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Um limite para o nosso eu
Pregadores, escritores, políticos e artistas que gostam muito de falar de si mesmos e nem disfarçam sua fala acham que, contando detalhes de sua vida, motivam outras pessoas a buscar caminhos de fé, de vida ou de cidadania. “Se eu cheguei até aqui, eu que era como você, ou estava pior do que você, você também pode.” O risco de acentuarem demais os pecados e as virtudes que viveram é grande. Consciente ou inconscientemente acabam por entronizar o seu “eu”. É como se dissessem ao contar sua vida: “Não cheguei aqui por acaso. Sou um vencedor”.
Sacerdotes, padres, pastores, religiosos, políticos ou artistas já gozam de certa evidência porque lidam com multidões. Toda vez que apontam para suas histórias ou para o que estão fazendo correm mais um risco: o de atrair demais os holofotes sobre sua pessoa. E sabemos que os holofotes cegam aquele que eles iluminam. Excesso de luz sobre si mesmo acaba em cegueira.
Com o tempo os outros e seus direitos, as outras correntes de fé ou de pensamento, os outros profetas passam de amigos a concorrentes. É que o palco vicia. Quem subiu faz de tudo para não descer dele. Deve ser por isso que inconscientemente fazem um pesado marketing de si mesmos. Vivem da evidência e não saberiam viver sem ela.
É uma pena, porque seu discurso acaba repetitivo e superficial. Nenhuma vida é tão profunda que não se esgote em poucas entrevistas. Como sentem forte necessidade de ressaltar quem foram, o que se tornaram e o que estão fazendo, acabam se repetindo. Toda vez que secundarizamos os outros acabamos nos terceirizando! Pior: ao invés de primeiros, ficamos cada dia mais primários. Regredimos intelectualmente!
Se gente famosa, entre ela cantores, pregadores ou políticos, relesse suas entrevistas talvez se desse conta de que, embriagada pelo holofote daquele jornal ou periódico, acabou, sem perceber, colocando suas obras ou sua pessoa como o centro dos acontecimentos. Caiu na armadilha da luz demais.
Poucos conseguem apontar para os outros, quando um holofote, um microfone ou uma câmera os destaca! Não percebem que sua fé, pregação, arte, canção ou proposta política são maiores do que eles. Falam como se fossem donos ao invés de servidores.
O artista que diz “meu CD”, “meu filme”, “minha peça”, quando não é autor das músicas nem dos arranjos, não financiou, não escreveu o argumento nem o roteiro, não dirigiu e não produziu, mostra o quanto a evidência o cegou. Age como o soldado que acha e afirma que venceu a guerra, só porque alguém o filmou por dois minutos e o povo o reconheceu na passeata da vitória.
Existiriam um Pelé ou um Maradona sem excelentes companheiros? Os gols não foram só deles. Que credibilidade teria um artilheiro se falasse apenas das suas jogadas e ignorasse os passes que recebeu? Existiria um pregador ou cantor famoso de agora sem a luta, a canção e os cantores de ontem?
Acento demasiado no “eu” é fé excessiva em si mesmo. Medem-se o caráter e a grandeza de alguém pela capacidade que tem de transferir as honrarias que recebe. Um dos livros mais marcantes de Thomas Merton, Homem algum é uma ilha, começa citando quatro autores mais profundos que ele. Deve ser por isso que seu livro durou décadas e ainda recebe novas traduções. Gastou mais tempo apontando para as penas dos outros do que para a sua!
Nossa pena não vale a pena se não souber lembrar dos outros e admitir que aprendeu com as penas deles!
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