- A+
- A-
1. GLÓRIA E REPARAÇÃO
Treze de Maio de 1922.
Que deliciosas recordações não desperta esta data memorável nas almas crentes e piedosas dum país inteiro! Cinco anos são passados, depois que, segundo o testemunho de três inocentes crianças, a augusta e gloriosa Rainha dos Anjos se dignou aparecer pela primeira vez nas cumeadas da serra de Aire para derramar graças de predilecção sobre o povo que a havia escolhido como sua Padroeira.
Fátima! É para esta terra bendita, para o seu imponente santuário, que tem por pavimento a montanha, por paredes o horizonte e por cúpula a abóbada celeste, para a sua singela capelinha, que mãos sacrílegas ousaram profanar, para a sua fonte maravilhosa, manancial perene de curas extraordinárias, é para este verdadeiro cantinho do Éden que no dia de hoje se volvem, de todos os pontos de Portugal, os olhos e os corações de centenas de milhar de fiéis.
Nesta hora solene entre as mais solenes, não há cidade, por mais remota e esquecida, não há aldeia, ainda a mais humilde e ignorada, onde ao menos alguns lábios não suspirem, trémulos de comoção, o nome dulcíssimo de Fátima, onde sequer alguns corações não palpitem de júbilo e entusiasmo ao evocar o suave e místico encanto que este nome encerra.
Ainda há bem pouco tempo Fátima era apenas uma insignificante e quase desconhecida povoação.
E contudo hoje, dum extremo ao outro de Portugal, milhões de vozes a proclamam a terra privilegiada entre as terras, onde as almas atribuladas, os corações doloridos e os corpos martirizados vão buscar luz e conforto, alegria e paz, remédio ou lenitivo para as suas mágoas, para as suas angústias, para os seus incomportáveis sofrimentos físicos ou morais.
De facto, a outrora ignorada Fátima é actualmente o mais belo centro de devoção a Nossa Senhora no nosso país.
À voz augusta da Mãe de Deus, que se dignou aparecer a três humildes pastorinhos, centenas de milhar de peregrinos e visitantes acorrem de toda a parte, em ondas impetuosas, com um entusiasmo que recorda o das Cruzadas, e perante o minúsculo santuário comemorativo das aparições desfilam cheios de respeito e veneração e com as almas transbordando da mais intensa e mais pura alegria.
Ah! como são simultaneamente belos e grandiosos na sua incomparável simplicidade esses cortejos intermináveis que circulam naquela imensa esplanada, celebrando as glórias e cantando as misericórdias da augusta Virgem do Rosário!
Que espectáculo surpreendente nos oferece a multidão inumerável dos abandonados da ciência humana que ali vão buscar remédio, lenitivo ou conforto para as suas terríveis enfermidades!
Salvé, Fátima, formoso oásis do deserto da vida, jardim perfumado pelas brisas do Céu, terra sagrada e bendita, onde cada rochedo assinala um prodígio e cada pedra é testemunha duma bênção da Imaculada!
Salvé, mil vezes salvé!
Há pouco mais de dois meses, em seis de Março, a horas mortas da noite, a ordeira e pacífica população de Fátima acordava sobressaltada com o eco formidável da explosão de quatro bombas de dinamite colocadas por mãos criminosas de sectários facciosos e intolerantes no interior da modesta ermida que a piedade popular tinha erguido na Cova da Iria como padrão comemorativo das aparições.
A notícia do hediondo e sacrílego atentado voou com a rapidez do relâmpago do norte ao sul do país e provocou em todas as almas bem formadas um sentimento unânime de indignação e de protesto, pondo mais uma vez em foco essa pitoresca aldeia, graciosamente alcandorada num dos contrafortes da serra de Aire, onde há cinco anos se deram acontecimentos maravilhosos, que jamais se apagarão da memória dos homens. Toda a imprensa se referiu a esse atentado com palavras de viva reprovação, cujo eco se repercutiu nas duas casas do parlamento, tendo o governo prometido pela voz do ministro das colónias castigar os seus autores com todo o rigor das leis e sem nenhuma espécie de contemplação.
No dia treze do mesmo mês, por iniciativa do rev.do pároco, realizou-se em Fátima uma solene procissão de desagravo. Quatro mil pessoas acompanharam o majestoso cortejo desde a igreja paroquial até ao lugar das aparições, num percurso de cerca de três quilómetros. Nesse local estavam já naquele momento mais de seis mil pessoas. Num altar improvisado em frente da capela celebrou-se uma missa campal, durante a qual a multidão ajoelhada rezou, com recolhimento e fervor, o terço do Rosário. Era sobremaneira comovente o espectáculo daquela imensa multidão, de mãos postas e orando, em que se viam pessoas de todas as classes e condições sociais. Foi uma grandiosa e edificantíssima manifestação de fé e amor à Virgem, que não teria revestido tamanho brilho e imponência, se não fora o repugnante e execrando atentado.
Mas a piedade dos católicos, ofendidos no mais íntimo, mais delicado e mais respeitável dos seus sentimentos, não ficou plenamente satisfeita com este acto soleníssimo de desagravo. Espontaneamente, sem convites, sem preparação de espécie alguma, um movimento nacional de fé e reparação começa a esboçar-se, toma vulto e cresce desmesuradamente de dia para dia até se converter, em treze de Maio, na mais estupenda e significativa manifestação religiosa dos últimos tempos em Portugal.
Desejando presenciar essa cena de incomparável beleza, esse espectáculo assombroso e empolgante, que por todos os títulos devia revestir a grandiosidade duma autêntica apoteose, tomámos o comboio que parte da estação do Rossio às seis horas e cinquenta minutos da tarde. Eram quase onze horas da noite quando chegámos a Torres Novas. No hotel daquela importante vila estremenha já não havia um único quarto disponível. Valeu-nos nessa contingência imprevista a gentileza cativante dum médico nosso amigo que providencialmente encontrámos e que, com a fidalga hospitalidade tradicional na sua família, nos ofereceu em sua casa pousada e agasalho, que aceitámos gostosamente.
Durante toda a noite passaram sem cessar grupos de peregrinos que, pelos caminhos ásperos e pedregosos da serra, se dirigiam para Fátima.
No dia seguinte de manhã havia na histórica vila um movimento desusado, só comparável com o dos dias mais festivos do ano. Nas esquinas das ruas estavam afixados exemplares dum pasquim intitulado A Comédia de Fátima e dum manifesto em resposta subordinado à epígrafe Uma especulação reaccionária. Era mais um episódio, eloquentemente significativo, da eterna luta entre o bem e o mal.
Centenas de peregrinos visitavam as igrejas, assistiam às missas, comungavam e, após a acção de graças, encaminhavam-se para a praça atulhada de camiões, camionetas, automóveis, trens e outros veículos, a fim de ocuparem os lugares que lhes estavam reservados.
Os trens partiam primeiro, tomando a direcção de Pedrógão e subindo vagarosamente a estrada da serra, pitoresca em extremo, mas bastante íngreme. Pouco depois das oito horas põem-se em andamento os camiões e automóveis que, por não poderem atravessar a serra, têm de fazer um percurso quase três vezes mais longo, dando a volta por Vila Nova de Ourém. O automóvel que nos transporta adianta-se a todos os outros.
Duas horas mais tarde, depois de contemplarmos por momentos o histórico castelo de Ourém, de que foi titular o Santo Condestável D. Nuno Álvares Pereira, subíamos, com a velocidade de quarenta quilómetros à hora, a linda e magnífica estrada que conduz directamente a Fátima. Era constante o trânsito de veículos de toda a espécie, desde os automóveis luxuosos até aos carros das fainas agrícolas e às carroças mais ordinárias. Ranchos de homens e mulheres de todas as idades e condições seguiam a pé para Fátima, rezando o terço do Rosário ou cantando cânticos sagrados.
Na véspera e durante toda a manhã choveu sempre, com pequenas intermitências. Estamos já no alto da serra, donde se desfruta um lindíssimo panorama. Parámos junto da igreja paroquial, que anda em obras, as quais se vão realizando muito lentamente por falta de recursos.
Entrámos, ouvimos missa e comungámos. Tomado algum alimento, incorporámo-nos na procissão, que entretanto se tinha organizado e se punha em marcha para a “Cova da Iria”.
Era uma visão do Céu, que encantava e comovia até às fibras mais íntimas da alma.
O governador civil de Santarém tentara impedir a todo o custo o cortejo religioso, que classificava de “parada das forças reaccionárias de todo o país”. Felizmente o administrador do concelho, assumindo uma atitude digna e correcta e sobremodo prestigiosa para as Instituições, houve por bem não cumprir as ordens do governador civil, que por sectarismo estreito e odiento não hesitava em cometer um inqualificável abuso de autoridade. O presidente do ministério, entrevistado por um jornalista católico, afirmou dum modo peremptório que o governo não tinha proibido a peregrinação a Fátima.
E, efectivamente, em que sofriam as Instituições ou como perigava a República com aquela romagem piedosa?
A procissão prosseguia lentamente a sua marcha ovante em demanda do sítio das aparições. De todas as estradas, caminhos e veredas continua a chegar gente, vinda de perto e de longe, que avança sob a chuva, de cabeça descoberta. Ao meio dia, à chegada da procissão, o espectáculo torna-se soberbo, único e indescritível.
Segundo o cálculo de oficiais do estado-maior do nosso exército, que estavam presentes e com quem falámos, o total daquele oceano humano devia ser superior a sessenta mil pessoas.
Eclesiásticos, titulares, magistrados, parlamentares, oficiais, professores dos mais importantes estabelecimentos de ensino, médicos, advogados, jornalistas, grandes proprietários do Norte, da Estremadura, das duas Beiras e do Alentejo, senhoras da primeira nobreza de Portugal, caminhavam numa promiscuidade altamente edificante, irmanados pela mesma fé e pelos mesmos sentimentos, lado a lado de homens e mulheres da mais humilde condição social, de pobres e rudes, mas dignos e honrados, habitantes das aldeias e dos campos.
Eram dois rios de gente que iam juntar as suas águas caudalosas e as suas vagas gigantescas naquela vastíssima bacia cingida de colinas e outeiros.
Próximo da capela dezenas de milhar de pessoas aguardavam ansiosamente a chegada do colossal e imponentíssimo cortejo.
Resplandecendo duma formosura soberanamente ideal, a veneranda Imagem de Nossa Senhora de Fátima, precedida de irmandades, jovens católicos, anjos, virgens, cruzes, círios e bandeiras, é levada num andor aos ombros de aristocratas da mais alta linhagem e de humildes filhos do povo.
Entre a assistência vêem-se duas mulheres vestidas de rigoroso luto, que se tornam alvo da atenção e simpatia dos peregrinos: são Maria Rosa, mãe da Lúcia, a protagonista das aparições, que está sendo educada num colégio do Norte, e Olímpia de Jesus, mãe dos seus co-videntes, Francisco e Jacinta, já falecidos.
Entretanto a chuva cessa de cair. Meia hora depois começa a missa campal celebrada num altar improvisado junto das ruínas da capela pelo rev.do Agostinho Marques Ferreira, pároco de Fátima.
O astro rei brilha em pleno zénite, cortejado de nuvens diáfanas duma alvura puríssima de neve. O silêncio incomparável dos momentos solenes é profundo.
Logo ao Introito toda aquela mole de povo ajoelha, reza e canta. À elevação todos curvam a cabeça e ao Sanctus e ao Agnus Dei todos batem no peito, testemunhando assim o ardor da sua crença, espontaneamente e sem respeitos humanos. Um coro imenso canta o “Bendito”. Algumas centenas de fiéis recebem o Pão dos Anjos de mãos postas e orando com fervor.
Vêem-se muitos olhos marejados de lágrimas. Um eflúvio do Alto, um sopro divino parece perpassar através das almas. Dir-se-ia que se respira ali a largos haustos uma atmosfera de sobrenatural.
Julgamo-nos por momentos em Lourdes, nas margens do Gave, junto da gruta de Massabielle, a assistir à missa, ou na esplanada do Rosário durante a procissão do Santíssimo Sacramento.
Terminada a missa, o distinto orador sagrado, rev.do dr. José Pedro Ferreira, sobe ao púlpito e disserta sobre a fé e a devoção à Virgem, no meio do mais respeitoso silêncio, apesar de, como ele próprio disse no princípio do sermão, não poder ser ouvido sequer por uma décima parte da assistência.
De novo se organiza a procissão para o regresso. Nela se incorporam pessoas de todas as classes e condições sociais.
Reza-se o terço e cantam-se diversos cânticos, como na ida.
Em torno da fonte que brotou próximo da capela, em Novembro, pouco depois da primeira missa campal, vêem-se numerosos peregrinos bebendo água ou enchendo com ela recipientes de todos os feitios e tamanhos, que guardam religiosamente e levam para suas casas.
Junto da capela danificada pelas bombas explosivas, ricos, remediados e pobres oferecem os seus donativos para a construção do projectado santuário em honra de Nossa Senhora do Rosário.
Os grupos vão-se dissolvendo. São cinco horas. O nosso automóvel conduz-nos à estação do Entroncamento, onde tomamos o rápido Porto-Lisboa, levando connosco a recordação imperecível de tantas cenas duma beleza e majestade supremas e a saudade inefável daqueles lugares benditos, em que a alma se sente liberta dos liames do corpo, mais longe do mundo, mais perto de Deus...
Receba a Liturgia Diária no seu WhatsApp
Deixe um Comentário
Comentários
Nenhum comentário ainda.