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Trabalho e contemplação (II)
Quando iam a caminho entrou Jesus em certa aldeia, e uma mulher que se chamava Marta o recebeu em sua casa. Tinha essa uma irmã chamada Maria que, sentada aos pés do Senhor, escutava a sua palavra. Mas Marta andava afanada com numerosas tarefas e pondo-se adiante disse: «Senhor, não te importa que minha irmã me deixa sozinha nas tarefas de servir? Dize-lhe então que me ajude». Mas o Senhor respondeu: «Marta, Marta, tu te preocupas e te inquietas por muitas coisas. Mas uma só coisa é necessária: Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada». (Lc 10, 38-42)
Muitas vezes ao longo da história as figuras de Maria e Marta serviram para representar as vidas contemplativa e ativa, como dois gêneros de vida dos quais o primeiro seria mais perfeito, de acordo com as palavras do Senhor: Maria escolheu a melhor parte.
Os termos «vida contemplativa» e «vida ativa» costumam ser referidos à vocação religiosa, entendendo-se por vida contemplativa, em grandes traços, a daqueles religiosos que se afastam materialmente do mundo para se dedicar à oração, e por vida ativa a daqueles que realizam tarefas como ensinar a doutrina cristã, atender aos doentes e outras obras de misericórdia.
Dentro desse contexto, há muitos séculos essa cena evangélica tem servido de base para a afirmação de que a contemplação ativa é possível. O sentido clássico da expressão «contemplação ativa», porém, não se refere à possibilidade da contemplação nas atividades profissionais, familiares e sociais, próprias da vida dos fiéis correntes, mas sim às ações apostólicas e de misericórdia dentro do caminho da vocação religiosa.
São Josemaria nos ensinou a aprofundar nas palavras do Senhor a Marta, fazendo ver que não há nenhuma oposição entre a contemplação e a realização, com a maior perfeição possível, do trabalho profissional e dos deveres ordinários do cristão.
Já consideramos no capítulo anterior o que é a contemplação cristã: essa oração simples de tantas almas que, por amarem muito a Deus e serem dóceis ao Espírito Santo, buscando em tudo a identificação com Cristo, são levadas pelo Paráclito a penetrar nas profundidades da vida íntima da Santíssima Trindade, de suas obras e desígnios, com uma sabedoria que dilata cada vez mais seu coração e torna mais agudo o seu conhecimento. Uma oração em que «sobram as palavras, porque a língua não consegue expressar-se; começa a serenar-se a inteligência. Não se raciocina, fita-se! E a alma rompe outra vez a cantar um cântico novo, porque se sente e se sabe também fitada amorosamente por Deus, em todos os momentos»79.
Agora convém que nos detenhamos a considerar três modos nos quais se pode dar a contemplação. Em primeiro lugar, nos períodos dedicados exclusivamente à oração; em segundo, enquanto se trabalha ou se realiza qualquer atividade que não requer toda a atenção da mente; e, finalmente, através do próprio trabalho, mesmo quando ele exige uma concentração exclusiva. Esses três caminhos constituem a vida contemplativa, fazendo da vida ordinária um estar no céu e na terra ao mesmo tempo, como dizia São Josemaria.
Na oração e em todas as práticas de piedade
Antes de tudo, a contemplação precisa ser pedida a Deus e buscada nas práticas de piedade cristã, que deve balizar o nosso dia, muito especialmente nos períodos dedicados de modo exclusivo à oração mental.
São Josemaria ensinou a buscar a contemplação nesses momentos: a contemplar a vida do Senhor, a olhá-lO na Eucaristia, a se relacionar com as Três Pessoas divinas pelo caminho da Humanidade Santíssima de Jesus Cristo, a ir a Jesus por Maria... É necessário não se conformar com repetir orações vocais na oração mental, ainda que talvez seja imperioso repeti-las durante muito tempo. Nesses casos, importa considerá-las sempre a porta que se abre para a contemplação.
Também nas relações humanas, quando por exemplo nos encontramos com um amigo, costumamos dirigir algumas saudações para iniciar a conversa. Mas o trato não pode se limitar a isso. A conversa tem que continuar com palavras mais pessoais até que, inclusive, cheguem a sobrar porque há uma sintonia profunda e uma grande familiaridade. Muito mais no trato com Deus.
Começamos com orações vocais. Primeiro uma jaculatória, e depois outra, e outra..., até que parece insuficiente esse fervor, porque as palavras se tornam pobres..., e se dá passagem à intimidade divina, num olhar para Deus sem descanso e sem cansaço80.
«Et in meditatione mea exardescit ignis» – E na minha meditação se ateia o fogo. – Para isso vais à oração: para tornar-te uma fogueira, lume vivo, que dê calor e luz81.
Os períodos de oração bem feitos são uma caldeira que estende seu calor aos diversos momentos do dia.
Do recolhimento nos períodos de oração; da relação com o Senhor buscada com afinco nesses momentos, às vezes por meio da meditação de algum texto que ajude a centrar a cabeça e o coração em Deus; do empenho em afastar as distrações; da humildade para começar e recomeçar, sem apoiar-se nas próprias forças, mas sim na graça de Deus: em uma palavra, é da fidelidade diária aos períodos de oração que depende a realização, para além desses momentos, do ideal de sermos contemplativos no meio do mundo.
Enquanto se trabalha ou se realiza outra atividade
A contemplação não se limita aos períodos dedicados à oração. Pode acontecer ao longo da jornada, em meio às ocupações cotidianas, enquanto se realizam tarefas que não requerem toda a atenção da mente, mas que devem ser feitas, ou nos momentos de pausa de qualquer trabalho.
Pode-se contemplar a Deus enquanto se vai pela rua, enquanto se cumprem deveres familiares e sociais comuns na vida de qualquer pessoa, ou se realizam trabalhos que já se dominam com soltura, ou por ocasião de um intervalo na própria tarefa, ou simplesmente durante uma espera.
Do mesmo modo que períodos de oração, as jaculatórias podem abrir caminho para a contemplação. Também no meio dessas outras ocupações a busca da presença de Deus desemboca na vida contemplativa, mais intensa até, como o Senhor fez com que experimentasse São Josemaria. «É incompreensível» – anota em seus apontamentos íntimos – «sei de alguém que está frio (apesar da sua fé, que não admite limites) junto ao fogo diviníssimo do Sacrário, e depois, em plena rua, por entre o ruído dos automóveis, bondes e pessoas, lendo um jornal!, vibra com arrebatamentos de loucura de Amor de Deus»82.
Essa realidade é inteiramente um dom de Deus, mas só o pode receber quem o deseja em seu coração e não o rechaça com as obras. Rechaça-o aquele que tem os sentidos dispersos, ou se deixa dominar pela curiosidade, ou se submerge num tumulto de pensamentos e imaginações inúteis que o distraem e o dissipam. Numa palavra, quem não sabe estar no que faz83. A vida contemplativa requer mortificação interior, negar-se a si mesmo por amor a Deus, para que Ele reine no coração e seja o centro ao qual se dirigem, em último termo, todos os pensamentos e afetos da alma.
Contemplação «nas e através das» atividades ordinárias
Como dissemos, nos períodos de oração não há necessidade de se conformar com a repetição de jaculatórias ou apenas com a leitura e a meditação intelectual; antes, é preciso buscar o diálogo com Deus até chegar, com a sua graça, à contemplação. O mesmo vale para o trabalho – se queremos convertê-lo em oração –: é preciso não se contentar com oferecê-lo no começo e dar graças ao final, ou procurar renovar esse oferecimento várias vezes, unidos ao sacrifício do altar. Tudo isso é já muito agradável a Deus, mas um filho de Deus tem de ser audaz e aspirar a mais: a realizar seu trabalho como Jesus em Nazaré, unido a Ele. Um trabalho em que, graças ao amor sobrenatural com que se leva a cabo, contempla-se a Deus, que é Amor (cf. 1 Jo 4, 8).
Como a contemplação é um adiantamento da visão beatífica, fim último da nossa vida, é lógico que qualquer atividade que Deus queira que realizemos – como o trabalho e as tarefas familiares e sociais, que são vontade sua para cada um – possa ser um canal por onde a vida contemplativa pode fluir. Porque quaisquer dessas atividades podem ser realizadas por amor a Deus e com amor a Deus; por esse mesmo motivo também se podem converter em meio de contemplação, que não é outra coisa senão um modo especialmente familiar de conhecê-lO e amá-lO.
Lição constante e característica de São Josemaria é que a contemplação é possível não só enquanto se realiza uma atividade, mas também por meio das atividades queridas por Ele, nessas mesmas tarefas e através delas, até quando se trata de trabalhos que exigem toda a concentração da mente. São Josemaria ensina que chega um momento no qual não se é capaz de distinguir a contemplação da ação, terminando esses conceitos por significar o mesmo na mente e na consciência.
Nesse sentido, é esclarecedora uma explicação de São Tomás:
Quando, num conjunto de duas coisas, uma é razão para a outra, a ocupação da alma numa não impede nem diminui a ocupação na outra [...] E como Deus é apreendido pelos santos como a razão de tudo quanto fazem ou conhecem, a sua ocupação em perceber as coisas sensíveis, ou em contemplar ou fazer qualquer outra coisa, em nada lhes impede a divina contemplação, nem vice-versa84.
Daí que um cristão que queira receber o dom da contemplação deva antes de tudo pôr a Deus como fim de seus trabalhos, realizando-os non quasi hominibus placentes, sed Deo, qui probat corda nostra: não para agradar aos homens, mas a Deus, que sonda nossos corações (1 Tess 2, 4).
Podemos contemplar a Deus nas atividades que realizamos por amor dEle, porque esse amor é uma participação no amor infinito que é o Espírito Santo, que investiga as profundidades de Deus (1 Cor 2, 10). Aquele que trabalha por amor a Deus pode se dar conta – sem pensar noutra coisa, sem distrair-se – de que O ama quando trabalha, com o amor infundido pelo Espírito Santo nos corações dos filhos de Deus em Cristo (cf. Rom 5, 5). «Reconhecemos Deus não apenas no espetáculo da natureza, mas também na experiência do nosso próprio trabalho»85. Assim se compreende que a contemplação seja possível em trabalhos que exigem pôr toda a energia da mente, como são – por exemplo – o estudo ou a docência.
Também podemos contemplar a Deus através do trabalho porque, assim como O vemos quando contemplamos suas obras, nas quais se manifesta a sua glória, também podemos contemplá-lO através das nossas, na medida em que participam do seu poder criador e de certo modo o prolongam.
Se um trabalho é feito por amor, será algo realizado com a maior perfeição de que somos capazes nessas circunstâncias e refletirá então as perfeições divinas, como o trabalho de Cristo. Muitas vezes as refletirá também externamente, porque o trabalho saiu bem e poderemos contemplar uma obra bem-feita que manifesta as perfeições de Deus. Mas também é possível que o trabalho saia mal – por circunstâncias alheias à nossa vontade – e que, no entanto, tenha sido bem feito aos olhos de Deus: porque se praticaram as virtudes cristãs, informadas pelo amor, e crescemos em identificação com Cristo ao realizá-lo. Assim, também podemos contemplar a Deus nos efeitos de nosso trabalho. Noutras palavras, pode acontecer que humanamente tenhamos fracassado num trabalho, mas que este tenha sido bem feito aos olhos de Deus, com retidão de intenção, com espírito de serviço, com a prática das virtudes: em uma palavra, com perfeição humana e cristã. Um trabalho assim é meio de contemplação.
O cristão que trabalha ou cumpre seus deveres por amor a Deus trabalha em união vital com Cristo. Suas obras se convertem em obras de Deus, em operatio Dei, e por isso mesmo são meio de contemplação. Mas não basta estar em graça de Deus e que as obras sejam moralmente boas. Elas deverão estar informadas por uma caridade heroica e ser realizadas com virtudes heroicas, e com aquele modo divino de agir que é conferido pelos dons do Espírito Santo àqueles dóceis à sua ação.
A contemplação na vida ordinária permite pregustar a união definitiva com Deus no Céu. Ao mesmo tempo, leva ao desempenho mais amoroso da tarefa, acende o desejo de vê-lO, não já por meio das atividades que realizamos, mas sim cara a cara.
Vivemos então como cativos, como prisioneiros. Enquanto realizamos com a maior perfeição possível, dentro de nossos erros e limitações, as tarefas próprias da nossa condição e do nosso ofício, a alma anseia por escapar-se. Vamos rumo a Deus, como o ferro atraído pela força do ímã. Começa-se a amar Jesus de forma mais eficaz, com um doce sobressalto86.
Um novo modo de andar na terra, um modo divino, sobrenatural, maravilhoso. Recordando tantos escritores castelhanos quinhentistas, talvez nos agrade saborear isto por nossa conta: vivo porque não vivo; é Cristo que vive em mim! (cf. Gal 2, 20)87
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