O trabalho que São Josemaria indica como eixo da vida espiritual não é uma atividade qualquer. Não se trata de tarefas realizadas por passatempo, para cultivar uma inclinação ou por outros motivos, às vezes por necessidade e com esforço. Trata-se precisamente do trabalho profissional: o ofício publicamente reconhecido – munus publicum – que cada um realiza na sociedade civil como atividade que lhe serve e constrói, que é objeto de deveres e responsabilidades assim como de direitos, entre os quais se encontra o da justa remuneração. São profissionais, por exemplo, o trabalho do arquiteto, do carpinteiro, do professor, o trabalho do lar...
De certo modo, também o ministério sacerdotal pode ser chamado de trabalho profissional – assim o faz algumas vezes São Josemaria141 –, pois é uma tarefa pública a serviço de todas as pessoas e, concretamente, a serviço da santificação dos fiéis correntes no desempenho das diversas profissões, contribuindo assim à edificação cristã da sociedade, missão que exige a cooperação do sacerdócio comum e do ministerial. Embora seja em si mesmo um ministério sagrado – uma tarefa que não é profana, mas santa –, aquele que a realiza não se torna santo automaticamente. O sacerdote tem de lutar para santificar-se no exercício do ministério e, em consequência, pode viver o espírito de santificação do trabalho que ensina o Fundador do Opus Dei, realizando-o com «alma verdadeiramente sacerdotal e mentalidade plenamente laical»142.
Convém recordar que algumas vezes São Josemaria também chama de trabalho profissional a doença, a velhice e as outras situações da vida que absorvem as energias que seriam, do contrário, dedicadas à profissão. Assim como o amor a Deus leva a realizar os deveres profissionais com perfeição, também um doente pode cuidar, no que depende de si, por Deus e com sentido apostólico, das exigências do seu tratamento – exercícios, dieta –, e esforçar-se por ser um bom paciente, que sabe obedecer até se identificar com Cristo, obediente até a morte, e morte de Cruz (Fil 2, 8). Nesse sentido, «a doença e a velhice, quando chegam, transformam-se em labor profissional. E assim não se interrompe a busca da santidade, segundo o espírito da Obra, que se apoia, como a porta no gonzo, no trabalho profissional»143.
Outra situação semelhante, por exemplo, é a de quem procura emprego. O Fundador do Opus Dei costumava dizer, indubitavelmente em sentido análogo, que o trabalho «profissional» dessas pessoas nesse momento é precisamente «buscar trabalho», de modo que devem realizar da melhor maneira possível, por amor a Deus, todas as tarefas que isso exige.
Em todo caso, como é lógico, quando se fala de trabalho profissional, se pensa normalmente nas pessoas que exercem a sua profissão civil, não nessas outras situações às quais a expressão se aplica por analogia. No presente capítulo falaremos do trabalho profissional, em sentido próprio e principal, que constitui
o eixo ou dobradiça da santificação no magistério de São Josemaria.
Na trama da vida diária
As tarefas familiares, profissionais e sociais formam uma trama que é a matéria de santificação e o terreno de apostolado de um fiel corrente. Essa trama pode ser santificada de várias maneiras. Aquela ensinada por São Josemaria tem como uma de suas características principais que o eixo da santificação é o trabalho profissional, fator fundamental pelo qual a sociedade civil qualifica os cidadãos144.
Essa característica tem seu fundamento nas relações entre a santificação pessoal no meio do mundo e o cumprimento dos deveres profissionais, familiares e sociais, como se considerará a seguir. Entende-se aqui por mundo a sociedade civil, que os fiéis leigos, com a cooperação do sacerdócio ministerial, haverão de configurar e empapar de espírito cristão.
A santificação no meio do mundo exige «a santificação do mundo ab intra, desde as próprias entranhas da sociedade civil»145, que consiste em «iluminar e ordenar de tal
modo as realidades temporais, a que [os fiéis] estão estreitamente ligados, que elas sejam sempre feitas segundo Cristo e progridam e glorifiquem o Criador e Redentor (cf.
Ef 1, 10)»146. Para levar a cabo essa missão é essencial santificar a família, origem e fundamento da sociedade humana, e sua célula primeira e vital147. Contudo, a sociedade não é simplesmente um aglomerado de famílias, assim como um corpo não é só um aglomerado de células.
Há uma organização e uma estrutura, uma vida própria do corpo social. Para iluminar a sociedade com o espírito cristão é necessário santificar, além da família, as relações sociais, criando um clima de amizade e de serviço, cooperando pelas vias de participação social e política no estabelecimento de estruturas – como são as leis civis – conformes à dignidade da pessoa humana e, portanto, à lei moral natural, e dando tom cristão aos costumes, modas e diversões. No entanto, para isso não bastam as relações sociais. São as diversas atividades profissionais que configuram radicalmente a sociedade, sua organização e sua vida, influindo também, de modo profundo, nas próprias relações familiares e sociais.
A santificação do trabalho profissional – com a santificação da vida familiar e social – não só é necessária para modelar a sociedade segundo o querer de Deus, mas também serve de eixo na estrutura que formam essas atividades. Isso não significa que os deveres profissionais sejam mais importantes que as tarefas familiares e sociais, mas sim que são apoio para a família e a convivência social. Assim como não serviria de nada um gonzo sem porta, da mesma maneira não teria sentido – por muito que brilhasse – um trabalho profissional isolado do conjunto, convertido em fim de si mesmo: um trabalho que não fosse eixo da santificação de toda a vida cotidiana, profissional, familiar e social. Mas ao mesmo tempo, o que seria da porta sem o eixo? Para São Josemaria, o trabalho profissional e o cumprimento dos deveres familiares e sociais não devem entrar em conflito, mas, pelo contrário, são elementos inseparáveis da unidade de vida necessária para a santificação no meio do mundo a partir de dentro.
Além da função peculiar do trabalho para santificar a sociedade por dentro, é necessário considerar que a santificação do trabalho pode ser tomada como eixo da vida espiritual porque ordena a pessoa a Deus em aspectos profundos que precedem a vida familiar e social; aspectos aos quais a própria vida familiar e a social devem servir. Com efeito, com palavras do Concílio Vaticano II, «a pessoa humana, uma vez que, por sua natureza, necessita absolutamente da vida social, é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais»148. Ao falar de instituições sociais se incluem, como indica pouco depois o mesmo documento, «a família e a sociedade política, [que] correspondem mais imediatamente à sua natureza íntima [à natureza íntima do homem]»149. Portanto, a família e a sociedade se ordenam totalmente ao bem da pessoa, que tem necessidade de vida social. Por outro lado, cabe à pessoa buscar o bem da família e da sociedade com todo seu ser e agir, ainda que não se ordene totalmente a esse bem. Em sentido estrito, a pessoa somente se ordena totalmente à união com Deus, à santidade150.
O trabalho pode ser eixo de toda a vida espiritual porque, além de servir ao bem da família e à configuração cristã da sociedade, é campo para o aperfeiçoamento do homem e para a sua ordenação a Deus em aspectos que não estão inclusos na vida familiar e social, por serem específicos do âmbito profissional: a justiça nas relações laborais, a responsabilidade no próprio trabalho, a laboriosidade, as muitas manifestações de fortaleza, constância, lealdade e paciência... Isso para mencionar somente alguns exemplos.
É a todo esse conjunto de elementos que São Josemaria se refere quando convida a considerar que:
O trabalho é o veículo pelo qual o homem se insere na sociedade, o meio pelo qual se une ao conjunto das relações humanas, o instrumento que lhe assinala um lugar, uma posição na convivência dos homens. O trabalho profissional e a existência no mundo são duas faces da mesma moeda, são duas realidades que se exigem mutuamente, sem que seja possível entender uma à margem da outra151.
Definitivamente, o juízo de que a santificação do trabalho é o «eixo» da santificação no meio do mundo está solidamente fundado na visão cristã da pessoa e da sociedade, tanto por causa da missão de santificar a sociedade a partir de dentro, pois ela se configura principalmente pelos diversos trabalhos profissionais, como pela santificação pessoal no cumprimento dessa missão, já que a santificação do trabalho serve à ordenação total da pessoa a Deus: não só contribui para ordenar cristãmente a vida familiar e social, mas também para a completa identificação com Cristo através do aperfeiçoamento das outras dimensões da pessoa que não se encontram englobadas nos âmbitos familiar e social.
A vocação profissional
Por ser o trabalho o eixo da vida espiritual, compreende-se que São Josemaria afirme que a «vocação profissional não é só uma parte, mas sim uma parte principal da nossa vocação sobrenatural»152.
Cada um descobre a sua vocação profissional pelas qualidades e aptidões que recebeu de Deus, pelos deveres a cumprir no lugar e nas circunstâncias em que se encontra, pelas necessidades da sua família e da sociedade, pelas possibilidades reais de exercer um ofício ou outro. Tudo isso – e não somente os gostos ou as inclinações e menos ainda os caprichos da fantasia – é o que configura a vocação profissional de cada um. Chama-se vocação porque esse conjunto de fatores representa uma chamada de Deus para escolher a atividade profissional mais conveniente como matéria de santificação e apostolado.
Não podemos nos esquecer de que a vocação profissional é parte de nossa vocação divina «na medida em que é meio para nos santificarmos e para santificar os demais»153; e, portanto:
Se em algum momento a vocação profissional implica um obstáculo, [...] se absorve de tal modo que dificulta ou impede a vida interior ou o fiel cumprimento dos deveres de estado [...], não é parte da vocação divina, porque já não é vocação profissional154.
Posto que a vocação está determinada em parte pela situação de cada um, não é uma chamada para exercer um trabalho profissional fixo e predeterminado, independentemente das circunstâncias.
A vocação profissional é algo que vai se concretizando ao longo da vida: não poucas vezes aquele que começou a estudar algo descobre depois que está melhor dotado para outras tarefas, e se dedica a elas; ou acaba se especializando em um campo distinto do que previu a princípio; ou encontra, já em pleno exercício da profissão que escolheu, um novo trabalho que lhe permite melhorar a posição social dos seus, ou contribuir mais eficazmente para o bem da coletividade; ou se vê obrigado, por razões de saúde, a trocar de ambiente e de ocupação155.
A vocação profissional é uma chamada a desempenhar uma profissão na sociedade. Não uma qualquer, mas sim aquela – dentro das que se apresentam como possíveis –
através da qual melhor se pode alcançar o fim sobrenatural a que se ordena o trabalho como matéria e meio de santificação e apostolado, e com a qual cada um «ganha a vida, mantém a família, contribui para o bem comum, desenvolve a personalidade»156. Não se deve optar pelo trabalho mais simples como se desse no mesmo, nem fazer uma escolha guiado superficialmente pelo gosto ou pelo brilho humano. O critério de escolha deve ser o amor a Deus e às almas: o serviço que se pode prestar à extensão do Reino de Cristo e ao progresso humano, fazendo render os talentos que se receberam.
Quando o eixo está bem posto e lubrificado, a porta gira com segurança e suavidade. Quando o trabalho está firmemente assentado no sentido da filiação divina, quando é trabalho de um filho de Deus – obra de Deus, como o trabalho de Cristo –, toda a estrutura da vida pode se mover com harmonia, abrindo as entranhas da sociedade à graça divina. Quando o eixo está ausente, porém, como será possível empapar a sociedade de espírito cristão? E quando o eixo está oxidado, ou torcido, ou fora de lugar, de que servirá, ainda que seja feito de um metal valioso?
Mais: quando surgem conflitos entre o trabalho profissional e as tarefas familiares e sociais, se ele as estorva, complica-as e até as paralisa, será necessário questionar o valor de um eixo sem porta. E, sobretudo, e na raiz de tudo, se o trabalho está desvinculado do seu fundamento, que é a filiação divina, se não fosse um trabalho santificado, que sentido teria para um cristão?
Vamos pedir luz a Jesus Cristo Senhor Nosso e suplicar-lhe que nos ajude a descobrir em cada instante esse sentido divino que transforma a nossa vocação profissional no eixo sobre o qual assenta e gira a nossa chamada à santidade. Veremos no Evangelho que Jesus era conhecido como faber, filius Mariae, o operário, o filho de Maria. Pois bem, também nós, com um orgulho santo, temos que demonstrar com as nossas obras que somos trabalhadores!, homens e mulheres de trabalho!157
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