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Capítulo 14
Indo para casa
“A morte é algo lindo: significa ir para casa.”
– Madre Teresa
Na parede em Kalighat há um quadro com os dizeres: “O maior objetivo da vida humana é morrer em paz com Deus. Madre”. Durante muitos anos, essa foi a única das ideias da Madre na qual eu não acreditei totalmente. Ter paz de espírito e tranquilidade na hora da morte é um objetivo valioso, mas isso nunca me pareceu algo em torno do qual construir uma vida. E nem mesmo parecia ser o grande objetivo dela. Com frequência, ela falava na busca de santidade, em escolher o céu, em se tornar uma santa, como os mais altos chamados.
Levei anos para entender que a “paz” que ela descrevia não era um destino ou um estado de espírito, mas sim uma busca, uma forma de vida. Por fim, ela me ensinou que a melhor forma de morrer em paz com Deus era aprender como viver em paz com Ele, como indivíduo e como membro da família humana. Em outras palavras: Madre via a vida como uma longa preparação para o que seus pais pediram para ela em suas orações no batismo: vida eterna.
Pessoas de todas as religiões têm se debatido há milênios sobre como descrever “vida eterna”. Quando tinha nove anos, meu filho Joe levantou a questão. Voltávamos da missa de domingo e ele estava reclamando que tinha demorado muito. Mary refletiu: “No céu, não vamos passar apenas uma hora, passaremos a eternidade louvando e agradecendo a Deus”. Joe, mal-humorado no banco traseiro, disse: “Não é grande coisa pra se querer tanto”.
O Papa Bento XVI reconheceu esse dilema em sua encíclica de 2007, Spe Salvi “salvos pela esperança”. “Mas viver sempre, sem um termo”, observou, “acabaria por ser fastidioso e, em última análise, insuportável.” Em vez de “uma sucessão contínua de dias do calendário”, ele sugeriu que a eternidade seria “algo parecido com o instante repleto de satisfação, no qual a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade”. Ele comparou a “mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe”.
Não tenho certeza se mergulhar no “oceano do amor infinito” satisfaria Joe aos nove anos, mas se alinha perfeitamente com a concepção de Madre Teresa de vir e voltar para Deus. Amor era sua vocação. “Fomos criados por Deus para grandes coisas, para amar e ser amado”, ela dizia regularmente, tanto em discursos quanto em conversas. Ela sentia que amar e ser amado era mais importante do que demandas materiais da vida; mais importante do que comida, abrigo ou vestuário.
Para ela, o céu era uma realidade social, uma comunhão de pessoas em Deus. Muitas vezes falava sobre como ansiava ver a mãe, a irmã e o irmão no céu, para estar com eles pela eternidade. Ela rejeitava a ideia de que havia uma estrutura de classes no céu, onde a elite espiritual residia em uma esfera, separada do restante dos eleitos. “Uma coisa que tenho certeza é de que não há níveis assim no céu”, disse a Sandy McMurtrie certa vez, quando estavam viajando de carro. Madre via o céu como uma restauração da perfeita unidade de Deus e do homem, que havia sido estabelecida no momento da criação e que fora rompida pela queda de Adão e Eva. Esse era o lar que ela buscou a vida inteira.
Tal esfera de ser está além da concepção e comunicação de nossa mente finita. No entanto, Madre Teresa acreditava que “o reino de Deus” poderia ser experimentado, embora imperfeitamente, nesta vida pelos breves momentos de sublime maravilha que todos encontramos em algum ponto de nossa jornada. Me lembro de uma manhã em Washington, quando uma mãe trouxe seu bebê para Madre Teresa abençoar. Ela olhou nos olhos do bebê e acariciou sua cabecinha como se estivesse contemplando a face de Deus. Ali havia um “oceano do amor infinito”. Uma amostra do reino vindouro parecia inundar a Madre naquele momento.
O hino Abide with Me[1], de Henry Francis Lyte, capta a experiência da Madre desta vida e a expectativa da próxima (a primeira vez que eu o ouvi foi na missa do funeral da Madre, onde um coro de irmãs o cantou enquanto seu corpo era levado para fora da arena). As palavras do primeiro e do último versos retratam perfeitamente o anseio de seu coração:
Fica comigo; cai rapidamente o entardecer;
A escuridão se aprofunda; Senhor, permanece comigo.
Quando outros ajudantes falham e o conforto foge,
Socorro dos desamparados, oh, fica comigo.
Segura Tua cruz diante de meus olhos fechados;
Brilha na escuridão e me aponta para o céu.
A manhã do céu rompe e as sombras vãs da terra fogem;
Na vida, na morte, oh, Senhor, fica comigo.[2]
A escuridão e a melancolia cada vez mais profundas, a ausência de conforto e as sombras de sua própria mortalidade que se aproximavam não pareciam assustar ou preocupar a Madre nem um pouco. Ela esperou a morte como se espera uma entrega dos correios, mantendo um olhar atento, enquanto se consumia em suas atividades missionárias. Parecia estar pronta a deixar este mundo a qualquer momento. Havia muito tempo sua saúde era precária; durante os anos de nossa convivência, ela quase morreu praticamente uma dúzia de vezes de infartos, pneumonia e malária. Cada vez que nos despedíamos, me perguntava se a veria novamente. Em uma ocasião, em 1995, me despedi imaginando que poderia ser a última vez, e ela respondeu sem rodeios: “Estou de malas prontas”.
Embora a Madre estivesse de malas prontas, suas irmãs não iam deixá-la ir embora sem resistir. Em setembro de 1997, tinham estocado no convento uma vasta gama de medicamentos e equipamentos de emergência. Irmã Dominga, que se juntou ao grupo no início dos anos 1980 e tinha se tornado líder entre as Missionárias da Caridade, foi bem franca: “Se Deus quiser levar a Madre, é melhor Ele vir quando ela estiver sozinha”.
Isso não seria uma tarefa fácil. As irmãs cuidavam da Madre dia e noite. Ela sempre fora a doadora e a serva, sempre se sacrificara por elas. Mas, conforme seu corpo falhava e ela ficava a cada dia mais incapacitada, a Madre tornava-se mais dependente das irmãs. E essa inversão de papéis era uma oportunidade imperdível para elas retribuírem amor com amor.
Agora elas podiam pegar sua mão e beijá-la. Agora poderiam ajudá-la e se vestir de manhã e novamente à noite. Refeições eram trazidas ao seu quarto. Missas eram celebradas ao lado de sua cama quando sua saúde exigia. As irmãs a ajudavam a ir para a cama cedo e a encorajavam a não ser a primeira a chegar na capela pela manhã. Tinham um cuidado especial para administrar a grande quantidade de medicamentos e disputavam quem tinha permissão para empurrar sua cadeira de rodas. As irmãs se deleitavam em mimar a Madre.
Em suas últimas semanas, quatro irmãs estavam especialmente focadas nos cuidados da Madre. Irmã Gertrude era a mais velha entre as irmãs, desde a morte da Irmã Agnes, em abril de 1997. Nos primeiros anos de irmã Gertrude com as MCs, a Madre sugeriu que ela cursasse a faculdade de medicina para poder prestar assistência médica aos moribundos de Kalighat. Madre Teresa agora se tornara sua paciente. Naqueles últimos dias, Irmã Gertrude alternava os cuidados e acompanhamento da Madre com Irmã Shanti, também médica, e Irmã Luke, superiora de Kalighat havia muito tempo. E, ajudando e atendendo a todas as necessidades da Madre incansavelmente, estava Irmã Nirmala Maria. Ela tinha sido irmã em Loreto antes de seguir os passos da Madre, em 1989, e frequentemente viajava com ela durante seus últimos anos. Agora era responsável por conseguir que sua paciente relutante engolisse mais de uma dúzia de comprimidos por dia e administrar a terapia respiratória diária com o BiPAP. A batalha diária de vontades com relação ao BiPAP exigia desenvoltura. A Madre consentia, desde que durasse o tempo do rosário, e Irmã Nirmala Maria acrescentava “Ave-Marias” extras para prolongar as sessões.
Durante as últimas semanas de sua vida, em agosto e setembro de 1997, a Madre se deleitou na companhia de suas irmãs como nunca antes. Seu último jantar com as irmãs foi numa quarta-feira, 3 de setembro, dois dias antes de sua morte. Ela tentou renunciar ao seu lugar privilegiado à mesa, em deferência à sua sucessora, mas Irmã Nirmala não permitiu. Madre nunca seria apenas uma irmã comum. A noite contou com o pudim favorito da Madre, preparado especialmente para ela pelas MCs que viviam e trabalhavam em um orfanato a quase um quilômetro do convento. Ela recebeu uma porção generosa e gostou imensamente. A gulodice da Madre era eternamente jovem.
O pudim seria a última sobremesa que ela desfrutaria. Sua saúde piorou naquela noite. Por volta das 22 horas, passou muito mal, vomitando e passando a maior parte das seis horas seguintes no banheiro. Sua pressão arterial explodiu para 20/8. Suas dores nas costas, que ela chamava de “sua velha amiga”, voltaram com força total.
Às quatro horas da manhã, ela finalmente conseguiu dormir. Estava exausta demais para ir rezar na capela com as irmãs às seis horas, mas uma missa foi celebrada em seu quarto às onze. À tarde, na hora do chá que se seguia ao almoço e ao cochilo, as irmãs lhe trouxeram um pouco de alimento, que ela comeu, e, depois disso, Padre Mervyn Carapiet veio e ouviu o que seria sua última confissão. Qualquer penitência que possa ter dado à Madre, não poderia ser mais punitiva do que suas dores nas costas. Os analgésicos e as bolsas de água quente que as irmãs aplicavam em suas costas não eram páreo para o furor de sua “velha amiga”. Como tinha dormido muito pouco na noite anterior, a Madre terminou seu jantar leve e foi para a cama em seguida.
Os Evangelhos descrevem meticulosamente a paixão e morte de Cristo, assim como o Antigo Testamento relata os últimos atos e conversas de Moisés, Davi, Elias e outros profetas. Católicos têm honrado essa tradição e registrado em detalhes as mortes dos santos, incluindo suas últimas palavras e ações para dar testemunho de sua santidade e encorajar os fiéis.
O dia 5 de setembro de 1997 caiu no que as MCs comemoram como “primeira sexta-feira”. Desde o fim do século XVII, a Igreja Católica promove uma devoção especial ao Sagrado Coração de Jesus na primeira sexta-feira de cada mês, acompanhada por práticas penitenciais, para celebrar Seu amor e Sua misericórdia infinitos e reparar o pecado. Para as Missionárias da Caridade, isso significa uma hora de vigília especial de orações na capela até a meia-noite de quinta-feira, além de jejum no almoço do dia seguinte.
Madre Teresa acordou naquela primeira sexta-feira esperando seguir as práticas disciplinares da comunidade religiosa que construiu. Mas suas costas continuavam a atormentá-la e não pôde participar das orações matinais. Enquanto Irmã Nirmala Maria a ajudava a se vestir para a missa, deu-lhe alguns analgésicos para aliviar seu sofrimento, de modo que pudesse ir à capela com as outras irmãs. No fim da missa, Irmã Luke a levou para encontrar um casal de Bombaim que havia dias tentava uma visita particular e uma foto com a Madre. Madre tinha o costume de cumprimentar qualquer visitante que pedisse para vê-la, embora nunca tenha gostado de ser fotografada e declarava que, cada vez que uma foto dela era tirada, uma alma era liberada do purgatório. Ninguém pode saber quantas almas escaparam para o céu graças à paciência da Madre.
Madre voltou para seu quarto para um café da manhã com chá, pão e uma banana. Imediatamente depois teve sua primeira sessão de BiPAP do dia, com a duração exata de um rosário. Então se pôs a trabalhar. Primeiro, convocou uma reunião especial do concelho MC, o grupo governante de cinco irmãs eleitas por seus pares, às nove horas. Depois dessa reunião de uma hora, foi para sua escrivaninha e começou a assinar formulários autorizando mulheres a fazerem seus votos temporários e finais como MCs. Também assinou toda a correspondência preparada por Irmã Joel, sua secretária, que trabalhava próxima a ela há quinze anos. A correspondência tinha se acumulado porque durante muitos dias a Madre não conseguiu trabalhar na mesa. Ela insistiu em assinar pessoalmente suas próprias cartas e agradecimentos por doações, assim como sempre fizera. Se empenhou na tarefa e depois, como uma colegial orgulhosa após completar uma missão, levou a caixa de correspondências assinadas de seu quarto até a mesa de Irmã Joel, no escritório principal.
Ver Madre Teresa de volta às suas velhas rotinas após um dia tão terrível surpreendeu e animou as irmãs. Irmã Nirmala Maria então levou para a Madre uma bebida medicinal para rins, coração e pulmões.
Era por volta de treze horas quando a Madre foi para a capela para a oração do meio-dia. Ao final, ouviu os passos de um menininho correndo pelo corredor externo à capela e alegremente disse à Irmã Nirmala Maria: “Acho que tem alguém esperando por mim lá fora”. O garoto era um menino de quatro anos, cuja avó trouxera uma amiga com a filha para ver a Madre. Tiveram um encontro improvisado no mesmo lugar onde conheci a Madre. A filha, que estava deprimida e tinha considerado o suicídio, fora com a mãe pedir à Madre que orasse por ela, para que conseguisse superar o distúrbio mental. Alegremente, a Madre concordou. Esses seriam os últimos visitantes a receber a característica bênção de mãos sobre a cabeça feita pela Madre.
Normalmente, a Madre teria ido almoçar, mas, por causa do jejum da primeira sexta-feira, não quis comer. Passara a vida seguindo meticulosamente a agenda e as regras de sua congregação religiosa e não estava disposta a se desviar delas. Conhecia o poder de liderar pelo exemplo, então, quando se tratava de jejuar ou não, insistia em não ser dispensada dos sacrifícios que as outras irmãs faziam. Quando as irmãs tentaram empurrar sua cadeira de rodas para dentro do refeitório onde o almoço a esperava, ela segurou nos batedores da porta para evitar a própria passagem. Por fim, Irmã Nirmala chegou e lembrou à Madre de sua própria política de longa data no convento: que todas as irmãs enfermas tinham que almoçar nas primeiras sextas-feiras. Foi só então que a Madre concordou. Essa pode ter sido uma batalha que perdeu alegremente; estava com fome após ter comido tão pouco no dia anterior. Comeu arroz e salada dos pratos trazidos à sua mesa e depois se retirou para seu cochilo da tarde.
Quando acordou, as dores nas costas estavam insuportáveis novamente. Tomou o chá na cama, apoiada em um cotovelo. Em seguida, se levantou e sentou-se à mesa para fazer sua leitura espiritual, como ditava a agenda diária das MCs. O céu escureceu lá fora e uma tempestade logo começou. Irmã Nirmala Maria fechou a janela e acendeu a luz para que a Madre continuasse a leitura. Ela também pediu à Madre que voltasse para a cama, pois ficar sentada era ruim para suas costas, mas a Madre resistiu. Foi preciso um gentil encorajamento de Irmã Nirmala para fazê-la obedecer. Seguiu-se outra sessão de BiPAP e de um rosário com Irmã Nirmala Maria.
Madre Teresa se submeteu ao odiado tratamento e depois se levantou da cama como se estivesse numa missão, dizendo que precisava terminar toda a correspondência que Irmã Joel havia preparado. Seu humor estava melhor e riu quando Irmã Nirmala Maria brincou que ela estava mais ocupada agora do que quando era superiora-geral. Nada deteria a Madre de limpar sua mesa naquela sexta-feira. Assinou notas de agradecimento a doadores até por volta das 16h30.
Com o trabalho finalizado, ela voltou para o quarto. Irmão Geoff, o líder dos Irmãos Missionários da Caridade, tinha vindo se despedir dela antes de partir para uma viagem a Cingapura. As irmãs que cuidavam da Madre achavam que tais visitas esgotavam suas energias, mas, como Irmão Geoff era parte da família, sabiam que tinham que ceder. Ele se encontrou com ela no quarto e partiu com um presente que ainda preza. Madre lhe deu uma imagem emoldurada do Sagrado Coração de Jesus que ela própria frequentemente venerava durante as sessões de BiPAP.
No entanto, durante o encontro, as dores nas costas da Madre pioraram. Os analgésicos não estavam fornecendo alívio. Irmã Nirmala Maria compartilhou sua preocupação com Irmã Shanti, que aprovou dar-lhe Lodine – um anti-inflamatório mais forte –, receitado por um médico quando a Madre estava em Nova York, três meses antes.
Pouco depois das dezessete horas, Madre Teresa foi levada na cadeira de rodas até a entrada do quarto para que pudesse acenar para a atriz de Bollywood, Shashikala, que estava de pé na varanda da capela na esperança de ter um vislumbre da futura santa. Mas sentar tinha se tornado tão doloroso que ela foi obrigada a voltar imediatamente para a cama. Irmã Shanti fez a Madre se deitar de lado, enquanto massageava suas costas, pressionando-a através de um travesseiro, de modo a não ferir a coluna frágil da freira ou seus ossos quebradiços. A Madre a exortou a esfregar mais agressivamente. “Pressione com força neste ponto”, orientou, e Irmã Shanti obedeceu. “Muito bom”, Madre respondeu. Enquanto administrava a massagem, Irmã Shanti rezava o rosário com a Madre, que muitas vezes não conseguia responder às orações, tão grande era sua dor.
Irmã Gertrude tinha passado a maior parte do dia fora e retornou por volta daquela hora. Madre lhe disse em um tom de seriedade fingida: “Você me abandonou!”. Irmã Gertrude explicou que estava em Prem Dan, uma das missões das MCs. Então a Madre falou: “Minha velha amiga voltou”, referindo-se às suas dores nas costas. Mas a Madre também parecia desorientada. Por três vezes disse à Irmã Gertrude: “Anda, vamos para casa”. Irmã Gertrude gentilmente a corrigiu: “Mas, Madre, estamos em casa”.
Ao longo dessa enfermidade, assim como em todas que a precederam, Madre Teresa tentou oferecer sua dor a Deus. Ela rezava enquanto sofria e tinha imagens acima de sua cama para ajudá-la a manter o foco: uma de Maria, mãe de Jesus; uma foto de Santa Teresa de Lisieux com a citação “Minha vocação é amar”; a imagem do Sagrado Coração; e uma pequena coroa de espinhos com uma cruz no meio. Nessa última noite de sua vida, tinha muita dor a oferecer. O Lodine não estava fazendo o efeito esperado, e as dores da Madre continuavam insuportáveis. Irmã Gertrude a viu beijar uma imagem de Jesus coroado com espinhos, que sempre interpretou como a Madre se identificando com Sua agonia e dor. Madre passou parte do fim da tarde ouvindo Irmã Gertrude ler um livro que estava em sua cabeceira: Only Jesus[3], de Luis Martínez, o primeiro arcebispo da Cidade do México.
Dezoito horas era o horário de a comunidade MC se reunir na capela para a eucaristia. Embora a Madre quisesse ir, as irmãs insistiram que ficasse na cama e não agravasse ainda mais suas costas. Ela orou um rosário com Irmã Nirmala Maria e depois falou ao telefone com sua amiga Sunita Kumar. Sunita havia ligado para pedir orações pelo filho, Arjun, que tinha sido diagnosticado com hepatite C. Durante a conversa, a Madre não mencionou que estava se sentindo mal. No fim da hora santa na capela, Irmã Nirmala trouxe a píxide contendo o Santíssimo Sacramento para a Madre, que o beijou com reverência e ternura, como se fosse uma última despedida. Então a Madre comeu um sanduíche no jantar em seu quarto e se preparou para voltar para a cama.
A tempestade só tinha piorado. O céu estava escuro como breu, e o vento uivava enquanto a Madre vestia sua camisola e passava talco, como era seu costume durante os meses mais úmidos. A temperatura no quarto caíra conforme a tempestade se aproximara, e ela ficou com frio. “Me cubra com o cobertor que você trouxe de Roma”, pediu à Irmã Gertrude. O cobertor de lã tinha valor sentimental para ambas. Irmã Gertrude o tinha dado à Madre em Taizé, França, em 1976, durante um encontro inter-religioso onde milhares de jovens tinham rezado pela paz. Há muito era um dos favoritos da Madre, mas ela o tinha deixado na casa MC em Roma. Apenas recentemente, Irmã Gertrude o trouxera de volta para ela, em Calcutá.
Uma violenta tempestade agora castigava a cidade. Tempestades elétricas atingiram Calcutá com surpreendente ferocidade. Fiquei assustado na primeira vez que vivenciei uma, mesmo tendo crescido com os furacões e tempestades diárias da Flórida. Em Calcutá, os raios chegam numa rápida sucessão e são ofuscantes. Os estrondos dos trovões ricocheteiam nos prédios de concreto e nas ruas, fazendo com que uma tempestade elétrica de fim de verão soe como o ataque a Londres[4].
A tempestade anunciava o início do fim para a Madre. Subitamente, ela não conseguia mais respirar. Enquanto estava sentada na beira da cama, ofegante, Irmã Gertrude verificou seus sinais vitais, ficando cada vez mais preocupada com seus pulmões. “Madre está sufocando na própria secreção”, disse calmamente às outras irmãs. Todas correram para pegar os equipamentos de emergência que tinham guardado para esse momento, na esperança de dar assistência mecânica aos pulmões e ao coração da Madre.
No exato momento em que esse equipamento poderia ter feito a diferença, um magnífico raio atingiu a vizinhança e desencadeou uma queda de energia sem precedentes na sede. Não foi uma queda de energia comum. Eram comuns as quedas de luz no convento em Calcutá, mas, naquela noite, não apenas o sistema de energia principal parou de funcionar como também o de reserva, do qual as irmãs dependiam para emergências.
Era por volta de 20h30 e o convento estava às escuras. As irmãs foram buscar velas, mas precisavam ser cuidadosas próximo ao cilindro de oxigênio da Madre, que lhe fornecia um cateter nasal quase inútil. Irmã Shanti mandou alguém chamar dr. Woodward, que tinha vindo ao convento em muitas ocasiões anteriores atender à Madre em casos extremos. Ele e a esposa, uma enfermeira, largaram tudo e foram correndo.
Irmã Joel também correu até o escritório e ligou para a paróquia mais próxima, a Saint Mary – onde o trabalho original de Madre Teresa com os pobres havia começado –, para pedir a um padre que viesse imediatamente administrar os últimos sacramentos. Padre Hansel D’Souza estava sentado próximo ao telefone, esperando a ligação de um amigo, quando Irmã Joel ligou. Estava a apenas alguns minutos do convento e, na mesma hora, foi para lá.
Enquanto isso, as irmãs faziam o possível para cuidar de sua mãe inquieta e à beira da morte. O oxímetro era operado por bateria, mas os números que mostrava à Irmã Nirmala Maria confirmavam que a situação da Madre era dramática. Em seu voo recente de Calcutá para Roma, a leitura de 85 havia causado alarme; agora estava abaixo de 50. Sua pulsação, normalmente em torno de 90, estava terrivelmente irregular, apontando 55, então 130, depois 200. Madre Teresa estava sentada à beira da cama, os olhos esbugalhados por sua luta em busca de ar.
Era evidente para todas que a vida de Madre Teresa estava se esvaindo, seu coração e pulmões estavam falhando. Irmã Luke se esforçava para separar os medicamentos de emergência com sua pequena lanterna. O aparelho BiPAP, que poderia tê-la ajudado a respirar e possivelmente prolongado sua vida, estava próximo, mas era inútil sem eletricidade.
Madre proferiu suas últimas palavras audíveis por volta das 20h45: “Não consigo respirar”. Algo tão natural e normal a ser dito sob tais circunstâncias. Lá fora, a tempestade rugia inabalável, ainda assim, uma calma relativa desceu sobre a Madre. Estava cercada por suas amadas irmãs. Elas fizeram tudo o que podiam para deixá-la mais confortável, garantindo que um padre e o dr. Woodward estivessem a caminho. Enquanto esperavam juntas à luz de velas, derramavam seu amor em lágrimas e orações ansiosas.
Padre D’Souza foi o primeiro a chegar e imediatamente ministrou os últimos sacramentos à Madre, ungindo-a com os óleos sacramentais reservados para uma ocasião como aquela. Ela esteve consciente o tempo todo. Dr. Woodward chegou logo após a unção e começou seus preparativos para administrar medicamentos e intubá-la no quarto escuro e cheio. As irmãs se aglomeravam na cama da Madre, recitando orações que ela as tinha ensinado: “Sagrado Coração de Jesus, confio em ti” e “Maria, mãe de Jesus, seja mãe para a Madre agora”. Segundo Irmã Gertrude, que segurava a cabeça da Madre no colo, os lábios dela pareciam se mover com essas orações; seus lábios também pareciam repetir “Jesus” o tempo todo. Sua voz não era audível porque seus pulmões não estavam mais funcionando.
Foram apenas cinco a dez minutos na escuridão, mas pareceram intermináveis. Quando as luzes voltaram, o quarto lotado se tornou caótico, pois todos corriam para ajudar. As irmãs aplicaram na Madre uma injeção de Deriphyllin para ajudá-la a respirar e outra de Lasix, para tratar do acúmulo de líquido nos pulmões, parte dos procedimentos de emergência que já estavam em andamento. Então a energia caiu novamente, dessa vez por dois minutos, exasperando as irmãs aflitas. Elas não podiam depender de nenhuma de suas intervenções médicas. A natureza seguiria seu curso, desimpedida.
A cabeça da Madre ainda descansava no colo de Irmã Gertrude enquanto as irmãs continuavam suas orações e exaltações a Deus. Às 20h57, Madre Teresa olhou para o lado, depois para cima e então fechou os olhos. Nunca mais os abriu. Tinha encomendado sua alma Àquele que a tinha criado e soprado vida em seus 87 anos. Tinha falecido em sua própria cama, cercada por suas irmãs, do jeito que queria.
Dr. Woodward fez o que os médicos são treinados a fazer em momentos como esse: tentou ressuscitar a Madre. A entubou, administrou uma injeção emergencial em sua artéria femoral e executou uma massagem cardíaca. O oxímetro ao qual ela estava conectada registrou uma batida de coração, o que deu um breve lampejo de esperança às irmãs no quarto. Mas a batida detectada era do marca-passo implantado anos antes. Logo dr. Woodward percebeu que dessa vez não haveria reanimação. A Madre já tinha ido para casa, para Deus. Ela estava na casa do Pai, segura, em paz, triunfante, livre.
Às 21h30, dr. Woodward disse à Irmã Nirmala: “Madre foi para Jesus”. Ele a retirou das máquinas e declarou o óbito.
Madre esteve à beira da morte muitas vezes antes – mais tarde, dr. Woodward estimou umas dez ou doze vezes – e sempre se recuperou. O trovão que ouviram estourando por Calcutá agora seria lembrado como toques de trombetas celestiais anunciando a chegada de uma serva fiel. O céu já tinha esperado o suficiente.
Irmã Nirmala deu a notícia da morte da Madre às 250 noviças reunidas em oração na capela, em frente ao quarto da Madre. Um grito alto se levantou espontaneamente entre elas. Irmã Immacula, uma freira que estava com as noviças, disse que foi um lamento que teria abalado o coração mais duro. A combinação das bizarras quedas de energia com a confirmação de seus piores temores foi sufocante para as filhas espirituais da Madre.
E, no entanto, Irmã Nirmala disse que era impossível não pensar na Madre perante o trono de Deus e ouvir as palavras de Jesus que ela citara em incontáveis ocasiões durante sua vida: Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo, porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim. Perguntar-lhe-ão os justos: “Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos peregrino e te acolhemos, nu e te vestimos? Quando foi que te vimos enfermo ou na prisão e te fomos visitar?”. Responderá o Rei: “Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes”.
1. Em tradução livre, Fica comigo. (N.T.) [ «« ]
2. Tradução livre da letra do hino. (N.T.) [ «« ]
3. Em tradução livre, Apenas Jesus. (N.T.) [ «« ]
4. Aqui o autor se refere aos ataques a Londres na Segunda Guerra Mundial. (N.T.) [ «« ]
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