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Educar para a paz inquieta1
Teologia em Questão:* Padre Zezinho, entre muitas outras expressões que criou, cunhou nos anos 1970 a expressão “Paz inquieta”. Quem hoje a usa sempre lembra que foram suas canções e seus escritos que popularizaram esta expressão. Como começou?
Padre Zezinho: Não acho que a expressão deva ser atribuída a mim. Soube que o Papa Paulo VI também a usou. Como a usei antes dele, já em l972, deve ter sido mais uma das coincidências de várias pessoas usarem as mesmas palavras para designar o mesmo fato.
Depois de vários retiros para os jovens, canções, artigos e programas de rádio sobre o que é ter paz, achei que deveria resumir aquilo numa expressão. Compus uma canção que terminava dizendo: “E pelos caminhos do mundo eu sigo inquieto, mas vou em paz”. Além disso, imaginei várias frases-chave. A mais forte delas foi: “Paz que não nos deixa inquietos com a dor do outro não é paz”. Dali por diante comecei a usar a expressão “paz inquieta”, toda vez que falava de compromisso com o Reino de Deus.
TQ: Qual era o objetivo pedagógico?
PZ: Mudar o conceito de que estar em paz é estar numa boa, com todos os problemas resolvidos, sossegado e sem conflito com ninguém. Santidade nunca foi isso. Eu lembrava que Jeremias, Isaías, Amós, João Batista e Jesus tiveram conflitos e nem por isso eram menos santos ou perderam a paz. Buscar a justiça do Reino não é o mesmo que passar por uma doceria, comprar um bolo e sair repartindo pedaços pela rua. É mais do que encher o mundo de sorrisos e palavras doces. A paz inquieta exige o sorriso, a meiguice, o abraço no irmão ferido, mas exige às vezes uma postura exigente diante do bandido ou do governante que passa dos limites. Jesus chamou Herodes de raposa. Diante dele não disse uma só palavra. Falar o quê, se o rei tentou ridicularizá-lo? João Batista lhe disse umas quantas e boas!
TQ: É uma paz que nos deixa inquietos e inquieta os outros...
PZ: Isso! Estar em paz não é o mesmo que estar sem problemas. Quem busca demais o aplauso e a aprovação dos outros provavelmente tem uma ideia errada de paz. Hitler recebia aplausos de milhões, mas pelo mal que fez é evidente que não conheceu a paz. Onde há eu demais há Deus de menos e paz de menos.
Quem precisa aparecer o tempo todo e move céus e terra para ser aplaudido não tem paz. Quem se supervaloriza e pensa demais no seu sucesso confunde o sucesso pessoal com o sucesso do seu povo ou do Reino de Deus. A cruz foi, naqueles dias, um fracasso. Foi tudo menos aplauso! Mas foi paz.
TQ: Ultrapassa a dimensão do eu...
PZ: Bem lembrado. Quem chegou lá tem que mostrar o caminho, ou jogar a corda para que outros também cheguem. A ideia dos meus retiros era essa. “Cada um por si e Deus por todos” não é um lema de paz inquieta. Um lema impregnado de paz inquieta seria: “Um por todos e todos por um”. Se o outro não entra no processo, não para me aplaudir e se curvar diante do mim e, sim, como companheiro de jornada, ficamos sem referência aqui na terra. Sem referências, não há paz. Não bastam as referências do céu.
Viver isolado numa ilha pode ser sossego, mas não é paz. Jesus se refere a isso quando conta a parábola da moeda perdida. Todo mundo sentiu e todo mundo ficou feliz por causa da moedinha. Se aquela pequena moeda significou alguma coisa para a vizinha, também significou para eles (cf. Lc 15,8). Esta solidariedade só nasce de quem vive a paz inquieta. O outro é importante a ponto de a gente sofrer com ele.
TQ: Acha que os padres entenderam isso?
PZ: Acho que teólogos e biblistas foram mais longe do que eu. A expressão pegou porque ouvi muitos padres, bispos e jovens falando dela e dizendo coisas mais profundas do que eu tentei dizer. Não me acho especial porque criei algumas frases, canções ou palavras marcantes. Dias atrás alguém recolheu as minhas frases mais marcantes tiradas de minhas canções que os pregadores usam e chegou a mais de cinquenta. Estou para publicar um livro de mil pensamentos catequéticos. Aguarde!
TQ: Como interpreta o fato de que suas palavras repercutam por tantos anos?
PZ: Apenas fico feliz por saber que isso ajuda a catequese. O sujeito que inventou o portão automático provavelmente ficou muito feliz quando viu milhares de pessoas a usá-lo de um jeito até melhor do que ele imaginava. O portão normal funciona, mas o eletrônico é mais funcional. Acontece o mesmo com as palavras.
TQ: Biblicamente, como se sustenta o conceito de paz inquieta?
PZ: Daniel, que não tinha nada a ver com Susana e Joaquim, mas viu a injustiça dos velhos juízes corruptos; Isaías, que viu os abusos no Templo e no palácio; Jeremias, que viu os exageros dos profetas em busca de aplauso; Amós e Ezequiel... todos eles mostraram que tinham paz inquieta.
Passagens fortes como os “ai de vós” de Jesus aos fariseus e saduceus, que aparecem no capítulo 23 de Mateus, e o capítulo 23 de Jeremias, mostram paz inquieta. São carregados de justiça. João Batista tinha uma profecia forte, mas disse o que tinha a dizer na hora certa, do jeito certo e para a pessoa certa, fosse ele o rei ou quem quer que fosse.
TQ: Para um grupo de jovens à sua frente, como você definiria a “paz inquieta”?
PZ: Eu definiria como paz inquieta a atitude de lutar pela paz dos outros, depois que a gente encontrou a própria paz. Eu estou bem, mas eles não estão. Quero para ele os direitos que eu tenho e a paz que eu tenho. Quem tem a paz inquieta não fica quieto quando vê que existe gente pisoteando o direito e a justiça, ou brincando de vidente ou profeta e usando a religião e o nome de Deus para sua autopromoção. O profeta da paz inquieta não consegue não se envolver. Quando vê, já entrou na luta!
TQ: Pode-se falar numa Teologia da Paz Inquieta?
PZ: Sou muito cuidadoso com isso de inventar novas teologias, novas liturgias e novas pastorais. O sujeito tem que ser muito estudioso e muito profético para seguir por esse caminho. Por algum tempo pode-se criar qualquer novidade na Igreja e inventar mais uma devoção ou criar mais um título para Nossa Senhora ou para Jesus. É bonito enquanto dura e ninguém questiona. Doutrina sólida leva mais tempo... Eu nem teria capacidade para engendrar uma teologia desse porte. Aqui no nosso instituto, vocês colegas, doutores em Dogmática, teriam muito mais condição de fazê-lo. Se o Pe. Marcial ou o Pe. Joãozinho escrevessem um livro sobre esse tema iriam muito mais longe do que eu. Penso que o Reverendo Milton Schwantes saberia fundamentar biblicamente tudo isso. Acho, porém, que a mística da paz inquieta cabe muito bem na já bem fundamentada Teologia da Libertação e, certamente, dentro da Teologia dos Carismas. Cai dentro do carisma da caridade, que é o maior de todos eles.
TQ: Há chamados especiais para a Paz inquieta ou é chamado universal?
PZ: É universal. Todos temos que assumir as dores uns dos outros. Mas há chamados especiais. Pessoas caridosas e totalmente a serviço dos outros, que parecem ter o DNA da alteridade, como os que vivem junto dos pobres, enfermos e marginalizados; médicos que atendem a situações de urgência; gente que arrisca diariamente a vida pelos outros, como é o caso dos bombeiros, policiais; políticos que lutam por mudanças profundas no País; juízes e promotores que processam grandes criminosos; jornalistas que denunciam falcatruas e crimes, todos eles precisam desta paz.
Dom Helder, Irmã Dulce, Pe. Alfredinho, Teresa de Calcutá são exemplos disso. Cheios de paz, mas dispostos a correr riscos pelos mais pobres. Dom Luciano Mendes de Almeida era assim. Espero que o canonizem logo.
Acabei de encontrar uma jovem leiga consagrada, que trabalhava em São Paulo com os meninos de rua e que foi para Moçambique, onde apanhou malária e lepra e de onde teve que fugir porque denunciou compra e tráfico de órgãos humanos. Estava voltando para o seu trabalho sem receio nenhum do que lhe aconteceria. Dera a vida pelos mais pobres dentre os pobres. Isso é vocação legítima de martírio. Nasce da paz inquieta vivida ao extremo de um coração humano.
Jesus fala disso ao dizer que ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos irmãos (cf. Jo 15,13). Temos milhares de santos jovens e adultos e anciãos vivendo a paz inquieta que nunca mereceram uma única reportagem da mídia. Até imagino que não a aceitariam por medo de serem aplaudidos por isso. Gente de paz inquieta não gosta muito de holofotes.
TQ: Procurar a fama e os holofotes seria falta de paz?
PZ: Eu não disse nem diria isso. Disse apenas que um sinal muito claro de que alguém vive esta paz inquieta é que deseja ver o outro ser promovido, não ele! Jesus chegou a desaparecer, logo depois de ter curado o homem na piscina de Betesda. O autor do milagre não estava mais lá na hora dos aplausos (cf. Jo 5,2-14). Mas reapareceu na hora de completar a obra no enfermo curado...
TQ: Quem prega mudanças tem que ter essa paz inquieta?
PZ: A verdadeira, sim! Podem-se pregar mudanças com mágoa e rancor no coração, descendo a lenha nas outras religiões, vendo o demônio nos outros, diminuindo os sacerdotes da outra fé e conspurcando a honra do político do outro partido. Mas a grande maioria que de fato viveu essa paz inquieta sabia de onde vinha sua paz. Não esqueçamos os pais que vivem em situação-limite nas favelas e em lugares onde a droga e a violência correm soltas. Quem lida com a dor, com a violência e com a injustiça precisa de uma paz feita de ternura e, se preciso, de severidade amorosa.
O cristão não pode perder a paz, mas também não pode ficar indiferente ao ver o avanço da injustiça. Quem tem a verdadeira paz não consegue ficar quieto. Eu só cunhei uma palavra, mas basta você ler e ouvir gente que praticou esta paz. Alguns já morreram, outros ainda a testemunham. Helder Câmara, Nelson Mandela, Dom Paulo Arns, Madre Teresa de Calcutá, Irmã Dulce, Gutierrez, Juan Luiz Segundo, Arturo Paoli, Clodovis Boff, Hans Küng, Suenens, Schillebeeckx e dezenas de outros autores dos últimos cinquenta anos mostraram ser cristãos inquietos ao propor mudanças, mas pessoalmente são ou foram serenos. Pessoalmente podiam estar felizes, mas não estavam satisfeitos com as respostas do mundo e das Igrejas ao magno problema da infelicidade humana. Nenhum deles aceitou fórmulas mágicas e respostas apressadas. Acrescente Dom Aloísio Lorcheider, Dom Ivo Lorsheiter, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Eugênio Sales e dezenas de outros bispos que, tidos como progressistas, conservadores ou moderados, foram ou são homens profundamente inquietos com a dor dos outros e com os rumos do País.
TQ: A paz inquieta não está ligada à esquerda, nem à direita...
PZ: Nem ao centro! Pelo menos não se liga à esquerda festiva que apoia o recurso às armas. É o oposto dos grupos de terror ou dos que mentem e falsificam estatísticas e falseiam os fatos para atingir seus objetivos. Não está no marketing mentiroso que só mostra o lado bom de suas Igrejas e quando pode põe em letras garrafais os pecados de outras Igrejas. Onde se visa ao dinheiro, à prosperidade, aos primeiros lugares não há paz.
A paz perderia sua força se só se manifestasse num dos lados do rio da Fraternidade. O conceito ultrapassa rótulos. Jeremias, Isaías e Ezequiel profetizaram em tempos diferentes e de um jeito diferente; João Batista e Jesus tinham um jeito diferente de ser e profetizar; Paulo e Pedro eram de temperamentos diferentes e tinham até enfoques diferentes em algumas questões; mas o martírio, a fé, a luta pelos pobres e sofredores os chamava o tempo todo.
É o chamado de todos os grandes santos, que pouco se importam com direita, esquerda, centro ou rótulos. Seu coração quer é mais paz e mais justiça. O apelido que se dá a isso já não é problema deles. “Eu estou bem, mas há muita gente que não está. Agora vou viver por eles.” Jesus cunha isso na expressão “Pede-se mais daqueles a quem mais se deu”. Agostinho, que era um sujeito inquieto e irrequieto, falava de seu coração que seguiria buliçoso até que repousasse em Deus. Repousou e continuou buliçoso. É um dos maiores argumentistas da fé. Jesus morreu pensando nos outros. Paulo sentiu a morte de perto e ainda assim pensava na Igreja e analisava suas lutas pelo Reino.
TQ: Pode existir paz no conflito?
PZ: Como já citei, experimente ler o capítulo 23 de Jeremias. Também Jeremias 14,15; Ezequiel 13; Mateus 7 e 24; Paulo em 2Tm 4. Ali está mais do que claro que eles combatem a falsa paz, anunciada por pregadores bonzinhos e alienados, alguns até mal-intencionados, que desviam o povo da luta pela justiça e pela construção do Reino. Podia espernear o quanto quisesse, mas Israel tinha mais é que repartir, cuidar das viúvas, dos órfãos e dos necessitados. Já os pregadores bonzinhos, que diziam que tudo ia ficar bem, que estava tudo como Deus planejara, eram duramente criticados. Os profetas cheios de paz inquieta, como Amós e Oseias, replicavam que não estava tudo bem, não estava tudo como Deus queria, e se Israel não fizesse a sua parte iria demorar muito a acontecer a tal paz água com açúcar dos pregadores. Exigiam conversão pessoal, fraternidade e justiça no dia a dia. Não engoliam adoradores alienados. Oferta a Deus sem oferta aos pobres era mentira (cf. Mt 9,13; Os 6,6). Eram teológica e politicamente engajados. Afinal, nem o reino nem os reis iam bem. Tinha que haver mudanças.
TQ: Como chamar isso de paz, se era uma teologia de confronto?
PZ: Jesus era um homem cheio de paz, mas, quando foi preciso, enfrentou os poderosos e os donos da fé. Uma coisa não exclui a outra. Os donos da fé e do dinheiro não costumam subsidiar profetas que os confrontem. Escolhem seus profetas. Entre chamar o pregador feliz, que diz coisas gostosas e suaves e canta com o povo, e chamar o que questiona o capitalismo e o consumismo, os costumes e a liberdade excessiva, quem seria chamado?
Há um acordo tácito entre o pregador subsidiado pelos poderosos e quem os chama: não se devem abordar certos assuntos de partilha e justiça social... Então, o pregador fica na área do suave. O documento Ética nos meios de comunicação chama esse discurso de Chiesa blanda, Igreja suave... Dizem coisas lindas que não incomodam a conta bancária de seus patrocinadores. Jesus não era esse tipo de pregador. Chegou a chamar a atenção do seu anfitrião e dos convidados que procuravam os lugares de honra. Aposto que não foi mais chamado por aquele grupo (cf. Lc 14,7).
Os profetas que o precederam também queriam justiça e misericórdia, porque uma não funciona sem a outra. A luta deles era contra quem iludia o povo, mantendo-o na ignorância de que Deus queria aquele sofrimento. A mesma inquietação e severidade eram dirigidas contra os maus governantes. Jeremias, no capítulo 5, reserva palavras duras contra os que oprimem os pobres e enriquecem ilicitamente. Jesus é igualmente severo contra os opressores do povo. Não ficavam quietos. Não se calaram diante da injustiça.
TQ: De onde se conclui que paz inquieta está estreitamente ligada à pregação da justiça e dos direitos humanos...
PZ: Se fosse citar todos os textos que retratam essa paz que às vezes ia ao confronto, teria que escrever mais de duzentas páginas e seria apenas a introdução. Jesus vai ao extremo quando deixa claro que tipo de paz ele não aceita: a dos que apenas falam bonito e encantam sua plateia com o discurso que todos querem ouvir. Com Deus é diferente. Jesus não cai na conversa deles, que julgam que serão ouvidos pelo seu muito falar (cf. Mt 6,7). Chega a dizer que mesmo quem expulsou demônios, converteu outros, curou e pregou em seu nome, não tem o céu garantido. Funcionou aqui na terra para os ingênuos, mas não funcionará com ele (cf. Mt 7,15-23). Não vai reconhecer essa gente no dia da verdade, porque descuidaram da dor dos outros. Muito pregador famoso vai acabar no inferno (cf. Mt 7,22). Imaginem a ira dos donos do povo e da fé, ao ouvirem Jesus falando daquele jeito!
O que os escritores disseram que Jesus teria dito é coisa de quem provoca. Segundo eles, Jesus, como os profetas do passado, provocou os santos e beatos do seu tempo ao dizer que as prostitutas e os publicanos entrariam no céu antes deles (cf. Mt 21,31). Era confronto intencional, exatamente porque era a busca da verdadeira paz, não do jeito do mundo, mas do jeito dele!
TQ: A pessoa de paz inquieta esquenta o ambiente...
PZ: Acho que poderíamos dizer isso. Lembremos a sentença: “Não vim trazer a paz, mas a espada” (Mt 10,34). Tem paz inquieta do começo ao fim. Vem do Jesus que censurou Pedro quando ele usou da espada (cf. Mt 26,51-53) e que disse para darmos a outra face quando esbofeteados (cf. Mt 5,39). Então, por que ele teria dito isso? É um texto provocativo que vai mais longe do que a luta armada. É muito mais pacifista do que parece. Jesus afirma que, por causa da paz que ele prega, haverá conflitos entre filho e pai, filha e mãe, nora e sogra. Não seria nada fácil anunciar seu Evangelho.
Um pouco mais adiante, no mesmo capítulo (cf. Mt 10,38), deixa claro que haveria cruz no caminho dos seus seguidores. No capítulo 16 de Mateus, outra vez Jesus avisa que a paz passa pela cruz. Em Lucas 14,27 vai mais longe: quem não assume os riscos da cruz não pode ser discípulo. Jesus não oferece sobremesa nem água com açúcar. É sim, sim, não, não! Qualquer tentativa de mentir ou abrandar o discurso para ganhar aplauso e ibope é coisa do maligno (cf. Mt 5,37).
A Pedro, que lhe pede para não dizer o que acabara de dizer, diz que o apóstolo fazia era papel de satanás, o tentador (cf. Mt 16,23). Ele prega a busca incessante da justiça. Mateus 23,23-39 traz um discurso duro e irado contra uma religião dura demais e sem consideração para com as necessidades e os direitos das pessoas. Jesus pagou o preço dessa paz inquieta. Se ele tivesse apenas elogiado as pessoas, sem enfrentá-las, teria morrido na cama depois de muitas inaugurações e banquetes porque seria profeta das elites. Mas teve que dizer o que disse. Se tivesse calado a boca, não teria ensinado a paz do céu.
TQ: Jesus era radical quando queria.
PZ: Quando foi preciso! O bolo da fé nem sempre é doce. Pregador que só diz coisas lindas e dá apenas o chantili do bolo está enganando o povo. Parece a tia que enfia o dedo no chantili e esfrega na boquinha do nenê para ele parar de chorar. Religião não é isso. O povo não é mais bebê. Paulo fala de comida sólida para os maduros e leitinho para os infantis (cf. Hb 5,14). Quem quer dar leitinho que dê, mas o povo precisa de mais do que isso para ter forças.
TQ: E a alegria, onde fica?
PZ: Distingamos entre ser alegre e sorridente e ter paz inquieta. Alguém pode ser alegre, mas alienado. Isso não é paz. Pode haver sorriso falso e até interesseiro. Também não é paz. Há milhões de pessoas rindo diante de piadas sujas e cruéis na televisão. Não é um sorriso de paz. A verdadeira alegria está no servir a Deus e ao próximo. Os salmos, que na sua maioria retratam tristeza e dor, com quase a mesma frequência mostram que a paz inquieta alterna entre a ira justa e a felicidade e o desejo de pular de alegria, entre canções alegres e festivas e cantigas de dor e de libertação.
TQ: Não tem que ser sisudo!
PZ: A paz inquieta não nos torna pessoas amargas e raivosas. Se o fizer, não era paz. Mas não se enganem com nosso riso e nossas brincadeiras. Se tivermos que ficar sérios e dizer o que deve ser dito, pode ter certeza que o faremos. Não buscamos aplauso nem popularidade a qualquer preço. Essa é a ideia que nos passam os profetas, os salmistas e os apóstolos. Já leu o Salmo 2 em detalhes? Fala de temor, tremor e júbilo. Os Salmos 9 e 31 expressam este mesmo fluir de sentimentos. Acharemos mais de quarenta salmos que tratam desses temas. Dor, alegria, ira justa e perdão. São os componentes da paz inquieta.
Aliás, aqueles hinos e cantos retratam o humor dos autores e do povo. Os Evangelhos falam de um Jesus preocupado com a dor humana, de um homem que chora, sente e até canta junto (cf. Mt 26,30). Mas Jesus tem ironia e humor. Os autores não falam de um Jesus que riu, mas deviam ter dito isso. Ajudaria a entender melhor a pregação dele. Aposto como Jesus riu muitas vezes!
TQ: De onde tira essa conclusão?
PZ: Li nos Estados Unidos, enquanto lá estudava, o livro de um autor de sobrenome Trueblood, The humor of Jesus – O humor de Jesus. Foi esclarecedor. Descrevia algumas passagens que refletem sua fina ironia e seu senso de humor. Pessoas macambúzias e incapazes de ver o lado positivo e até engraçado da vida não servem para pregar a paz. O eterno reclamador e pessimista não tem credibilidade nem equilíbrio. Não se pode falar de paz sem esperança. Gente de cara fechada mostra insatisfação permanente com o mundo. Não foi o caso de Jesus.
TQ: Mas houve personagens bíblicos trágicos...
PZ: Concordo. Depreende-se das leituras. Davi e Saul ao que tudo indica tinham muitos momentos de depressão. Os fatos e, no caso de Davi, os salmos que lhe são atribuídos carregam certa tristeza. Jesus não tinha esse rancor nem essa tristeza. Uma vez disse que estava triste até a morte. Mas foi uma única vez (cf. Mt 26,38). Era cheio de misericórdia. Ficou irado em algumas situações em que se omitir seria errado. Mas irar-se não é ser triste. Por isso é que ele disse que dava a paz aos seus, mas não como o mundo a dava (cf. Jo 14,27). Por isso é que propôs o seu coração como modelo (cf. Mt 11,29). A paz dele preenche e traz alegria completa (cf. Jo 15,11). Tem que levar ao entusiasmo. Jesus pregava o entusiasmo o tempo todo. Um macambúzio jamais faria isso.
TQ: É esse o humor de Jesus?
PZ: O humor nem sempre é sorridente. Às vezes chora, às vezes sorri de leve, às vezes gargalha. Não é possível pregar a paz sem chorar junto e sem sorrir junto. Jesus foi irônico diante de Natanael, a quem chamou de sujeito sem um pingo de malícia. Aquilo mexeu com Natanael. “Por que ele está dizendo isso, se nem me conhece?” Mas Jesus o vira debaixo da figueira... Imagine o olhar de Jesus, ao dizer aquilo bem na cara do questionador Natanael. Os dois sabiam do que se tratava... Tanto, que Natanael aceitou a ironia de Jesus, para dizer que admitia que Jesus sabia mais do que ele. O que ele estava fazendo naquela figueira até hoje ninguém sabe... Mas foi o suficiente para Jesus ganhar o coração do incrédulo discípulo.
Foi humor, ou não foi? Deve ter havido muitos momentos engraçados na vida daquele grupo. Havia humor e um jeito brincalhão na conversa entre Jesus e Marta quando falaram de Maria. Só amigos podem falar desse jeito. Uma leitura atenta dos Evangelhos mostra que Jesus passava alegria e paz aos seus, mas, quando tinham que acertar os ponteiros, a coisa era séria.
TQ: Jesus era exigente com os discípulos. Faltou paz?
PZ: Sobrou! Foi prova de paz! Houve um momento em que Jesus os chamou de coração retardado... Coisa de amigo que fala o que tem que falar... Mas deve ter valido à pena, porque Pedro, na hora do fica ou vai embora, disse que ficava porque Jesus tinha palavras de vida eterna (cf. Jo 6,68).
TQ: Poderíamos ir longe. Mas mostre-nos uma canção sua que traduza o seu conceito de paz inquieta. Já tentou isso?
PZ: Isso mesmo, a palavra é tentou, porque acho difícil resumir esse conceito em canção. Mas a letra da canção “Paz inquieta” tinha esse intuito pedagógico. Diz:
Eu trago esta paz inquieta cheia de treva e de luz
Desde que eu sigo os caminhos de um profeta chamado Jesus...
Na treva eu me sinto inquieto, na luz eu me sinto capaz
E pelos caminhos do mundo eu sigo inquieto, mas vou em paz
Inquieto pelo inocente, pelo culpado também
Triste por ver tanta gente que não sabe o que a vida contém
Inquieto pela injustiça que eu vejo aumentar e doer
Inquieto por esta cobiça que não deixa o meu povo crescer...
Inquieto pelo homem justo que por saber e sonhar
Paga com preço de sangue a coragem de não se calar
Inquieto por tanta gente que não se inquieta jamais
E pelos caminhos do mundo eu sigo inquieto, mas vou em paz.
TQ: Quer acrescentar algo à entrevista?
PZ: Gostei de poder falar do tema. Agradeço por terem notado que direcionei minha vida para esse pensamento. E acho que nossa Igreja no Brasil e no mundo já foi muito mais inquieta do que está sendo neste momento. Nos últimos quinze anos, estamos calados demais diante do avanço dos sistemas de iniquidade e diante da escalada de impunidade e corrupção no País. A Igreja teria que se indignar muito mais do que o faz. Melhor uma Igreja silenciada por ter falado do que uma Igreja que silenciou por medo, cumplicidade ou excesso de diplomacia... Nós padres deveríamos fazer o povo pensar mais sobre os caminhos que, além das noites de oração, podem mudar o Brasil. Eles poderiam também ser noites de catequese social! O povo continua sem conhecer os documentos sociais da nossa Igreja.
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