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7. AS DECLARAÇÕES DOS VIDENTES
(27 DE SETEMBRO DE 1917)13
No intuito de completar as impressões colhidas no dia treze do corrente mês de Setembro e habilitar-me com os elementos indispensáveis para fundamentar, tanto quanto possível, um juízo seguro acerca dos acontecimentos que nos últimos cinco meses se têm desenrolado a três quilómetros ao norte da aldeia de Fátima, no local denominado Cova da Iria, fui, pela segunda vez, na quinta-feira passada, vinte e sete, àquela pitoresca aldeia, graciosamente alcandorada num dos contrafortes da majestosa serra de Aire.
Eram três horas da tarde quando me apeei do trem que de Torres Novas me conduzira por Vila Nova de Ourém à humilde povoação, cujo nome é hoje pronunciado como uma promessa de bênçãos e graças celestes por dezenas de milhares de lábios dum extremo ao outro de Portugal. O reverendo pároco, a quem logo procurei, não estava em casa, tinha saído para fora da freguesia e só à noite devia voltar.
Pesaroso por não poder trocar com ele algumas palavras sobre o assunto que ali me levava, resolvi ir a casa das crianças que se dizem favorecidas com as aparições da Virgem Santíssima e ouvir da boca delas a narrativa pormenorizada dos estranhos sucessos, cuja notícia tem atraído dia a dia a Fátima um sem número de pessoas de todas as classes e condições sociais.
À distância de dois quilómetros da igreja paroquial e do presbitério, num insignificante lugarejo chamado Aljustrel, pertencente à freguesia, ficam situadas as modestas habitações das famílias dos pastorinhos.
As duas crianças mais novas estavam ausentes. Dirigi-me a casa da mais velha, onde a mãe me convidou a entrar e sentar-me, convite a que acedi. A uma pergunta minha sobre o paradeiro da filha que procurava, respondeu-me que ela andava a vindimar numa pequena propriedade que lhe pertencia e que ficava dois quilómetros distante.
Alguém se prestou logo a ir chamá-la, a pedido da mãe. Entretanto as duas crianças mais novas, que tinham regressado do campo, sabendo pelas vizinhas que eu lhes desejava falar, vieram ter comigo.
São dois irmãos, um menino e uma menina. Chegou primeiro a menina.
Chama-se Jacinta de Jesus, tem sete anos de idade e é filha de Manuel Pedro Marto e de Olímpia de Jesus. Bastante alta para a sua idade, um pouco delgada sem se poder dizer magra, de rosto bem pronunciado, tez morena, modestamente vestida, descendo-lhe a saia até à altura dos artelhos, o seu aspecto é o duma criança saudável, acusando perfeita normalidade no seu todo físico e moral. Surpreendida com a presença de pessoas estranhas, que me tinham acompanhado e que não esperava encontrar, a princípio mostra um grande embaraço, respondendo com monossílabos e num tom de voz quase imperceptível às perguntas que lhe dirijo. Momentos depois aparece o irmão, rapaz de nove anos de idade que entra com um certo desembaraço no quarto, onde estávamos, conservando o barrete na cabeça, decerto por não se lembrar de que devia descobrir-se. Um sinal, que a irmã lhe fez nesse sentido, não foi percebido por ele. Convidei-o a sentar-se numa cadeira ao meu lado, obedecendo imediatamente e sem nenhuma relutância.
[Interrogatório de Francisco]
Principiei sem demora a interrogá-lo sobre o que tinha visto e ouvido desde o mês de Maio último na Cova da Iria, no dia treze de cada mês, durante o tempo da aparição.
Entre mim e ele estabeleceu-se o curto diálogo que segue.
– Que é que tens visto na Cova da Iria nos últimos meses?
– Tenho visto Nossa Senhora.
– Onde é que ela aparece?
– Em cima duma carrasqueira.
– Aparece de repente ou tu vê-la vir dalguma parte?
– Vejo-a vir do lado onde nasce o sol e colocar-se sobre a carrasqueira.
– Vem devagar ou depressa?
– Vem sempre depressa.
– Ouves o que ela diz à Lúcia?
– Não ouço.
– Falaste alguma vez com a Senhora? Ela já te dirigiu a palavra?
– Não, nunca lhe perguntei nada; fala só com a Lúcia.
– Para quem olha, também para ti e para a Jacinta ou só para a Lúcia?
– Olha para todos três; mas olha durante mais tempo para a Lúcia.
– Já alguma vez chorou ou se sorriu?
– Nem uma coisa nem outra; está sempre séria.
– Como está vestida?
– Tem um vestido comprido e por cima do vestido um manto que lhe cobre a cabeça e desce até à extremidade do vestido.
– De que cor são o vestido e o manto?
– São brancos, tendo o vestido riscas douradas.
– Qual é a atitude da Senhora?
– É a de quem está a rezar. Tem as mãos postas à altura do peito.
– Traz alguma coisa nas mãos?
– Traz entre a palma e as costas da mão direita umas contas, que estão pendentes sobre o vestido.
– E nas orelhas que tem?
– As orelhas não se vêem, porque estão cobertas com o manto.
– De que cor são as contas?
– São também brancas.
– A Senhora é bonita?
– É sim.
– Mais bonita do que aquela menina que tu ali vês?
– Mais.
– Mas há senhoras muito mais bonitas que aquela menina...
– É mais bonita que qualquer pessoa que eu visse.
[Interrogatório de Jacinta]
Concluído o interrogatório do Francisco, chamei de parte a Jacinta, que andava a brincar na rua com outras crianças, fi-la sentar num banquinho ao pé de mim e submeti-a também a um interrogatório, logrando obter dela respostas completas e minuciosas como as do irmão.
– Tens visto Nossa Senhora no dia treze de cada mês desde Maio para cá?
– Tenho visto.
– Donde é que ela vem?
– Vem do céu, do lado do sol.
– Como está vestida?
– Tem um vestido branco, enfeitado a ouro e na cabeça um manto também branco. Em volta da cintura há uma fita dourada que desce até à orla do vestido.
– Usa botas ou sapatos?
– Não usa botas nem sapatos.
– Então tem só meias?
– Parece que tem meias, mas talvez os pés sejam tão brancos que pareçam trazer meias calçadas14.
– De que cor são os cabelos?
– Não se lhe vêem os cabelos, que estão cobertos com o manto.
– Traz brincos nas orelhas?
– Não sei, porque também não se lhe vêem as orelhas.
– Qual é a posição das mãos?
– As mãos estão postas à altura do peito, com os dedos voltados para cima.
– As contas estão na mão direita ou na esquerda?
A esta pergunta a criança responde primeiro que estavam na mão direita, mas em seguida, devido a uma insistência da minha parte, mostra-se perplexa e confusa, não sabendo precisar bem qual das suas mãos corresponde àquela com que a Aparição segurava o rosário.
– Que foi que Nossa Senhora recomendou à Lúcia com mais empenho?
– Mandou que rezássemos o terço todos os dias.
– E tu reza-lo?
– Rezo-o todos os dias com o Francisco e com a Lúcia.
[Interrogatório de Lúcia]
Meia hora depois de terminado o interrogatório de Jacinta Marto, aparece a Lúcia de Jesus. Vinha, como já disse, duma pequena propriedade de sua família, situada a dois quilómetros de distância, onde tinha estado a vindimar. Mais alta e mais nutrida que as outras duas crianças, de tez mais clara, robusta e saudável, apresenta-se diante de mim com um desembaraço que contrasta singularmente com o acanhamento e a timidez excessiva da Jacinta. Singelamente vestida como esta, a sua atitude não denota e o seu rosto não traduz nenhum sentimento de vaidade, nem tão pouco de confusão.
Sentando-se, a um aceno meu, numa cadeira, ao meu lado, presta-se da melhor vontade a ser interrogada sobre os acontecimentos de que ela é a principal protagonista, sem embargo de se sentir visivelmente fatigada e abatida, mercê das visitas incessantes que recebe e dos inquéritos repetidos e prolongados a que é submetida.
Filha de António dos Santos, de cinquenta anos de idade, e de Maria Rosa, de quarenta e oito anos, tem um irmão e quatro irmãs, todos mais velhos do que ela: Maria, de vinte e seis anos, já casada, Teresa, de vinte e quatro, Manuel, de vinte e dois, Glória de vinte, e Carolina, de quinze. Completou dez anos de idade em vinte e dois de Março do corrente ano. Tinha oito anos15 quando fez a sua primeira comunhão. A mãe, tipo da mulher cristã e da boa dona de casa, entregue às lides domésticas, procurou sempre inspirar aos filhos o santo temor de Deus e levá-los ao cumprimento de todos os seus deveres morais e religiosos. Altamente preocupada com os sucessos que atraem a todo o momento as atenções de milhares de pessoas para a sua pobre habitação, até há pouco tempo ignorada do mundo, nota-se desde logo que o seu espírito hesita, numa ansiedade inquieta, entre a esperança de que a filha seja realmente privilegiada com a aparição da Virgem e o receio de que ela seja vítima duma alucinação, que lhe traga desgostos e cubra de ridículo toda a sua família. A uma pergunta minha acerca da piedade da sua Lúcia, responde que não acha nela nada de extraordinário neste particular, vendo-a rezar da mesma forma e com o mesmo fervor que antes das aparições, exactamente como fazem as suas irmãs.
Dou princípio ao interrogatório da vidente.
– É verdade que Nossa Senhora te tem aparecido no local chamado Cova da Iria?
– É verdade.
– Quantas vezes já te apareceu?
– Cinco vezes, sendo uma cada mês.
– Em que dia do mês?
– Sempre no dia treze, excepto no mês de Agosto, em que fui presa e levada para a vila (Vila Nova de Ourém)pelo senhor administrador. Nesse mês só a vi alguns dias depois, a dezanove16 no sítio dos Valinhos.
– Diz-se que a Senhora te apareceu também o ano passado. Que há de verdade a esse respeito?
– O ano passado nunca me apareceu, nem antes de Maio deste ano; nem eu disse isso a pessoa alguma, porque não era exacto.
– Donde é que ela vem? Das bandas do nascente?
– Não sei; não a vejo vir de parte alguma; aparece sobre a carrasqueira17 e quando se retira é que toma a direcção do ponto do céu em que nasce o sol.
– Quanto tempo se demora? Muito ou pouco?
– Pouco tempo.
– O suficiente para se recitar um Padre Nosso e uma Avé Maria, ou mais?
– Mais, bastante mais, mas nem sempre o mesmo tempo; talvez não chegasse nunca para rezar o terço.
– Da primeira vez que a viste, não ficaste assustada?
– Fiquei, e tanto assim que quis fugir com a Jacinta e o Francisco, mas ela disse-nos que não tivéssemos medo, porque não nos faria mal.
– Como é que está vestida?
– Tem um vestido branco, que desce quase até aos pés18, e cobre-lhe a cabeça um manto da mesma cor e do mesmo comprimento que o vestido.
– O vestido não tem enfeites?
– Vêem-se nele, na frente, dois cordões dourados, que descem do pescoço e se reúnem por uma borla, também dourada, à altura do meio do corpo.
– Tem algum cinto ou alguma fita?
– Não tem.
– Usa brincos nas orelhas?
– Usa umas argolas pequenas e de cor amarela.
– Qual das mãos segura as contas?
– A mão direita.
– Eram um terço ou um rosário?
– Não reparei bem.
– Terminavam por uma cruz?
– Terminavam por uma cruz branca, sendo as contas também brancas. A cadeia era igualmente branca.
– Perguntaste-lhe alguma vez quem era?
– Perguntei, mas declarou que só o diria a treze de Outubro.
– Não perguntaste donde vinha?
– Perguntei donde era e ela respondeu-me que era do Céu.
– E quando foi que lhe fizeste essa pergunta ?
– Da segunda vez, a treze de Junho.
– Sorriu-se alguma vez ou mostrou-se triste?
– Nunca se sorriu nem se mostrou triste, mas sempre séria.
– Recomendou-te, e aos teus primos, que rezassem algumas orações?
– Recomendou-nos que rezássemos o terço em honra de Nossa Senhora do Rosário a fim de se alcançar a paz para o mundo.
– Mostrou desejos de que no dia treze de cada mês estivessem muitas pessoas durante a aparição na Cova da Iria?
– Não disse nada esse respeito+.
– É certo que te revelou um segredo, proibindo que o descobrisses a quem quer que fosse?
– É certo.
– Diz respeito só a ti ou também aos teus companheiros?
– A todos três.
– Não o podes manifestar ao menos ao teu confessor?
A esta pergunta guardou silêncio, parecendo um tanto enleada, e julguei não dever insistir repetindo a pergunta.
– Consta que, para te veres livre das importunações do senhor administrador no dia em que foste presa, lhe contaste, como se fosse o segredo, uma coisa que o não era, enganando-o assim e gabando-te depois de lhe teres pregado essa partida: é verdade?
– Não é; o senhor administrador quis realmente que eu lhe revelasse o segredo, mas, como eu o não podia dizer a ninguém, não lho disse, apesar de ter insistido muito comigo para esse fim. O que fiz, foi contar tudo o que a Senhora me disse, excepto o segredo, e talvez por esse motivo o senhor administrador ficasse julgando que eu lhe tinha revelado também o segredo. Não o quis enganar.
– A Senhora mandou-te aprender a ler?
– Mandou, sim, da segunda vez que apareceu.
– Mas, se ela disse que te levaria para o Céu no mês de Outubro próximo, para que te serviria aprenderes a ler?
– Não é verdade isso: a Senhora nunca disse que me levaria para o Céu em Outubro e eu nunca afirmei que ela me tivesse dito tal coisa.
– Que declarou a Senhora que se devia fazer ao dinheiro que o povo deposita na Cova da Iria ao pé da carrasqueira?
– Disse que o devíamos colocar em dois andores, levando eu, a Jacinta e mais duas meninas um deles, e o Francisco, com mais três rapazes, o outro, para a igreja da freguesia. Parte desse dinheiro seria destinado ao culto e festa da Senhora do Rosário e a outra parte para ajuda duma capela nova.
– Onde quer a Senhora que se edifique a capela? Na Cova da Iria?
– Não sei: ela não o disse.
– Estás muito contente por Nossa Senhora te ter aparecido?
– Estou.
– No dia treze de Outubro Nossa Senhora virá só?
– Vem também São José com o Menino e será concedida a paz ao mundo.
– Nossa Senhora fez mais alguma revelação?
– Declarou que no dia treze de Outubro fará com que o povo acredite que ela realmente aparece.
– Por que razão não raro baixas os olhos, deixando de fitar a Senhora?
– É que ela às vezes cega.
– Ensinou-te alguma oração?
– Ensinou e quer que a recitemos depois de cada mistério do rosário.
– Sabes de cor essa oração?
– Sei.
– Dize lá...
– Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno e aliviai as almas do Purgatório, especialmente as mais abandonadas19.
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