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Capítulo 2
Conhecendo a Madre
“Aceite tudo o que Ele dá, e dê tudo o que Ele toma, com um grande sorriso.”
– Madre Teresa
Minha segunda manhã em Calcutá começou às cinco horas, mas estava acordado havia mais tempo. Me mexi na cama a noite toda, no quarto de hotel quente e úmido, oprimido pela cidade e nervoso com meu compromisso. Ia me encontrar com Madre Teresa, a única razão de ter ido a Calcutá.
Já estava suando quando cheguei ao saguão, onde o motorista do consulado me esperava o para me levar à missa das seis da manhã na sede das Missionárias da Caridade, o convento da congregação religiosa. Meu compromisso estava marcado para imediatamente após a missa. O complexo limpo e organizado era um alívio em relação à sujeira e ao caos da cidade. A capela era no segundo andar e estava lotada com centenas de freiras vestidas com idênticos saris brancos com listras azuis. Olhei a multidão à procura de Madre Teresa, mas era impossível dizer qual cabecinha coberta era a dela. Encontrei um lugar com os voluntários e turistas no canto direito da capela e me sentei junto à parede dos fundos, esticando o pescoço para assistir à missa.
As janelas da capela, com vista para a Lower Circular Road, estavam abertas, mas ofereciam pouco alívio para o calor e a umidade. No entanto, deixavam entrar ondas de fumaça de escapamento, os guinchos dos bondes e os gritos dos melros próximos ao prédio. Mas essa cacofonia não conseguiu diminuir a beleza das irmãs cantando seus louvores a Deus quando a missa começou. Ali estava um verdadeiro “coro de anjos”.
As leituras bíblicas das missas católicas não são escolhidas localmente. São tiradas do Lecionário, uma extensa coletânea de passagens bíblicas selecionadas há muito tempo pelo Vaticano. As seleções seguem uma ordem, sem exceção, ano após ano, por todo o mundo. As missas dos dias de semana incluem uma leitura de um dos quatro Evangelhos, precedida por um trecho do Antigo ou do Novo Testamento. Essa missa era da “Terça-feira da 20.ª semana do Tempo Comum, Ano Um”, que acontece a cada dois anos no meio de agosto.
Me perguntava, enquanto me preparava naquela manhã, se uma das leituras do dia poderia ter uma mensagem secreta de Deus para mim, já que tinha vindo de tão longe em busca de iluminação. Não fiquei desapontado. A passagem do Evangelho e o sermão que se seguiu pareciam estar direcionados a mim. A leitura era de Mateus 19 e começava com as palavras de Jesus. Em verdade vos declaro: é difícil para um rico entrar no Reino dos céus! Eu vos repito: é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus.
Eu já tinha ouvido essa passagem muitas vezes antes, mas nunca em uma cidade onde a distância entre os ricos e os pobres era tão dramática e tão óbvia. Olhei pela capela para as mulheres que tinham, voluntariamente, feito um voto de pobreza e me senti envergonhado. Materialmente, o contraste da minha vida de conforto e facilidades com a vida simples e desimpedida delas não poderia ser mais claro. Espiritualmente também, eu era o homem rico do Evangelho: estava focado em conquistas mundanas e coisas materiais. Estava longe do paraíso, e as humildes freiras tornavam impossível ignorar aquilo.
O padre falou que existem dois tipos de pessoas no mundo: as que colhem e as que dão. E cada homem deve decidir qual ele será. As freiras ao meu redor tinham feito sua escolha. Mas que escolha eu tinha feito? Praticamente todas as minhas atividades eram dedicadas ao meu progresso profissional e social – além das dedicadas ao meu próprio prazer, é claro. Fora do trabalho, passava a maior parte do tempo vendo televisão ou indo ao cinema e a eventos esportivos. Olhei pela capela e vi pessoas da minha idade, de todos os lugares do mundo, que tinham vindo para a Índia para servir os outros nas mais difíceis condições. E ali estava eu, sentado entre elas como um espectador. Eu era o coletor encarnado. A homilia do padre e o exemplo silencioso das freiras também me forçaram a confrontar o quão egoísta era a minha viagem; graças a mim, Madre Teresa estava prestes a se tornar uma história particularmente boa para impressionar os funcionários do Capitólio no happy hour.
A vergonha dessa constatação, por si só, teria sido suficiente para transformar um homem humilde. Eu estava envergonhado, mas igualmente inflexível. Eu podia não ser um servo altruísta como os outros na capela, pensei, mas tinha muita companhia lá fora, no mundo real. Se não estava fazendo muito trabalho prático pelos outros, também não estava prejudicando ninguém. O padre demandou uma escolha, mas eu tinha certeza de que podia ser um coletor e um doador.
Logo após a homilia, tive meu primeiro vislumbre de Madre Teresa enquanto ela andava para receber a Santa Comunhão e distribuí-la às suas irmãs. Foi apenas por um momento, então a congregação ficou de pé e ela se perdeu novamente no mar de saris brancos. As irmãs saíram correndo da capela. Elas e os outros voluntários foram fazer seu trabalho nas casas das Missionárias da Caridade: cuidando de crianças no orfanato Shishu Bhavan, atendendo os moribundos em Kalighat, ou dando banho e alimentando os deficientes ou doentes mentais em Prem Dan. Aqueles doadores estavam vivos com propósito; tinham um lugar para estar.
Este turista, por outro lado, não tinha pressa. Eu tinha vindo a Calcutá para colher e não para dar, e parecia que as freiras estavam fazendo um bom trabalho sem mim. E logo estava sozinho na capela. Tinha visto Madre Teresa novamente quando saíra com os outros, mas não sabia para onde ela tinha ido e tinha a impressão de que teria que caçá-la. Mas, em instantes, ela retornou à capela para suas meditações diárias sobre a paixão de Cristo, representada nas catorze imagens – o que os católicos chamam de Via Sacra – que estavam uniformemente dispostas na parede da capela. Permaneci no meu banco, no canto, enquanto ela seguia de uma imagem para a seguinte, lentamente se movendo em minha direção, segurando firme seu pequeno livro de orações, recitando de modo inaudível as orações apropriadas para cada imagem. Eu estava sentado abaixo da última. Finalmente ela chegou ao final e se postou bem à minha frente, apenas a alguns metros de distância. Não tirou os olhos da imagem acima da minha cabeça. Parecia perdida na oração, sozinha com Deus.
Quando terminou essa última meditação, se encaminhou para a frente da capela para se ajoelhar perante a imagem de Maria, mãe de Jesus. Então saiu. Cuidadosamente, a segui e a vi desaparecer atrás da cortina branca translúcida, que separava os aposentos particulares das freiras da parte pública do convento. Encontrei uma irmã próxima, apresentei minha carta de recomendação do Senador Hartfield e mostrei a ela o quão importante era e por que merecia uma audiência com Madre Teresa. Polidamente, ela me pediu que me sentasse em um banco e foi para trás da cortina.
Minutos depois, Madre Teresa apareceu. Irrompeu na área onde eu estava sentado com a energia de uma garotinha. Chegou tão rapidamente e se sentou ao meu lado que nem tive a chance de me levantar para cumprimentá-la adequadamente. Ali estava eu, sentado ao lado de uma santa viva! Era muito pequena – nem um metro e meio de altura –, mas tinha mãos grandes e macias, que envolveram as minhas quando me recebeu. Eram como almofadas. Seu inglês com sotaque era perfeitamente claro. Seus olhos castanhos se fixaram nos meus.
Em um instante percebi que ela era tudo o que eu não era: focada, determinada, alegre. Eu estava impressionado pelo quão cheia de vida ela parecia. Naquela semana, tinha completado 75 anos, ainda assim, era jovem e vigorosa. Perguntou pelo Senador Hartfield e me agradeceu por sua carta. Também me perguntou se eu conhecia suas irmãs Missionárias da Caridade em Washington. Confessei que não conhecia, e ela me pediu que lhes transmitisse suas saudações quando eu retornasse para casa.
Então veio a fatídica pergunta: “Já esteve na Casa para os Moribundos, em Kalighat?”. Expliquei que havia chegado apenas no dia anterior, embora um simples não teria sido suficiente. “Vá lá”, falou, “e pergunte pela Irmã Luke”. Eu disse que ficaria feliz em ir a Kalighat. Tinha o restante do dia para gastar e imaginava que a visita poderia levar ao tipo de experiência maravilhosa que Malcolm Muggeridge havia descrito em seu livro. E, mesmo que não, sem dúvida seria uma boa história para contar aos colegas na volta para casa.
Isso concluiu nossa breve conversa – durou apenas alguns minutos. Ela se levantou e, no estilo indiano, juntou as mãos em frente ao rosto para se despedir. Se virou e foi embora.

Desde cedo, Agnes Gonxha sonhava com uma vida de missionária. Sabia que seria uma vida de dificuldades e austeridade. Mas não queria uma vida fácil, e suas primeiras experiências como freira não a desapontaram. Em 1931, a recém-professada Irmã Teresa foi enviada para o bairro Entally, em Calcutá, para o complexo murado de Loreto, onde cerca de setecentas meninas indianas viviam e estudavam. A maioria das meninas frequentava as aulas em inglês na escola principal; na Saint Mary, uma escola separada ainda dentro do complexo, as aulas eram ministradas em bengali. Irmã Teresa ensinava história e geografia na Saint Mary e, durante um período, e a seu pedido, foi designada para dar aulas na escola paroquial local, a Saint Teresa, uma experiência que a introduziu à miséria nos arredores do complexo.
Em maio de 1937, Irmã Teresa professou seus votos finais como freira e recebeu o nome de “Madre Teresa”, seguindo o costume de Loreto na época. Continuou a lecionar na Saint Mary, mas começou a levar pequenos grupos de alunas para cuidar dos pobres que sofriam nas favelas espalhadas pelos arredores da propriedade do convento. “Todos os domingos, visito os pobres nas favelas de Calcutá”, escreveu a um amigo de sua terra natal. “Não posso ajudá-los, porque não tenho nada, mas vou para dar a eles um pouco de alegria [...]. Por isso, não me admiro que meus pobres pequeninos [seus alunos] amem tanto a escola.” Em uma casa, doze famílias viviam juntas, cada uma em um pequeno cômodo. Após visitar casas assim, ela não se surpreendia mais com tantas crianças sofrendo de tuberculose. Seu coração se partiu ao ver crianças que precisavam de muito mais do que uma professora de geografia.
Não muito longe de Entally, o conflito estava se formando. Outra guerra mundial começava e as tensões estavam altas após o Japão ter invadido a China. O Raj Britânico estava sob crescente pressão de Mahatma Gandhi e de outros movimentos nacionalistas que demandavam a independência indiana. Sua causa só ganhou força quando, em 1939, o Reino Unido declarou guerra em nome da Índia. A declaração fomentou ainda mais a agitação doméstica.
À medida que as forças imperiais japonesas avançavam em direção à Península Malaia, em 1942, a Índia, e em particular Bengali, a província da qual Calcutá era a capital, ficou sob crescente ameaça. Até o complexo de Loreto estava em pé de guerra. A maioria das freiras fora realocada para locais mais seguros na Índia, ou enviada de volta à neutra Irlanda. Madre Teresa foi uma das duas que ficaram com as alunas que não puderam ser evacuadas. A escola Saint Mary tinha sido requisitada como hospital militar, e ela alugou espaços em dois lugares para as aulas e abrigo. A carga de trabalho era implacável. Ela estava cuidando de trezentas alunas durante uma guerra e isso quase acabou com sua saúde. Recebeu ordens para tirar horas de descanso diário ao meio-dia, mas, ainda assim, lecionava em sete turmas, acalmava os temores de centenas de garotas e cuidava de suas refeições.
Esta última pode ter sido sua maior façanha. Em 1943, a fome em Bengali ceifou a vida de pelo menos dois milhões de pessoas e deslocou incontáveis outras. A província enfrentou uma enorme crise humanitária. Invasores do campo inundaram a cidade, procuraram por comida e lutaram, não contra os japoneses, mas contra a fome. Madre Teresa e suas alunas muito pouco podiam fazer para mitigar o sofrimento das massas famintas que fluíam para as favelas, enquanto lutavam para sobreviver.
Quando a guerra terminou, em 1945, os indianos exigiram o fim do domínio colonial; contudo, o que os principais grupos étnicos pensavam sobre como a Índia deveria ser após a independência era muito diferente. Alguns, como Gandhi, queriam uma Índia independente que se mantivesse unida e fornecesse garantias que protegessem os direitos das minorias religiosas. Outros queriam criar um estado muçulmano independente. Em 16 de agosto de 1946, pouco mais de um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial, a inimizade latente entre muçulmanos e hindus explodiu em derramamento de sangue em Calcutá, quando uma reunião de muçulmanos em busca de sua própria pátria ficou terrivelmente fora de controle. Isso ficaria conhecido como “O Dia da Grande Matança” e, anos mais tarde, Madre Teresa mal conseguia falar do assunto. Facções de muçulmanos entraram em fúria, emboscando e matando hindus indiscriminadamente. Hindus retaliaram no dia seguinte com semelhante selvageria. Calcutá foi tomada por atos recíprocos de limpeza étnica.
Madre Teresa e suas centenas de alunas se amontoaram atrás dos muros do convento de Loreto enquanto os tumultos aconteciam. Nessa época, ela havia se tornado a diretora da escola Saint Mary e era madre superiora da congregação bengali afiliada a Loreto, as Filhas de Santa Ana. Como não tinham comida, Madre Teresa corajosamente se aventurou a sair, correndo grande risco pessoal, para obter sacos de arroz em uma unidade militar que patrulhava a vizinhança. “Não devíamos sair às ruas”, ela lembrou, “mas fui mesmo assim. Foi quando vi os corpos na rua, esfaqueados, espancados, deitados ali sobre seu sangue seco.” Os soldados britânicos ficaram assustados ao ver essa pequena mulher andando em sua direção, em meio a todo aquele caos. Ela era realmente destemida em sua vocação.

Naquela tarde, meu motorista me pegou no hotel e atravessou a cidade para me levar até Kalighat. A estrada até a entrada do bairro estava tão cheia de comerciantes de rua e pedestres, que o carro mal conseguia passar. E só conseguiu graças a uma incessante buzina, que advertia e ameaçava os transeuntes.
Chegamos à Casa para os Moribundos, que ficava em um canto de um grande templo dedicado à deusa hindu Kali, e precisei abrir caminho através de uma multidão de mendigos e guias turísticos, todos querendo dinheiro. Entrei e perguntei pela irmã Luke. Em alguns instantes, ela apareceu. Era maior do que a Madre, usava óculos de aro de tartaruga pretos e não sorria. Comecei a contar com orgulho meu encontro particular daquela manhã com Madre Teresa (eu já estava usando o nome dela!) e como ela havia me mandado vir conhecer Kalighat. A irmã Luke ouviu e então disse: “Bom! Aqui está um pouco de gaze e benzoato de benzila. Vá até a cama 46 e limpe o homem que está lá. Ele tem sarna”.
“Cama 46?”, falei, como que buscando algum esclarecimento. Não tinha vindo a Kalighat como voluntário! Tinha vindo para uma visita! Estava usando camisa branca engomada, de mangas compridas, que havia enrolado até os cotovelos, calça comprida e sapatos sociais – um pouco bem vestido demais, uma vez que as irmãs estavam descalças e os voluntários usavam shorts e chinelos. Tinha vislumbrado a irmã Luke me cumprimentando e me levando para conhecer o lugar, após o que eu lhe daria algum dinheiro e iria embora. Jamais teria vindo a Kalighat se soubesse que seria pressionado a servir. Pior, como tinha acabado de chegar, não poderia dizer a ela que tinha outro compromisso. Tentei, freneticamente, pensar em uma maneira de escapar da situação, mas não encontrei nenhuma forma plausível ou educada para declinar do convite para ajudar. Peguei as coisas e segui meu caminho. Estava preso ao sr. Sarna da cama 46.
A verdade é que eu era orgulhoso demais para admitir para irmã Luke que não queria tocar em ninguém naquele lugar miserável. O que diria quando voltasse aos Estados Unidos e minha mãe perguntasse o que eu lhe trouxera? Sarna? Não havia qualquer parte de mim que quisesse ir até a cama 46 e limpar um homem moribundo. Só fui por causa do meu enorme orgulho. Atravessei o salão quase em transe, descendo pela passagem estreita entre fileiras de catres, até o fim da ala masculina, onde ficava a cama 46.
O que encontrei foi um homem imóvel sob um cobertor, com bochechas afundadas e pálpebras ligeiramente rachadas. Parecia morto. Comecei a me sentar no catre – e me sentei em cima de sua perna! Ele suspirou. Não tinha visto sua perna; era tão fina que ficava imperceptível debaixo do cobertor. Ele fez uma careta, mas estava fraco demais para reclamar. Rapidamente me reposicionei e fiquei ali sentado. Não tinha ideia do que fazer. Após alguns minutos, um homem passou, um dos voluntários. Disse a ele: “Irmã Luke me mandou limpar este homem. Ela falou que ele tem sarna”.
O homem respondeu com um distinto sotaque irlandês. “Isso mesmo, ele tem.”
“O que são sarnas?”, perguntei.
“Elas se enterram na pele e coçam. Você vai ver onde estão – placas vermelhas na pele.” Ele estava ansioso para se afastar, já que estava cuidando de outro paciente.
Insisti com mais uma pergunta. “Sabe onde estão as sarnas dele?”
“Estão no entorno do ânus”, respondeu com naturalidade.
O dia estava ficando cada vez melhor! O fiapo de homem na cama 46 cooperou quando o virei de lado. Estremeceu enquanto eu aplicava o medicamento em sua irritação. Olhava para a frente, resignado com o cuidado de um total estranho empoleirado ao lado de sua cama.
Quando terminei, o posicionei de volta a como o havia encontrado. Ele não fez contato visual comigo. Eu lhe dei um gole de água de uma caneca que estava no chão ao lado da cama. Enquanto estava do seu lado, percebi quanto esforço fazia para respirar. A morte parecia estar sobre ele. Os homens ao redor não estavam em melhores condições. Aquele ambiente cheio de sofrimento me parecia horrível, mas, é claro, era totalmente esperado de uma casa para moribundos. Vi um homem em um canto mais distante com um dos pés horrivelmente aumentado, uma doença que, um voluntário me explicou mais tarde, se chamava filariose, frequentemente chamada de elefantíase. A visão era tão grotesca que parei de olhar ao redor. Comecei a me concentrar em minha estratégia de saída, embora estivesse ali havia meros quinze minutos.
Mas a irmã Luke não tinha acabado comigo ainda. Fui convocado, da cama 46, a limpar outros três homens e depois a alimentar mais alguns, incluindo um cujos olhos estavam fechados de tão inchados e outro que percebeu a diferença chocante entre meu antebraço saudável e o seu lamentavelmente magro. Continuei a seguir as ordens da irmã Luke e a trabalhar na ala porque não conseguia encontrar uma desculpa adequada para ir embora. Certamente não estava gostando do que estava fazendo, embora, conforme o tempo passava, sentisse menos repulsa.
Depois de aproximadamente quarenta minutos de voluntariado, senti que poderia escapar sem escandalizar a Irmã Luke nem me humilhar. Disse a ela que precisava partir para preparar meu retorno aos Estados Unidos no dia seguinte. Ela me respondeu: “Um dia não é suficiente”. Conforme saía, pensei comigo: “Na verdade, irmã, uma hora é suficiente”. Estava ansioso para sair de Kalighat. Voltei ao hotel, abri uma cerveja e agradecei a Deus por estar saindo da Índia no dia seguinte.
Durante minha estada em Kalighat, não ouvi nenhum coro angelical, não vi qualquer flash de luz celestial ou experimentei algum arrebatamento espiritual. O tempo todo estava preocupado com o medo de pegar sarna ou tuberculose de um dos pacientes e com a tentativa de arranjar um jeito de me livrar na primeira oportunidade. Mas não era possível escapar do fato de que havia cruzado um tipo de barreira – tinha tocado em pessoas desesperadamente pobres. Tinha saído da minha zona de conforto e sobrevivido. Me sentia, de alguma forma, mais homem por ter superado meus medos e feito um pouco de bem. Aprendera no livro de Malcolm Muggeridge que a Madre falava sobre os moribundos como “Jesus em Seu disfarce angustiante”. Mas eu tinha experimentado apenas o angustiante e não tinha sentido nada da presença do Deus vivo. Não tinha sido uma experiência espiritual.
Naquela noite, mal dormi, com medo de perder meu voo. Saí para o aeroporto às 4h15 da manhã. No início, enquanto atravessávamos a cidade, olhei pela janela para os corpos deitados nas calçadas – família inteiras amontoadas com apenas as roupas do corpo. Não havia um quarteirão sequer que não estivesse cheio de moradores de rua dormindo nas calçadas. Depois de um tempo, parei de olhar. Estava farto de Calcutá. O aeroporto Dum Dum parecia mais tranquilo do que quando cheguei, talvez porque minha imersão na cidade tenha amortecido algumas das minhas sensibilidades. Porém, ainda assim fui apressadamente até o balcão de check-in – um cancelamento ou atraso no voo teria sido devastador. Quando o avião decolou, deixar a Índia foi como um alívio abençoado.
Eu tinha organizado uma parada no Havaí na volta para casa e, certamente, sentia que estava merecendo. O Havaí era tudo o que deveria ser – areia branca, palmeiras, drinques com frutas –, mas eu estava tão desconfortável admirando a beleza de Honolulu quanto estivera olhando a pobreza de Calcutá. O paraíso que deveria ser minha recompensa por ter enfrentado a Índia corajosamente parecia vazio. O contraste entre os dois lugares era simplesmente grande demais para conciliar. Os abacaxis suculentos que decoravam a recepção do hotel chique eram mais saudáveis do que as pessoas que eu tinha deixado para trás nas ruas de Calcutá. Os funcionários regando os gramados do hotel trouxeram à minha mente o ritual matinal dos moradores de rua agachados no meio-fio, usando latas enferrujadas para se lavar. As mulheres de biquíni se bronzeando na praia estavam longe demais das jovens mães vestidas com trapos, assando na calçada quente enquanto mendigavam.
Era demais para eu processar. Os luxos oferecidos pelo hotel tinham perdido seu apelo. Enquanto reclinava numa espreguiçadeira à beira da piscina, pensava no homem a 11 mil quilômetros de distância, deitado na cama 46. Não era assim que o Havaí deveria ser. Meus cinco dias nas ilhas de Oahu e Maui foram passados em um redemoinho de confusão. Me senti desequilibrado, inseguro de tudo. Esse caos emocional foi o primeiro sinal de uma epifania. Algo havia mudado dentro de mim enquanto eu estava na Índia. Tinha ido a Calcutá ver Madre Teresa na esperança de ser curado como o cego foi curado por Jesus. Em vez disso, ela tinha aberto meus olhos.
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