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4. NOTAS E COMENTÁRIOS
Meu caro Amigo
Espero da tua nunca desmentida benevolência que releves o meu prolongado silêncio acerca dos já célebres acontecimentos de Fátima.
A terrível pandemia bronco-pneumónica que, como um flagelo inexorável da Justiça Divina, assolou o mundo inteiro, ceifando mais vidas humanas do que a própria grande guerra europeia, obrigou-me a interromper, mau grado meu, a série das minhas correspondências sobre esse momentoso tema, para me dedicar inteiramente, como me cumpria, ao exercício da minha profissão, salvando das garras da morte centenas de existências preciosas. Seguiram-se os sucessos políticos que todos conhecemos e que tão lamentavelmente convulsionaram o nosso país, perturbando por muito tempo a normalidade da vida social.
Veio por último, ordenada pela autoridade civil local, a suspensão arbitrária do semanário “A Guarda”, onde mandavas publicar as minhas singelas e despretensiosas cartas. Por todas as razões expostas só hoje volto a pegar na pena para reatar o fio da nossa conversa epistolar. A mais comezinha delicadeza impunha-me o dever imperioso de te dar estas explicações antes de começar a ocupar-me de novo dum assunto que tão grato é ao coração de muitas dezenas de milhares de portugueses.
Que se passou em Fátima durante o longo período decorrido desde a publicação da minha última carta?
Limitar-me-ei, por hoje, a registar apenas certos factos, que merecem especial menção, porque estão intimamente relacionados com outros factos anteriores, de que são porventura a consequência e a contraprova.
Um dos personagens do maravilhoso drama da serra de Aire, o humilde e inocente pastorinho, já não pertence a este mundo.
A epidemia bronco-pneumónica, quase a declinar, roçou com a sua asa negra a pobre criança, ferindo-a de morte. A mais nova das videntes, irmã do finado, encontra-se actualmente no hospital de Vila Nova de Ourém com uma pleurisia supurante, sendo convicção dos médicos que está irremediavelmente perdida.
Outro facto digno de registo é que a capela mandada erigir pela Aparição, no local em que tantas vezes se manifestara aos humildes pastorinhos, já se acha concluída. Edificada à beira da grande estrada distrital que, partindo de Vila Nova de Ourém e passando pela Batalha, vai terminar em Leiria, ela semelha, na sóbria correcção das suas linhas um marco gigantesco, a cuja sombra se senta por instantes o viandante, cansado da peregrinação da vida, a fim de recobrar os alentos e as energias de que carece para chegar são e salvo à pátria ardentemente suspirada.
A concorrência de piedosos romeiros àquela estância privilegiada, longe de diminuir, tem aumentado consideravelmente de dia para dia.
Sobretudo nos Domingos e dias santificados é bastante comovente o espectáculo que ali se desenrola aos olhos do observador. Ainda no dia treze do corrente mês, como tive ocasião de ver com os meu próprios olhos, milhares de peregrinos e numerosas peregrinações vindas de terras distantes e até doutros concelhos visitaram a devota capela. Ali se ouve o brando ciciar das preces que se elevam fervorosas para o Céu, enquanto os ecos repercutem ao longe o som mavioso dos cânticos populares em honra da augusta Mãe de Deus. Rara é a hora do dia ou da noite em que esteja completamente deserto o local das aparições.
Notícias de curas extraordinárias, de prodígios assombrosos, de inúmeras e admiráveis graças espirituais e temporais obtidas por intercessão de Nossa Senhora do Rosário, circulam de grupo em grupo e todos à porfia procuram os que se julgam privilegiados da Virgem para os conhecer pessoalmente e ouvir da sua boca a narração exacta e pormenorizada dos factos reputados miraculosos. Das paredes interiores da graciosa capela pende uma infinidade de ex-votos, aos quais se vêm juntar todos os dias novos testemunhos da gratidão das almas favorecidas com as mercês do Céu.
O clero, cuja atitude nesta matéria tem sido superior a todo o elogio, acatando com o maior escrúpulo as determinações da autoridade eclesiástica, continua a guardar a mais prudente reserva, conservando-se alheio a todas as manifestações de Fé e piedade que se realizam no local das aparições.
Na íntima convicção de que, se os acontecimentos de Fátima têm a Deus como origem, hão-de desafiar triunfalmente a hostilidade dos seus inimigos, as vicissitudes do tempo e a contradição das coisas humanas, aguarda com serenidade o futuro, sem querer de modo algum comprometer o seu bom nome e a dignidade da Igreja, intervindo na consolidação duma obra, que decerto há-de ruir por terra, se as suas causas forem de ordem meramente natural.
Na verdade, são mais que suficientes os motivos de credibilidade que tornam a adesão do espírito humano aos dogmas da Fé e aos princípios da moral cristã um acto racional e justo. A Religião Católica, para se fazer abraçar pelas inteligências rectas e pelos corações bem formados, não precisa que se repitam os prodígios dos primeiros tempos do Cristianismo.
A própria Lourdes, com os seus surdos que ouvem, os seus cegos que vêem, os seus mudos que falam, os seus paralíticos que andam, numa palavra, com os seus portentosos milagres, cientificamente demonstrados e absolutamente incontestáveis, que são a admiração e o assombro do mundo inteiro, era-lhe perfeitamente dispensável.
Eis o que me oferecia dizer-te a propósito dos sucessos de Fátima, depois do meu longo silêncio de quase dez meses.
Numa próxima carta recomeçarei a descrição dos episódios maravilhosos de que é teatro a encantadora povoação, santificada pela presença e pelas orações do Santo Condestável na véspera da memorável batalha de Aljubarrota.
24-VII-919
V. de M.