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6. O DIA 13 DE SETEMBRO DE 1917
Meu caro Amigo:
Aproximava-se o dia treze de Setembro. A notícia dos estranhos acontecimentos do mês anterior tinha sido levada a todos os recantos do país pelos dois colossos de informação da imprensa periódica da capital.
A população das povoações do concelho de Vila Nova de Ourém e dos concelhos limítrofes era a que estava mais ao facto do que se tinha passado, em virtude da relativa proximidade do local das aparições, que permitia a muitos habitantes daquela vastíssima área ir assistir, sem grande incómodo e sem avultadas despesas, aos fenómenos já conhecidos. Inúmeras pessoas, que das outras vezes não tinham ido a Fátima, estavam agora resolvidas a efectuar a longa e penosa jornada para satisfazerem, umas a sua devoção, outras a sua curiosidade. Todavia a imprensa católica mantinha por dever de ofício a mais prudente reserva perante os acontecimentos, cuja verdadeira origem se ignorava, e apenas um ou outro semanário da província aludiu de passagem a esse assunto tão delicado e melindroso para pôr de sobreaviso os fiéis contra maquinações possíveis de homens mal intencionados ou do poder das trevas.
As crianças que se proclamavam testemunhas oculares das aparições e que tinham sido presas, arbitrariamente e à falsa fé, pelo administrador de Vila Nova de Ourém, já estavam, havia muito tempo, em liberdade. Aquela autoridade, tendo-as levado para sua casa, deteve-as aí durante dois dias, confiando-as aos cuidados de sua esposa, que as tratou com todo o carinho.
Durante esses dias submeteu-as a interrogatórios repetidos e capciosos, tentando debalde fazê-las cair em contradições e recorrendo, também sem resultado, a promessas e ameaças, já para as obrigar a confessar que estavam desempenhando uma comédia ensinada, já para lhes arrancar o segredo que, segundo elas diziam, a Aparição lhes comunicara e que a ninguém podiam revelar.
Desta sorte um abuso bastante censurável da autoridade administrativa, que tão profunda como justa indignação provocou em todos os que dele tiveram conhecimento, constituiu um acto providencial, que veio reforçar a convicção geral, nesse tempo já formada, de que as crianças não faltavam conscientemente à verdade.
Cedendo a um sentimento irresistível de curiosidade, justificado por factos tão extraordinários, embora sem lograr vencer de todo a repugnância que sentia em fazê-lo pelo receio de parecer dar uma importância excessiva ao que talvez não passasse duma ridícula superstição popular, resolvi partir para Fátima juntamente com alguns amigos e por isso tomei no dia doze à tarde o combóio do norte e apeei-me em Torres Novas, donde, na madrugada do dia imediato, segui de carro para a povoação já tão afamada. O espectáculo que presenciei durante a jornada, desde a princesa do Almonda até à pátria adoptiva de Gonçalo Hermigues, era por demais surpreendente. Decerto não levarás a mal que nesta altura dê a palavra ao signatário da carta descritiva das cenas maravilhosas do dia treze de Agosto, o qual noutra carta para o mesmo signatário narra com tanta precisão e com tão encantadora singeleza os acontecimentos do dia treze de Setembro, que não resisto ao desejo de também a transcrever. É do teor seguinte:
“Como no mês próximo findo, fui também este mês, no dia treze, a Fátima, mas desta vez sem o esperar, porque não era fácil nem tinha tenção de lá ir.
Foi o caso que no dia doze à noite chegou aqui F. num enorme chars-à-bancs, que transportava para Fátima dezasseis pessoas da Benedita ansiosas por assistir aos fenómenos que costumam verificar-se no dia treze de cada mês desde Maio do corrente ano.
F. prenoitou em minha casa e no dia seguinte de manhã convidou-me a tomar lugar no carro, convite a que acedi com alvoroço.
Na véspera tinham passado por esta povoação verdadeiros bandos de pessoas, que vinham dos lados do mar, tendo dormido aqui grande número delas. À hora aprazada subimos para o carro e partimos. Durante a jornada comovi-me imenso e por mais duma vez me assomaram as lágrimas aos olhos ao constatar a Fé e piedade ardente de tantos milhares de romeiros.
Os caminhos e atalhos iam cheios de gente. Não havia carreiro, por mais pequeno que fosse, que não trouxesse pessoas à estrada. Era uma peregrinação verdadeiramente digna deste nome, cuja vista, só por si, fazia chorar de comoção. Nunca me fora dado presenciar em toda a minha vida tão grande e tão empolgante manifestação de Fé. Não se via nem se ouvia coisa alguma que traduzisse o mais imperceptível sentimento de leviandade ou mesmo um propósito de divertimento inocente.
O harmónio, indispensável em todas as romarias e festas de aldeia, brilhava pela sua ausência. Não havia a desenvoltura própria da gente moça do campo, nem ao menos as costumadas graças e chalaças inofensivas, acompanhadas de estridentes gargalhadas. Eram quase dez horas, quando atingimos o termo da nossa jornada. A multidão, que àquela hora já era enorme, aproximava-se cheia de respeito do local das aparições. Os homens descobriram-se. Quase todas as pessoas se ajoelhavam e rezavam com fervor.
Logo que chegámos, dirigimo-nos a casa das crianças, fotografámo-las e conversámos com elas. Foi essa a cena que mais me impressionou. Fiquei positivamente encantado. Aquela simplicidade angélica e aquela absoluta despreocupação, que elas manifestam, não podem mentir. Não têm o acanhamento próprio das crianças rudes dos campos e das serras na presença de pessoas desconhecidas.
Tanto se lhes dá falar com uma pessoa estranha como com muitas. As respostas são sempre as mesmas. Parecem adultos na maneira de se exprimir. De casa das crianças seguimos para a residência paroquial, onde estavam, além do pároco, alguns amigos meus e de F. com os quais trocámos impressões sobre o assunto do dia. Passada meia hora, pusemo-nos a caminho do local das aparições.
Ao meio dia em ponto, hora astronómica, o sol começou a perder o brilho. Não houve quem não notasse esse facto, que desde Maio precedente se repetia sempre no dia treze de cada mês à mesma hora. Pouco depois a mais velha das crianças ordenou aos circunstantes que rezassem.
Nunca esquecerei a violenta impressão que senti ao ver cair de joelhos tantos milhares de fiéis, que chorando rezavam em voz alta e imploravam cheios de confiança a protecção maternal da Rainha do Céu. Foi neste momento que muitos circunstantes viram uma oval, pouco mais volumosa que um ovo, de cor branca, viva e brilhante, com parte mais larga voltada para baixo, descrever no firmamento uma comprida linha recta. Alguns observaram esse fenómeno por mais, outros por menos tempo. Eu não o vi e tenho pena disso.
O Dr. F. e muitos patrícios meus afirmam que também o viram.
Alguns destes, cuja seriedade não é lícito pôr em dúvida, asseguram ter percebido uma espécie de flores que caíam do céu, mas não tocavam no chão, desaparecendo ao chegarem a certa altura. A atmosfera tomou uma cor amarela, talvez por causa da diminuição da luz solar.
O que se passou nesse rápido quarto de hora nunca esquece, mas não é fácil de descrever. O aspecto da imensa multidão ajoelhada, a sua expectativa ansiosa e inquieta, a devoção com que invocava a Rainha do Céu e enfim a augusta solenidade de momento constituíam um espectáculo admirável e enternecedor.
Logo que o sol recuperou a sua luz habitual, as crianças, que se tinham conservado sempre junto da carrasqueira e que declaravam ter-lhes aparecido pela quinta vez a Virgem Santíssima, retiraram para suas casas e ao mesmo tempo partiram as primeiras levas de povo que pouco a pouco dispersou. Os cálculos mais reduzidos avaliavam em quinze a dezassete mil as pessoas presentes no momento da aparição. Havia, porém, quem fosse de opinião que estavam mais de vinte mil. Não dou o meu parecer, mas o certo é que nunca vi tanta gente junta. “Era um lindo espectáculo”.
Obrigado pelo amor da verdade, não quero concluir sem dizer que as minhas impressões do que se passou neste dia em Fátima não foram animadoras.
Não me aproximei do local das aparições, quase não conversei com ninguém, ficando na estrada a cerca de trezentos metros de distância, e apenas constatei a diminuição da luz solar, que me pareceu um fenómeno sem importância, devido porventura à elevada altitude da serra. Continuei, por isso, a manter-me numa prudente, posto que benévola expectativa, como sucedia desde os acontecimentos de Agosto, porque antes deles esboçava invariavelmente um sorriso de absoluta incredulidade ao ouvir qualquer referência às aparições de Fátima. E hoje fico por aqui, que esta já vai longa.
5-IX-919
Teu amigo
V. de M.