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2. PORTUGAL JUNTO DO TRONO DA SUA PADROEIRA
Alvoreceu o dia doze de Outubro de 1922, polvilhado da luz de ouro do sol e embalsamado com suaves fragrâncias, como um dia formoso entre os mais formosos de Outubro, sem uma nuvem a empanar o brilho do céu e sem uma brisa agreste a fustigar a terra. Os sinos da capital acabavam de tanger compassadamente as nove horas. Na estação do Rossio numerosos peregrinos sobem apressadamente para o comboio da linha 4, que está prestes a partir. Entre eles destacam-se algumas das figuras mais distintas do laicado católico: professores, médicos, advogados e jornalistas.
Ouve-se o silvo estridente da locomotiva e o comboio põe-se em movimento.
Nas estações do percurso surgem de vez em quando grupos de peregrinos ou peregrinos isolados. Em Santarém a lotação do nosso compartimento está completa. Em Torres Novas apeiam-se muitos peregrinos, que no dia seguinte de madrugada partirão em trens, camions e automóveis para a terra do mistério e do prodígio.
Prosseguimos a nossa viagem. Depois de longa demora no Entroncamento, o comboio recomeça a sua marcha e às duas horas e meia apeamo-nos em Chão de Maçãs. Um carro, que aguardava a nossa chegada, conduz-nos rapidamente a Ourém. No dia imediato, após a missa e o petit déjeuner, seguimos para Fátima através da serra.
Durante a noite tinha chovido bastante. Àquela hora, porém, nem uma gota de água caía do céu, onde corriam velozes algumas nuvens, que por vezes ensombravam o sol.
Quando já próximo de Fátima, avistámos a estrada que liga Vila Nova de Ourém àquela povoação, ficámos agradavelmente surpreendidos e sobremaneira encantados com o admirável cenário que se desenrolava diante dos nossos olhos. Subiam a estrada, numa extensão de muitos quilómetros, inúmeros veículos de todas as espécies e de todos os tamanhos repletos de gente.
Eram onze horas quando nos apeámos junto da igreja paroquial.
O espectáculo que então se oferece à vista é imponente. Lá dentro realiza-se a festa do Sagrado Coração de Jesus, festa simpática e comovente, a que dá um realce singular e um encanto inefável a solenidade da primeira comunhão das crianças.
Uma multidão inumerável enchia literalmente o vasto e antiquíssimo templo e apinhava-se na rua próximo das portas, impedindo o acesso.
Mais de quarenta missas se tinham celebrado ali naquela manhã. À missa solene comungaram cerca de três mil e duzentas pessoas, incluindo as crianças. No largo terreiro adjacente à igreja vêem-se dezenas e dezenas de veículos. Cumprimentamos vários amigos e conhecidos que vão aparecendo de todos os lados.
A chuva começa de novo a cair, miúda e impertinente.
Querendo observar tudo minuciosamente, dirigimo-nos a pé para a Cova da Iria. Pela estrada, num percurso de dois quilómetros e meio, circulam milhares de pessoas num vaivém contínuo.
Três quartos de hora depois avistávamos do meio da estrada o lugar que, segundo os pastorinhos da Visão, foi consagrado pela presença da Virgem Santíssima. Uma enorme vaga humana, de muitos milhares de pessoas, rodeia a capela comemorativa das aparições, semi-destruída pelo nefando atentado de Março. De toda a parte aflui gente a cada momento. De vez em quando um novo grupo de peregrinos vem ocupar o seu posto junto da capela.
Todas as províncias de Portugal, desde o Minho e Trás-os-Montes até ao Alentejo e Algarve, se acham aqui representadas, nesta grandiosa e incomparável homenagem nacional de amor e reconhecimento à Virgem do Rosário. Lá vêm os peregrinos do Porto e os de Lisboa, estes muito mais numerosos do que aqueles.
A chuva cai agora com violência, mas ninguém se retira. Pelo contrário, a imensa mole humana engrossa cada vez mais. Muitos peregrinos rezam o terço em grupos, alternadamente e em voz alta. Uma nobre senhora de Faro volta-se para o irmão, cónego da Sé daquela cidade, e com os olhos marejados de lágrimas diz-lhe: “Este espectáculo impressiona-me e comove-me profundamente”.
Súbito, ouve-se o som argentino duma campainha. É o sinal de que a missa campal vai começar. Celebra-a o vigário da vara de Ourém. Um sacerdote de Lisboa sobe ao púlpito improvisado e com voz sonora e vibrante profere durante o Introito os artigos do Credo, que o povo repete com calor e entusiasmo, numa sentida profissão de fé. Em seguida principia a recitação do terço em comum. Já não são grupos isolados que rezam. É a oração uníssona da multidão, o rumor fremente dum verdadeiro oceano de almas. São dezenas de milhar de bocas que erguem as suas vozes para o Céu, fundindo-as numa prece colectiva à gloriosa Rainha do Rosário.
Ouve-se de novo o som da campainha. É o toque de Sanctus. A oração torna-se ainda mais intensa e fervorosa. É que se aproxima o momento augusto e solene da consagração. Jesus, o Rei do Céu e da Terra, está prestes a descer sobre o altar, à voz portentosa do ungido do Senhor. Logo que a campainha anuncia a realização do grande mistério do amor de Deus, a multidão, no ardor da sua fé, curva-se reverente, ajoelha e adora o Verbo humanado, oculto aos olhos do corpo sob o véu das espécies eucarísticas. Do alto do púlpito ressoam as invocações, que o sacerdote profere, repetindo três vezes cada uma delas:
Senhor, nós Vos amamos!
Senhor, nós Vos adoramos!
Senhor, nós esperamos em Vós!
Senhor, curai os nossos enfermos!
Sagrado Coração de Jesus, tende piedade de nós!
Hossana, hossana, hossana ao Filho de David!
Ó Maria, saúde dos enfermos, rogai por nós!
Nossa Senhora do Rosário, abençoai o nosso Portugal!
Após as invocações, canta-se o comovente “Adoremus in aeternum Sanctissimum Sacramentum.”
Rezada a ladainha de Nossa Senhora, ministra-se a Sagrada Comunhão. Mais de duzentas pessoas num fervor de êxtase, recebem em seus peitos Jesus Hóstia.
O cântico popular “Bendito e louvado seja o Santíssimo Sacramento da Eucaristia” é repetidas vezes cantado por um coro a que a multidão responde alternadamente: “Fruto do ventre sagrado da Virgem puríssima Santa Maria.” Há quem veja sinais extraordinários no céu.
Terminada a missa, sobe ao púlpito o rev.do dr. Francisco Cruz, de Lisboa. Pronuncia algumas palavras, singelas e desataviadas, mas que penetram suavemente até ao fundo dos corações. É um santo que está falando. A sua figura emaciada e ascética, o seu ar acolhedor e calmo, de unção e suavidade angélica, a fama das suas incomparáveis e assombrosas virtudes, só por si valem bem um longo e substancioso sermão.
Durante cerca de meia hora discorre com eloquência apostólica sobre a devoção à Virgem do Rosário e encarece a necessidade da oração e da penitência.
Concluída a prática, muitos peregrinos retiram. Mas a maior parte deles têm dificuldade em arrancar-se daquele cantinho do Céu, que seduz e fascina as almas e prende e cativa os corações.
São talvez quarenta mil pessoas. Distribuem-se gratuitamente milhares de estampas de Nossa Senhora do Rosário e de exemplares da “Voz da Fátima”, que são procurados ansiosamente e acolhidos com alvoroço. Os trens, camions e automóveis vão partindo pouco a pouco.
As primeiras sombras da noite descem sobre a serra. Apenas alguns raros grupos de habitantes dos arredores se conservam ainda em oração humilde e piedosa junto do padrão comemorativo dos sucessos maravilhosos.
Entretanto ao longe, nas estradas e pelos atalhos da montanha, os peregrinos que regressam aos seus lares, depois duma jornada longa e incómoda, vão murmurando as suas preces ou cantando os seus cânticos religiosos com a alma a transbordar duma alegria que não é deste mundo e acariciando a fagueira esperança de voltarem brevemente àquele centro incomparável de devoção e de amor à Virgem, onde ficaram presos para sempre os seus corações saudosos e agradecidos.
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