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INTRODUÇÃO DO TRADUTOR
Nesteros, o segundo dos três abas desta segunda parte das Conferências, é talvez idêntico a Nisteros ("o Grande") do Apophthegmata patrum. É improvável, em todo caso, que ele seja o mesmo que Nistheros, o Cenobita, também do Apophthegmata patrum, visto que o Nesteros da presente conferência é referido como um anacoreta em 11.3.2. Depois de uma introdução extremamente breve, e depois de sermos informados de que o velho ouviu falar do desejo de Cassiano e Germano de entender certas passagens das escrituras que eles memorizaram, ele imediatamente passa a falar sobre o tema do conhecimento.
Ele começa dividindo o conhecimento religioso em dois tipos (prático (atpaxcLxr)) e contemplativo ou espiritual (6s(upr)ilxrI). Em sua forma atual, essa distinção pode ser atribuída a Aristóteles (Metaph. 2.1): "A filosofia é corretamente chamada de conhecimento da verdade. O fim do [conhecimento] contemplativo é a verdade, mas o do [conhecimento] prático é a ação". Menos remotamente, porém, a ideia é evagriana (cf. SC 170.38-56). Esta é apenas a primeira das inúmeras distinções que fazem da décima quarta conferência uma das mais analíticas de todas as conferências. O conhecimento prático, que deve preceder sua contraparte contemplativa, existe em forma dupla: Ele tanto compreende o funcionamento dos vícios quanto forma a mente de acordo com as virtudes, de tal forma que a mente se deleita com estas últimas. As palavras de Jeremias 1:10 sugerem a Nesteros, no entanto, que expulsar o vício é duas vezes mais difícil do que adquirir a virtude.
O conhecimento prático pode ser encontrado em muitos contextos diferentes - entre solitários e cenobitas, entre monges e pessoas seculares. De fato, Cassiano sugere que tal conhecimento é qualquer profissão que um homem ou uma mulher possa assumir e seguir de maneira cristã. E seja qual for a profissão que uma pessoa possa abraçar, ela deve se apegar a ela e nela descobrir a perfeição para si mesma. A insistência em ser fiel à própria profissão lembra a insistência, encontrada em outras partes das Conferências e em toda a literatura do deserto (cf. 6.15 e nota relevante), em ser fiel à própria cela e ao local onde se estabeleceu a carreira monástica.
É somente quando ele começa a falar de conhecimento contemplativo ou espiritual que Nesteros finalmente se dirige diretamente à preocupação de seus dois ouvintes, pois é claro que esse conhecimento pertence exclusivamente à compreensão da Escritura. Como o conhecimento prático, é duplo, tendo a ver tanto com a interpretação histórica quanto com a compreensão espiritual das Escrituras. Enquanto o primeiro lida simplesmente com fatos ou afirmações históricas, o último está ocupado com o possível significado ou significados mais profundos de um determinado texto. Em uma elaboração de 8.3, Cassiano aqui divide os sentidos espirituais da Escritura em três, a saber, alegoria, anagogia e tropologia. Grosso modo, a alegoria tem a ver com Cristo, a Igreja e os sacramentos, ou seja, com coisas históricas ou visíveis, mas carregadas de significado espiritual. A anagogia tem a ver com realidades invisíveis, eternas e celestiais. A tropologia, enfim, carrega um certo peso moral. Aos quatro sentidos da Escritura (incluindo o histórico) correspondem os quatro termos que Paulo emprega em 1 Coríntios 14:6: O histórico está ligado à instrução, o alegórico à revelação, o anagógico à profecia e o tropológico ao conhecimento. A estrutura complexa de Cassiano aqui é uma obra-prima da literatura hermenêutica. Tanto Ambrósio (Exp. evang. Sec. Luc., prol. 2) quanto Agostinho (De util. cred. 3.5ff.) propuseram quatro níveis possíveis nos quais as Escrituras poderiam ser compreendidas, mas eles diferem do esquema de Cassiano, que é original para ele.
A seguir, Nesteros retorna ao prático, pois para que uma pessoa adquira compreensão espiritual, ela deve primeiro ter adquirido a virtude. Uma vez acalmados os cuidados mundanos, deve-se empreender um assíduo programa de leitura da Bíblia. A leitura, porém, traz consigo o perigo do orgulho e, conseqüentemente, o exercício da humilde discrição também é recomendado com urgência. A leitura, por sua vez, sugere memorização, e Nesteros não hesita em dizer que o leitor deve, eventualmente, memorizar a Bíblia em sua totalidade. A Escritura formará assim o objeto de meditação contínua, que então expulsará outros pensamentos e gradualmente revelará a beleza do que foi memorizado. Mas tudo o que uma pessoa pode derivar da Escritura é moldado de acordo com sua capacidade de entendê-la, e uma passagem aparentemente tão simples, por exemplo, como Êxodo 20:14 ("Não cometerás fornicação") pode produzir uma infinidade de significados mais profundos.
Um desses significados mais profundos é a identificação da fornicação com pensamentos errantes. Ao ouvir Nesteros oferecer essa interpretação, o próprio Cassiano, em uma das poucas passagens em que ele e não Germano fala, lamenta sua educação literária na infância, que lhe deu os recursos para suas distrações: Ele não pode cantar um salmo sem ver os heróis da mitologia pagã com os olhos da mente. Nesteros responde observando que contos e poemas mundanos podem ser expulsos da imaginação lendo e meditando na Bíblia. Uma vez que uma pessoa tenha feito isso durante um certo período de tempo, os pensamentos espirituais começarão a brotar nela por conta própria. Mas, novamente, para que isso aconteça, a pessoa deve ter superado seus vícios: o contemplativo deve ser precedido pelo prático.
Agora é Germano quem intervém com a objeção de que alguns que não atingiram a virtude são, no entanto, mais conhecedores das Escrituras do que muitas pessoas santas. Nesteros responde distinguindo entre uma habilidade retórica que passa por conhecimento espiritual, por um lado, e santidade que fornece uma verdadeira visão espiritual, por outro. Esse tipo de habilidade retórica é meramente pseudo-conhecimento. É importante notar aqui que a visão de Cassiano neste assunto não pode ser caracterizada como anti-intelectual. Em contraste com muitos monges egípcios que condenavam o aprendizado tout court, Cassiano rejeita apenas o abuso do aprendizado. Sobre o anti-intelectualismo egípcio cf. a nota em 10.2.2.
Tendo encorajado seus dois ouvintes a ler e memorizar as Escrituras, Nesteros os adverte a não, por desejo de louvor humano, ensinar aqueles que não são dignos de aprender. Mas as tentativas de ensino espiritual falharão em dois casos - a saber, quando o próprio professor fala sem experiência em assuntos espirituais e quando o ouvinte se recusa obstinadamente a aceitar o ensino. No entanto, às vezes, Deus até dá a graça de ensinar a pessoas que até então haviam resistido a toda graça.
A conferência termina com a promessa de Nesteros de discutir os dons de cura naquela noite.
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