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1. A VISÃO DOS PASTORINHOS
Ninguém ignora hoje no nosso país que, há precisamente dez anos, uma série de acontecimentos de todo o ponto extraordinários e por enquanto inexplicáveis, se desenrolou em plena serra de Aire, a pouco mais de dois quilómetros da aldeia de Fátima, num local conhecido pela designação popular de “Cova da Iria” e situada à beira da estrada, que liga Vila Nova de Ourém à histórica vila da Batalha e à pitoresca e graciosa cidade do Lis.
No dia treze de Maio de 1917, três crianças, Lúcia de Jesus, Francisco Marto e Jacinta Marto, respectivamente de dez, nove e sete anos de idade, andavam apascentando um rebanho de ovelhas, quando à hora do meio-dia solar, depois de rezarem em comum o terço do rosário, como costumavam fazer, lhes apareceu de repente sobre uma azinheira um vulto de donzela de celestial beleza.
“A Aparição, diz o autor deste livro no seu opúsculo Os episódios maravilhosos de Fátima, parecia não ter mais de dezoito anos de idade. O vestido era duma alvura puríssima de neve, assim como o manto, orlado de ouro, que lhe cobria a cabeça e a maior parte do corpo. O rosto, duma nobreza de linhas irrepreensível e que tinha um não sei quê de sobrenatural e divino, apresentava-se sereno e grave e como que toldado duma leve sombra de tristeza. Das mãos, juntas à altura do peito, pendia-lhe, rematado por uma cruz de ouro, um lindo rosário, cujas contas, brancas de arminho, pareciam pérolas. De todo o seu vulto, circundado dum esplendor mais brilhante que o do sol, irradiavam feixes de luz, especialmente do rosto, duma formosura impossível de descrever e superior a qualquer beleza humana”9.
A Aparição pediu às crianças que voltassem àquele sítio, à mesma hora, no dia treze dos meses seguintes, até Outubro. Nesses seis meses a concorrência de devotos e curiosos ao local das aparições foi aumentando consideravelmente de mês para mês. Segundo os cálculos mais exactos, estiveram presentes trinta mil pessoas em treze de Setembro e cerca de setenta mil em treze de Outubro.
Durante as aparições estabelecia-se entre a Visão e a Lúcia um diálogo, em que aquela fazia à inocente pastorinha diversos pedidos e promessas.
Disse entre outras coisas que recomendasse a todos a recitação do terço e o arrependimento dos pecados para aplacar a justiça divina e suspender castigos iminentes, comunicou um segredo e pediu que se erigisse uma capela em sua honra.
Sinais extraordinários no céu e fenómenos meteorológicos de origem desconhecida atraíam as atenções da multidão enquanto durava o colóquio misterioso, merecendo especial referência uma densa e formosa nuvem branca que envolvia a azinheira e as crianças e que só a certa distância se tornava visível.
Entre as promessas ou profecias há uma a que se não pode negar um valor excepcional, porque da parte da Visão tinha evidentemente por objectivo demonstrar a realidade das aparições e o seu carácter sobrenatural. A Visão, logo nas primeiras aparições, anunciou que no dia treze de Outubro havia de operar um milagre, para que toda a gente acreditasse que era realmente a Senhora do Rosário, como ela se intitulou nesse mesmo dia, que se dignava aparecer mais uma vez em terras de Portugal, a fim de prodigalizar graças e bênçãos a todos os que a ela recorressem.
E de facto, nesse dia entre todos assaz memorável, à hora do colóquio habitual, em presença duma multidão inumerável, composta de pessoas de todas as classes e condições sociais e procedentes de todos os pontos do país, cujos sentimentos traduziam, constituindo por isso mesmo a mais autêntica e legítima representação nacional, um fenómeno estranho, um sucesso inaudito, um prodígio tão estupendo que jamais se apagará da memória dos que a ele tiveram a dita de assistir, se realizou no lugar, onde, segundo tradições respeitáveis, o Santo Condestável, que a Igreja nesse ano elevava às honras dos altares, esteve orando na véspera da batalha de Aljubarrota. “O sol, como disse um grande diário, tremeu, o sol teve nunca vistos movimentos bruscos fora de todas as leis cósmicas”10, o sol girou vertiginosamente sobre o seu eixo como a mais bela roda de fogo de artifício que se possa imaginar, revestindo sucessivamente todas as cores do arco-íris e projectando em todos os sentidos feixes de luz dum efeito surpreendente. E este fenómeno, astronómico ou meteorológico, que os aparelhos dos observatórios não registaram, repetiu-se por três vezes distintas, durando no seu conjunto cerca de dez minutos.
A nova de acontecimentos tão maravilhosos foi logo transmitida pela imprensa de grande circulação a todos os ângulos do país e pelo telégrafo até aos confins do mundo.
Desde então a torrente caudalosa das multidões tem-se despenhado ininterruptamente sobre aquela estância privilegiada. A fama de curas assombrosas de vítimas de toda a sorte de enfermidades, de conversões admiráveis de ímpios e descrentes de todas as classes sociais, da morte trágica de criaturas desvairadas pelo sectarismo anti-religioso, que a pretexto das aparições ousaram blasfemar da Virgem bendita, concorreu poderosamente para engrossar cada vez mais essa torrente, provocando manifestações de Fé e piedade em nada inferiores às dos célebres santuários consagrados à augusta Mãe de Deus e dos homens.
Doravante nada será capaz de deter a marcha vitoriosa da formidável vaga humana que, num vaivém contínuo, se precipita em catadupas gigantescas sobre os cumes áridos e escalvados da serra de Aire.
As potências infernais, utilizando como instrumentos cegos e inconscientes alguns raros indivíduos duma inferioridade mental incompatível com o progresso e a civilização moderna, têm envidado os maiores esforços e lançado mão de todos os meios, ainda os mais ignóbeis, para obstar à repetição dessas cenas sublimes e comoventes, que atestam irrecusavelmente a pujante vitalidade religiosa dum povo inteiro.
Em Março de 1922 um grupo de ... infelizes destruiu com bombas de dinamite a capelinha erigida pela piedade popular em comemoração das aparições11.
Por vezes a autoridade civil, ludibriada por essas pessoas, tem prestado, embora sempre de má vontade em virtude do ridículo a que se expõe esgrimindo contra moinhos de vento, um concurso valioso mas contraproducente à efectivação dos seus planos maquiavélicos, que pretendem em vão coonestar com o pretexto de que as manifesta-ções de Fátima revelam ou pelo menos significam o que quer que seja de hostil às instituições vigentes. Nada há mais absurdo nem mais pueril do que tão ridículo pretexto. Toda a gente sabe que essas manifestações são de índole puramente religiosa, não tendo havido jamais a mínima perturbação da ordem pública, a mais ligeira nota discordante, um acto menos correcto ou menos deferente, para com quem quer que fosse.
A autoridade eclesiástica durante quatro anos manteve-se inquebrantavelmente numa atitude de benévola expectativa, resistindo a instantes solicitações de toda a ordem que, aliás com o maior respeito e na melhor das intenções, lhe eram feitas pelo elemento popular e por entidades categorizadas, das opiniões políticas mais divergentes, para intervir num pleito de tanta importância, já em si mesmo, já pelas suas consequências, e decidi-lo com o ditame seguro e incontestável do seu sagrado e venerando magistério.
Em 1922, porém, julgou chegado o momento oportuno de quebrar o seu silêncio e fê-lo com uma prudência e uma sabedoria admiráveis, de que só a Igreja conhece o segredo, autorizando o culto público de Nossa Senhora na Cova da Iria, mas reservando-se o juízo definitivo sobre o carácter das aparições e a origem e natureza dos fenómenos astronómicos e meteorológicos ali sucedidos desde treze de Maio até treze de Outubro de 1917, assim como das curas extraordinárias atribuídas à intercessão de Nossa Senhora do Rosário de Fátima. Ao mesmo tempo nomeava uma comissão incumbida de proceder a um longo e rigoroso inquérito e de elaborar um relatório fundamentado depois de ouvir o depoimento de testemunhas fidedignas e a opinião de peritos idóneos e notáveis pelo seu critério, inteligência e saber.
Hoje, dez anos após as aparições, os trabalhos da comissão canónica estão quase concluídos, e tudo leva a crer que dentro em breve seja proferida a sentença definitiva, satisfazendo-se assim a expectativa ansiosa de muitos milhões de almas, sedentas de ideal, dominadas pela nobre paixão da verdade e do bem12.