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3. UMA CURA EXTRAORDINÁRIA
Meu caro Amigo:
A questão da origem e natureza dos acontecimentos extraordinários de Fátima, como eu já insinuava na minha última carta, é uma questão completamente aberta.
A Igreja não se pronunciou ainda sobre eles. O campo está, pois, patente a todas as discussões. Qualquer pensador tem o direito de apreciar, como melhor lhe aprouver, esses acontecimentos, negando a sua procedência sobrenatural, pondo-a em dúvida ou admitindo-a, que a ninguém assiste o direito de censurar.
O católico não possui menos liberdade de apreciação e de crítica no exame desta matéria do que o ateu. É por isso mesmo que todas as opiniões sinceras merecem deferência e respeito; sobretudo num pleito como este, que ninguém conseguiu até hoje resolver satisfatoriamente, é justo que todos respeitem, mesmo que a não perfilham, a conclusão a que chegar um estudioso na investigação que conscienciosamente fizer.
Os sucessos de Fátima constituem um fenómeno incontestavelmente digno de estudo.
Numa época em que a ciência atingiu, por assim dizer, o seu apogeu, seria deveras para lamentar que esse fenómeno múltiplo e complexo não se impusesse à atenção daqueles que, pelo seu critério e pela sua competência, estão em condições de poder estudar com proveito e apreciar devidamente a sua origem e natureza.
Eu sei que ilustres professores dos nossos mais altos institutos científicos continuam dedicando a sua esclarecida atenção ao estudo dos fenómenos meteorológicos sucedidos no dia treze de cada mês desde Maio a Outubro e ao grandioso fenómeno solar presenciado por mais de cinquenta mil pessoas, no dia treze de Outubro próximo findo, num dos planaltos da orla setentrional da serra de Aire.
Mas é absolutamente indispensável que, no interesse da verdade, seja ela qual for, todos contribuam com a sua quota parte para a solução deste difícil problema, até hoje insolúvel, para a decifração deste singular enigma, até hoje impenetrável. É o que intento fazer, escrevendo-te esta carta e autorgando-te a liberdade de publicares o que te parecer conveniente.
Posto isto, era propósito meu principiar hoje a narração histórica dos factos ocorridos em Fátima, se não me perguntasses na tua última carta se já se tinham verificado algumas curas extraordinárias que abonassem dalgum modo a origem sobrenatural desses factos. Para satisfazer a tua legítima curiosidade, passo a descrever uma das muitas curas de que tenho conhecimento, consumada e, segundo parece, definitivamente assegurada no dia treze de Outubro no próprio local das aparições, aonde desde então, sem embargo das violências brutais e sacrílegas do fanatismo anti-religioso, sempre inimigo da verdadeira liberdade de crença, concorrem cada mês centenas e milhares de pessoas de todas as classes e condições sociais e de todos os pontos do país, numa romagem piedosa e inofensiva que edifica, comove e encanta.
Maria do Carmo, de quarenta e sete anos de idade, natural do lugar do Arnal, freguesia de Maceira, concelho de Leiria, casada com Joaquim dos Santos, havia cinco anos que sofria duma enfermidade bastante grave, que apresentava todos os sintomas característicos de tuberculose. Na primeira fase da doença experimentava, de vez em quando, dores, aliás não muito fortes, na cabeça, no estômago e nos intestinos
Em princípio de 1916 as dores agravaram-se dum modo extraordinário. Eram contínuas e difíceis de suportar. Sentia-as então também nas costas e, ainda com mais intensidade, no peito. Ao mesmo tempo começou a padecer da falta de ar.
As mãos, os pés e o ventre incharam-lhe imenso. Suspeitava-se que tivesse um tumor no útero. Definhava e emagrecia a olhos vistos. Três meses depois não parecia a mesma pessoa, porque, de nutrida que era, tornara-se magra em extremo. Não podia pôr à cabeça nenhum objecto um pouco pesado pelas tonturas que isso lhe ocasionava. Tinha com frequência vontade de vomitar, embora não vomitasse.
Quando tomava algum alimento e enquanto durava a digestão, aumentavam as dores de cabeça. As dores de estômago quase que não permitiam dormir. Para não passar pior, comia muito pouco.
Sustentava-se exclusivamente ou quase exclusivamente de leite.
Uma tosse funda e seca atormentava-lhe sem cessar o peito. A saliva sabia-lhe muitas vezes a sangue. Todos os vizinhos estavam persuadidos de que a infeliz se achava tuberculosa..Ela própria não deixava aproximar de si os filhos com medo do contágio.
O curandeiro da terra, que conhecia perfeitamente a gravidade do mal, estando um dia a conversar com alguns amigos e vendo-a passar próximo, disse-lhe, num tom de convicção que não deixava margem a dúvidas, que ela estava irremediavelmente perdida, não devendo viver mais de quinze dias.
Passava-se isto em meados de Julho do ano próximo findo [1917]. Debalde procurou lenitivo para os seus incómodos nos recursos da medicina. Pobre como era e não havendo médico senão a alguns quilómetros de distância, na Batalha, foi ali só uma vez com o marido consultar o distinto e hábil clínico Dr. Moreira Padrão. Os remédios que esse facultativo aceitou não lhe produziram alívio algum.
Nestas circunstâncias não alimentava nenhumas ilusões acerca da gravidade do seu estado, e aguardava resignadamente a morte.
Por essa ocasião corria de terra em terra, dum extremo ao outro do país, a nova consoladora de que a Virgem Santíssima, desde o mês de Maio precedente, aparecia todos os meses no dia treze a umas humildes criancinhas que apascentavam gado num local vulgarmente denominado “Cova da Iria” pertencente à freguesia de Fátima, concelho de Vila Nova de Ourém, a sete léguas de distância de Maceira. Um clarão de suave esperança iluminou subitamente o seu espírito abatido e amargurado. Cheia de Fé, invoca a Mãe de Deus e, para obter por sua intercessão a cura tão suspirada, faz a promessa de ir quatro vezes a Fátima a pé e descalça. Escolheu o dia treze de Agosto para iniciar o cumprimento da sua promessa. Mas o marido, aliás homem temente a Deus, considerando tal empresa uma verdadeira temeridade, opôs-se à sua ida. “Nós somos pobres, dizia ele à mulher, não dispomos de recursos para alugar um carro em que possas efectuar a jornada sem perigo e com probabilidade de lá chegares viva. Tem paciência, mas não te deixo ir.”
Na verdade o seu estado de fraqueza era tão grande que se cansava imenso quando caminhava, por pouco que fosse. A cerca de duzentos metros da casa de habitação possui um pequeno prédio rústico. Havia muito tempo que era raro lá ir e, quando o fazia, precisava de se sentar um sem número de vezes à beira do caminho para descansar. As filhas faziam toda a lida da casa, indicando e distribuindo a mãe os diversos serviços, sem poder ajudá-las, como desejava, por lhe minguarem as forças. Insistiu, porém, tanto com o marido que este, vendo a sua inabalável confiança, acedeu à suas porfiadas instâncias e resolveu-se a acompanhá-la.
Veio finalmente o dia treze de Agosto tão ardentemente esperado. À uma hora da madrugada desse dia a doente pôs-se a caminho em companhia do marido, que continuava a considerar semelhante jornada como uma temeridade e uma loucura. Descansou várias vezes no percurso.
Eram nove horas da manhã, quando chegou ao local das aparições. Estava bastante extenuada, sentia muitas dores. Toda ela, segundo a sua própria expressão, era uma dor. Alguns instantes depois, com grande surpresa, experimentou notáveis alívios.
Sentou-se à sombra duma grande e copada azinheira, onde tomou algum alimento, e ali se conservou até às três horas da tarde, pondo-se então novamente em marcha. No regresso as dores eram menos intensas e não se sentia tão fatigada como à ida.
De dia para dia as melhoras acentuaram-se cada vez mais. Entretanto começou a tomar alimentos sólidos, mas o seu principal alimento continuava a ser o leite. Em treze de Setembro voltou pela segunda vez a Fátima, não lhe causando a viagem tanto incómodo como em treze de Agosto. De cada vez que lá ia, rezava o terço do rosário, tanto na ida como no regresso, não conversando nem prestando atenção às conversas das pessoas que a acompanhavam.
A partir desse dia melhorou ainda mais.
Já trabalhava um pouco em casa e ia com menos dificuldade à fazenda. A treze de Outubro partiu de manhã cedo, como das outras vezes, mas, antes de chegar a Fátima, surpreendeu-a a memorável chuva torrencial que assinalou aquele dia de Outono.
Apesar de se ter molhado toda, ensopando a chuva a roupa que vestia, sentiu-se perfeitamente bem no local das aparições. As dores desapareceram para não mais voltarem.
A intumescência do ventre e dos membros superiores e inferiores desapareceu igualmente como por encanto. Tendo regressado a casa, desde esse dia até hoje come de tudo, a qualquer hora do dia ou da noite, e, por mais indigestos que sejam os alimentos, não experimenta o mais leve incómodo. Não tornou a sentir falta de ar. Trabalha muito e pode pôr à cabeça fardos pesados, como antes da doença. Nunca mais teve tosse. Está gorda, sente-se forte e goza de excelente saúde. Jamais, em tempo algum da sua vida, se lembra de ter passado tão bem.
No dia treze de Novembro foi de novo a Fátima, a fim de agradecer a sua cura à Virgem do Rosário.
Eis a narração mais exacta possível da doença e da cura de Maria do Carmo redigida em face do processo verbal a que procedi de motu-próprio no dia doze de Fevereiro, em Maceira, na presença de várias testemunhas fidedignas e nomeadamente do marido, os quais todos confirmaram a exactidão do seu depoimento. Não cito nomes de testemunhas, porque todos os habitantes da freguesia estão intimamente convencidos de que a cura daquela enferma não se pode explicar de modo nenhum pela acção das forças naturais.
Poder-se-á considerar realmente essa cura como sobrenatural? Não me compete a mim dizê-lo: é à ciência e sobretudo à Igreja. Será fácil estabelecer com segurança o seu carácter sobrenatural, depois de decorridos tantos meses e não tendo havido provavelmente uma observação médica tão minuciosa como convinha? Ignoro-o, nem com isso me preocupo. O meu intuito é simplesmente chamar a atenção das pessoas sérias e cultas, quaisquer que sejam os seus princípios religiosos ou as suas opiniões acerca da índole dos acontecimentos de Fátima, para estes e outros factos que se me antolham dignos dum estudo especial, porque talvez possam contribuir para se determinar claramente a natureza desses acontecimentos. Serão eles o resultado de meras ilusões dos sentidos, especialmente da fantasia? Serão uma manifestação habilmente arquitectada pelo poder das trevas? Serão obra de Deus? É o que importa averiguar, sem ideias preconcebidas e sem parti pri, como convém a um crítico consciencioso e imparcial.
30-IX-918
Teu amigo dedicado
V. de M.
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